Oswaldo Cruz e a Revolta da Vacina

A varíola causava horror. Desde a antiguidade foi assim. Cedo se percebeu que era contagiosa só pela proximidade. No início, parecia uma gripe — febre, dor muscular e de cabeça, cansaço. Por vezes, levava a vômito. Mas os dias passavam e o mal-estar continuava. Não era gripe. Em meados da segunda semana após os sintomas, lesões surgiam nas mucosas. A boca e a língua, a garganta, na parte interna do nariz. Umas lesões crescendo até explodir, enchendo de vírus a saliva. Eram os perdigotos os primeiros a transmitir. Daí, a pele avermelhava cheia de coceiras que logo se tornavam erupções irregulares, seu toque aveludado, cobrindo às vezes toda a superfície da pele da pessoa, sempre com o centro ligeiramente aprofundado. Parecia uma pele cheia de crateras para fora, como a superfície da Lua. 30% dos que pegavam, morriam. Quem sobrevivia, era comum, levava as cicatrizes pela vida. Em alguns casos, também a cegueira. A palavra vacina vem do tratamento de varíola, uma doença que foi finalmente erradicada em 1977. E é varíola que está no centro de um dos momentos de maior crise política do início da República. A Revolta da Vacina.

Oswaldo Gonçalves Cruz era jovem. Tinha 30 anos recém-completos, em 1902, quando o presidente Francisco Rodrigues Alves o designou como um dos dois responsáveis por reinventar a capital brasileira. O Rio de Janeiro, àquela altura, ainda era um bocado a cidade colonial e imperial, com no centro muitos becos e ruelas estreitas, caminhos sinuosos, um mapa construído pelo improviso de quem ia chegando ao longo dos séculos. Mas com a República, aceleradamente desde 1889, as elites foram se distanciando daquele centro velho para bairros novos nas zonas Sul e Norte, onde havia espaço para casarões elegantes. No centro viviam, então, os bem mais pobres, em casas precárias ou grandes cortiços com quartos de aluguel, precursores das favelas e lembrados ainda hoje pela literatura do tempo. A prioridade de Rodrigues Alves era mudar isso. Era transformar o Rio numa Paris tropical. Paris, assim como inúmeras capitais europeias, também entre os séculos 19 e 20 teve de se reinventar urbanisticamente, para que das estreitas vielas medievais renascesse como uma cidade moderna de bulevares largos, parques públicos, e alguma organização metódica.

A filosofia daquela República inicial era o positivismo do francês Auguste Comte — quase que uma religião secular, pela qual aprendia-se as lições da ciência para, com uma sensibilidade particular, organizar a sociedade de forma metódica. Como se, a partir de um extremo racionalismo bem aplicado, não houvesse o caos, o imprevisto. Está na bandeira: Ordem e Progresso. Pois era ordem e progresso que Rodrigues Alves queria para a capital. E ordem e progresso, baseados em ciência, seriam dados pelo engenheiro Francisco Pereira Passos, que providenciaria uma nova face urbanística ao Centro, e por Cruz, o jovem médico sanitarista que eliminaria daquela cidade infecta suas pragas.

Era precoce, Oswaldo Cruz. Entrou na Faculdade de Medicina aos 14 e, aos 25, já tinha boa parte dos cabelos grisalhos. Mas não o bigode. Quando um surto de peste bubônica estourou no Brasil, o governo brasileiro mandou pedir ao Instituto Pasteur, em Paris, que fosse enviado um especialista. Recebeu por resposta que não carecia pois já havia um dos melhores por perto. Cruz estudou lá, financiado pelo sogro. Em sua geração, havia sido um médico que não se interessou por clínica, mas a nova ciência dos microrganismos o fascinou. Tinha, pois, 27 anos naquele momento em que foi encarregado de montar um instituto — duas pequenas casas no bairro de Manguinhos, uma viagem diária por trem com baldeação, 40 minutos no total da ida, outros 40 na volta. Já era pai de três dos seis filhos que teria, um deles nascido na França quando estudava no Pasteur. Era tímido e falava pouco. Era obsessivo, estudioso, e mesmo num tempo em que a informação ia de um canto ao outro com muita lentidão, mantinha-se atento a tudo que havia de novo. Convocado pelo novo presidente a botar seu instituto recém-fundado em ação, decidiu por em prática um plano de combate a três doenças por ordem: peste bubônica, daí febre amarela e, por fim, a varíola.

Peste bubônica já se sabia fazia um tempo que era passada por ratos mas que o Aedes Aegypti era o responsável pela febre amarela havia sido descoberta de dois anos antes, do cubano Carlos Juan Finlay.

A Primeira República nasceu democrata, mas democrata naquele sentido muito particular de princípios do século 20. No Rio, apenas 20% da população votava. No resto do Brasil, era frequentemente menos. Não quer dizer que não houvesse participação popular. Havia, mas como dava: através de revoltas, uma após a outra. Para fazer da capital uma nova cidade, durante os anos do governo Rodrigues Alves o Centro foi sacudido. Só para abrir a avenida que o cruzaria de um canto ao outro, entre 1903 e 1904 foram derrubados 640 prédios, seus moradores despejados. Foi batizada Avenida Central, e hoje os cariocas a chamam Rio Branco. E enquanto as demolições ocorriam, as equipes sanitaristas de Oswaldo Cruz entravam em todas as casas, davam ordens para que obras fossem feitas, desinfetavam por toda parte, cuidando em essência para que fossem eliminados ratos e mosquitos. Isolavam os doentes em camas com mosquiteiros de filó. Queimavam nas casas uma mistura da flor Piretro e de enxofre, para expulsar os mosquitos. As casas eram invadidas com apoio de força policial, roupas e móveis, destruídos. Muitas vezes, os proprietários dos cortiços não tinham dinheiro para pagar pelas obras determinadas. Os donos dos casebres, muito menos. A alternativa era multa ou, mesmo, a derrubada do imóvel. Foi uma violência. E o combate à varíola, que se iniciaria no fim de 1804, seria mais complicado.

A ideia de inoculação de varíola é muito antiga. Há registros vindos da Idade Média de o pus das bolhas de uma versão mais branda da doença ser usado para provocar imunidade em pessoas, na Índia e na China. No século 18, um médico do interior inglês chamado Edward Jenner observou que os fazendeiros que lidavam com vacas leiteiras por vezes doentes de uma cepa bovina do mesmo vírus nunca tinham varíola. Vacca, em latim, e daí o nome de seu vírus específico. Variolae vaccinae, a varíola da vaca. Vacinar era, literalmente, aplicar aquela versão do vírus.

Mais de um século passado desde as experiências de Jenner, a ciência da sorologia, como era chamada a produção de vacinas, ainda estava em debate. Boa parte dos médicos brasileiros, incluindo alguns dos mais célebres, não haviam estudado fora, não conheciam a ciência de ponta. Quando o governo Rodrigues Alves baixou lei tornando obrigatória a vacinação, foi entre médicos que explodiu primeiro a polêmica. Argumentavam que a ideia de provocar uma versão leve da doença era perigosa, poderia infectar ao invés de imunizar. Poderia até matar. Oswaldo Cruz conhecia ciência de ponta mas não era dado a discursos, resguardava-se na timidez. Ele perdeu o debate.

Um debate que não ficou só entre eles. Parlamentares positivistas, por natureza conservadores, questionavam a decência. Como podia uma equipe de homens entrar na casa das pessoas, desnudar o braço das mulheres, com a desculpa de vacinar. Por outro lado, os liberais, atentos à opinião de médicos bem estabelecidos, também impuseram questionamentos. Afinal, a política de sair derrubando casas, de invadir casas com truculência para desinfetá-las, violava a Constituição. Violava princípios elementares de liberdade pessoal, e só vinha sendo possível, realmente, porque estava ocorrendo nas casas dos mais pobres. Se fosse nas da elite, jamais seria tolerada. Agora, nesta nova fase, impunha-se a obrigação de vacinar num ambiente em que muitos médicos alertavam para riscos que pareciam reais.

A revolta explodiu no dia 11 de novembro, em 1904, puxada por estudantes de Engenharia. E logo envolveu os moradores do Centro. Por três dias, a capital do Brasil virou uma praça de guerra. Notícias falsas circulavam — de que a vacina em verdade transmitia sífilis, por exemplo. Alguns líderes políticos incitavam os moradores fazendo com que se sentissem ameaçados na masculinidade. Enquanto eles saíam, suas mulheres e filhas teriam de se despir perante desconhecidos que só queriam favores sexuais. Não foi apenas uma Revolta da Vacina, foi também uma revolta contra a violência constante dos dois anos anteriores. Uma revolta incitada por demagogos. E uma revolta na qual o governo, e mesmo Oswaldo Cruz, se ausentaram perante quem pediu um debate público sobre a política. 700 pessoas foram presas, 65 feridas. E vinte morreram. A casa de Cruz foi apedrejada e precisou de proteção por um batalhão da polícia.

O sanitarista perdeu a guerra contra a varíola. Mas ganhou a contra a febre amarela — foi erradicada em 1907. Precoce em tudo na vida, Oswaldo Cruz morreu aos 55 anos, em 1917. Não chegou, assim, a ver seu antigo chefe ser reeleito presidente do Brasil, em 1918. O tempo fez com que a população mudasse a avaliação de sua política: treze anos após deixar o cargo, voltaria.

Mas não voltou.

Naquele princípio de 1918, os EUA começaram a registrar mortes por uma versão particularmente agressiva e contagiosa de influenza. Num tempo de transporte a navio e em que os carros mal chegavam a 60 km/h, demorou meses para chegar ao Brasil, em novembro. Já estava causando alarme em todo o mundo — a última grande pandemia, até esta. Era a gripe espanhola. Rodrigues Alves deveria tomar posse em 15 de novembro daquele ano, mas adoeceu — seu vice, Delfim Moreira, assumiu. O presidente eleito morreu em janeiro de 1919.

O governo do Brasil deu ordens para que aglomerações fossem evitadas, que escolas fossem fechadas, implorou para que as pessoas ficassem em casa. Mas a contenção não teve sucesso. No país, morreram 38 mil pessoas. Em 2020, novamente o jogo de desinformação por demagogos entra em meio ao debate sobre segurança sanitária. Mas, ao menos, o debate científico flui livremente.

Leia mais: Os Bestializados (Amazon) é um livro pequeno, extremamente bem escrito, sobre aqueles anos iniciais da República brasileira. É, talvez, o melhor de um dos maiores historiadores brasileiros vivos, José Murilo de Carvalho. Boa leitura para a quarentena.

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24/04/24 • 11:00

Em seu café da manhã com jornalistas, na terça-feira desta semana, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sugeriu que a extrema direita nasceu, no Brasil, em 2013. Ele vê nas Jornadas de Junho daquele ano a explosão do caos em que o país foi mergulhado a partir dali. Mais de dez anos passados, Lula ainda não compreendeu que não era o bolsonarismo que estava nas ruas brasileiras naquele momento. E, no entanto, seu diagnóstico não está de todo errado. Porque algo aconteceu, sim, em 2013. O que aconteceu está diretamente ligado ao caos em que o Brasil mergulhou e explica muito do desacerto político que vivemos não só em Brasília mas em toda a sociedade. Em 2013, Twitter e Facebook instalaram algoritmos para determinar o que vemos ao entrar nas duas redes sociais.

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