Primavera cripto?

Nesta semana o preço do Bitcoin voltou a ultrapassar o marco dos US$ 50 mil. Há um frenesi no ar, mas é fundamental conhecermos a origem de todos os hypes. A do Bitcoin foi em janeiro de 2009, quando um usuário anônimo divulgou um software para download em um fórum online. Satoshi Nakamoto propôs uma tecnologia disruptiva. Um algoritmo criptográfico que podia manter, de maneira descentralizada, o registro de todas as trocas de uma moeda digital, ou criptomoeda. A cada 10 minutos, um novo bloco com o registro de todas as transações feitas é processado. Algumas novas criptomoedas são criadas e distribuídas para aqueles que realizaram o trabalho de manter a rede ativa por mais um bloco. Uma sequência infindável de blocos, ou blockchain.

Aos poucos, os usuários do fórum frequentado por Satoshi foram lendo o paper e comprando a ideia, instalando o software da blockchain do Bitcoin para contribuir com a mineração dos blocos e a resiliência da nova rede descentralizada. Eram na sua maior parte cientistas, todos demonstrando um grande entusiasmo com o potencial revolucionário das blockchains: um novo sistema, capaz de registrar dados de maneira descentralizada, atribuindo recompensas em formas de criptomoedas para sua comunidade de mantenedores.

O primeiro uso em escala do Bitcoin foi como moeda de intermediação para transações online de forma anônima. Como se fosse dinheiro vivo, só que pela internet. Entre fevereiro de 2011 e julho de 2013, só o Silk Road, maior mercado em operação na época, movimentou 9,5 milhões de Bitcoins em vendas. Logo a mídia começou a fazer o seu trabalho, dando exemplos de uso com os mais belos enredos de serviços e produtos comprados na deep web. Isso atraiu mais curiosos, que enxergaram valor na tecnologia e começaram a desenvolver soluções. Novas ideias para outras blockchains começaram a pipocar e a tecnologia começou a se difundir com mais força.

A blockchain do Dogecoin, aquela do cachorrinho fofo, por exemplo. Surgiu em 2013 como uma sátira ao Bitcoin. Enquanto o original era programado pela escassez, a cópia engraçadinha primava pela abundância. Muitos Doges, a criptomoeda dessa rede descentralizada, eram criados e distribuídos para quem entrasse na brincadeira de ficar trocando a moedinha virtual. Hoje, o valor total de mercado desta piada é de US$ 12 bilhões e a prova definitiva de que a nova tecnologia abriga qualquer tipo de ideia.

Em 2014, surge a blockchain Ethereum. Hoje é a segunda maior em valor de mercado, com US$ 333 bilhões. Ela trouxe o conceito de “contratos inteligentes”. Se Bitcoin fosse um banco descentralizado, Ethereum seria um cartório descentralizado.

Os libertários engrossam o bloco

Além do blockchain, um conceito presente no Bitcoin que atraiu muito o interesse de cientistas econômicos é o do limite da quantidade de moedas emitidas: até o final dos tempos, só existirão 21 milhões de Bitcoins. Isso abriu caminho para a ascensão desta criptomoeda como um instrumento de defesa contra o imposto inflacionário (o mais traiçoeiro dos impostos, segundo os libertários).

Simplificando o argumento monetarista: quanto mais dinheiro o governo cria, mais ele se desvaloriza e mais caros ficam os ativos, produtos e serviços de uma economia (inclusive o Bitcoin). Algo com que nós, brasileiros, já estávamos familiarizados, mas menos óbvio para americanos e europeus. Isso até 2020, quando, por conta da pandemia, governos de países desenvolvidos pisaram fundo na expansão da base monetária para manter a economia ativa. O resultado foi o maior choque inflacionário dos últimos tempos e, como pregavam os economistas libertários, uma forte pressão de alta sobre o preço do Bitcoin. A ideia de Satoshi recebeu a bênção do todo poderoso mercado, que passou a enxergar a criptomoeda da mesma maneira que enxerga o ouro: um hedge contra a inflação.

Após 12 anos rodando, em 2021, o Bitcoin atingiu o pico das expectativas infladas. Chegou a ser cotado em US$ 68 mil, com direito a garotos propaganda como Tom Brady, astro do futebol americano, que colocou “olhos de raio laser” em seu avatar no Twitter, em um claro sinal de endosso ao movimento que vendia o sonho do Bitcoin a US$ 100 mil por conta do descontrole das contas do governo. Mas, como cantam Los Hermanos, todo carnaval tem seu fim.

Um longo inverno

A Gartner tem um modelo que busca explicar os ciclos de hype. Ele descreve como inovações tendem a atrair uma grande atenção do público e da mídia logo após a sua implementação, mas que toda essa onda se dissipa assim que as expectativas do público começam a se frustrar. O mercado costuma ser imediatista, poucos têm uma visão de longo prazo. A onda do Bitcoin a US$ 100 mil passou e quem tentou entrar na hora errada tomou um caixote. Uma grande ressaca financeira. O valor total do mercado de Bitcoin caiu de US$ 1,2 trilhão em outubro de 2021 para US$ 318 bilhões em julho de 2022. Quem sonhava com uma Lamborghini passou a ser alvo de piada.

Ressaca moral, de vários golpes aplicados, sonhos frustrados e confianças abaladas. O modelo da Gartner chama esse momento de “Vale das Desilusões”. Pura poesia em forma de números vermelhos na planilha. Sam Bankman Fried, o ilusionista que pagava o cachê do Tom Brady (e muitos outros) foi preso. Só esse escândalo da corretora FTX, que tinha sua própria blockchain e criptomoeda, ceifou US$ 8 bilhões de correntistas em 2022 e derrubou o preço de dezenas de criptomoedas que tinham seus valores artificialmente manipulados. A Binance, maior plataforma para troca de criptomoedas do mundo, que também tem uma blockchain com a sua própria criptomoeda (a terceira em valor total de mercado), também foi convidada a se retirar de alguns países. O pavor de criptomoedas atingia o seu grau máximo.

Mas, no jogo de gato e rato entre as agências regulatórias e as práticas de mercado, algo importante começou a ser forjado: discussões que elevariam o status de Bitcoin como um ativo válido para investimentos via fundos, os famosos ETF. Isso simplifica muito o trabalho de investir e coloca a criptomoeda ao lado de outras opções mais tradicionais como fundos imobiliários ou cambiais. Bitcoin deixou de ser “moeda de bandidos e ancaps” e hoje é percebido como “um investimento muito arriscado”.

Os fundos de Bitcoin já são comercializados no Brasil, com a aprovação da Comissão de Valores Mobiliários, a CVM, desde 2021. Nos Estados Unidos, depois de meses de especulação, a SEC enfim aprovou a sua comercialização em janeiro de 2024. Desde então, o ritmo de captação tem superado a casa dos bilhões de dólares por semana. E agora, na segunda semana do mês de fevereiro de 2024, o valor total do mercado de Bitcoin voltou a ultrapassar a marca de US$ 1 trilhão.

Mais um ‘halving’ vem aí

Voltando à história de que, a cada bloco, uma quantidade de Bitcoins é criada para remunerar quem está mantendo a rede de pé. O funcionamento da blockchain foi programado para diminuir progressivamente esta emissão de novas moedas, dando ao Bitcoin esse caráter escasso, o seu super-poder contra a inflação.

Quando o Bitcoin estava começando, esta recompensa era maior: 50 moedas por bloco. Em novembro de 2012, aconteceu o primeiro halving e essa recompensa foi cortada pela metade. Em julho de 2016, mais um: 12,5 por bloco. O terceiro aconteceu em maio de 2020, diminuindo para 6,25 moedas por bloco. Nesse ritmo exponencial, a quantidade de bitcoins criadas por bloco vai diminuir muito rápido e zerar até o ano de 2140, quando o número de Bitcoins existentes atingirá o seu máximo de 21 milhões de moedas.

O próximo halving está previsto para acontecer daqui a menos de 10 semanas, no próximo dia 18 de abril, o que está alimentando ainda mais o apetite dos especuladores. Se já existe uma forte pressão de alta hoje, por conta dos altos influxos pela liberação dos investimentos via fundos nos Estados Unidos, ela tende a aumentar quando a quantidade de novos bitcoins por dia for reduzida pela metade. Mais demanda, menos oferta: preços aumentam.

Não compre o hype

Todos os indícios nos levam a crer que o mercado cripto amadureceu nos últimos dois anos e está entrando no próximo momento previsto pelo modelo de inovação tecnológica da Gartner: a “Ladeira da Informação”. Nesta fase, as questões levantadas durante o vale da desilusão começam a ser abordadas. A tecnologia começa a ser compreendida de forma mais realista, e soluções para seus problemas são desenvolvidas. O interesse na tecnologia começa a aumentar novamente à medida que as empresas e indivíduos encontram maneiras de usar a tecnologia de forma mais eficaz.

Mas o preço atual do Bitcoin não exatamente representa o valor da rede. Existem diversos fatores, como especulação e sentimento do mercado, que podem influenciar muito mais no preço — os efeitos da aprovação dos fundos pela SEC em janeiro e o halving de abril provavelmente já foram assimilados pelo mercado. O “Fear and Greed Index” está em níveis de ganância semelhantes aos do oba-oba dos olhinhos de raio laser em 2021.

Em tempos de euforia, a cautela deve ser redobrada. E a ganância de ganhar o dobro precisa ser consciente do risco de se perder o triplo. Modelos prevendo os ciclos de hype podem ser uma boa ferramenta para entender o quadro geral, mas cada situação é específica. A cripto economia foi inaugurada com o Bitcoin e sua blockchain, mas à reboque temos diversas outras iniciativas: Ethereum, Solana, DeSo… Todas prometem disrupções e acompanham os momentos de alta do Bitcoin, mas ainda estão bem atrás na curva evolutiva e no volume de adoção.

O fato é que neste momento, em que o Bitcoin e outras criptomoedas retomam sua trajetória ascendente, fica cada vez mais difícil ignorar o impacto e a complexidade do funcionamento das blockchains. Familiarize-se com alguns projetos e traga suas próprias questões para carregar consigo na ladeira da informação.

Encontrou algum problema no site? Entre em contato.

Se você já é assinante faça o login aqui.

Fake news são um problema

O Meio é a solução.

R$15

Mensal

R$150

Anual(economize dois meses)

Mas espere, tem mais!

Edições exclusivas para assinantes

Todo sábado você recebe uma newsletter com artigos apurados cuidadosamente durante a semana. Política, tecnologia, cultura, comportamento, entre outros temas importantes do momento.


R$15

Mensal

R$150

Anual
(economize 2 meses)
Edição de Sábado: Depois da tempestade
Edição de Sábado: Nossa Senhora de Copacabana
Edição de Sábado: O jogo duplo de Pacheco
Edição de Sábado: A política da vingança
Edição de Sábado: A ideologia de Elon Musk

Meio Político

Toda quarta, um artigo que tenta explicar o inexplicável: a política brasileira e mundial.


R$15

Mensal

R$150

Anual
(economize 2 meses)

O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

Sala secreta do #MesaDoMeio

Participe via chat dos nossos debates ao vivo.


R$15

Mensal

R$150

Anual
(economize 2 meses)

Outras vantagens!

  • Entrega prioritária – sua newsletter chega nos primeiros minutos da manhã.
  • Descontos nos cursos e na Loja do Meio

R$15

Mensal

R$150

Anual
(economize 2 meses)