Quando a PM tomou o poder

No final da tarde de 3 de outubro, em 1930, a Brigada Militar do Rio Grande do Sul passou em marcha pelos portões do Quartel-General da 3a Região Militar. Aqueles soldados gaúchos atendiam por este nome, Brigada Militar, desde que foram consolidados numa só força, em 1892, pouco tempo após a Proclamação da República. Exerciam dois papeis simultâneos — eram como que um pequeno exército estadual, mas eram também uma polícia militar, uniformizada e obediente ao governador. Em 1968, passaram a atender por este nome. Polícia Militar do Rio Grande do Sul. Mas, em 1930, eram ainda a Brigada Militar e, na tarde daquele 3 de outubro, passaram em marcha perante o QG do Exército Brasileiro em Porto Alegre.

As sentinelas não prestaram muita atenção naquela marcha. Ela começara a ocorrer todos os dias após o fim do expediente umas semanas antes. Eram ordens de Oswaldo Aranha, secretário do Interior do governador Getúlio Vargas. Os policiais marchariam pelas ruas da capital antes do toque de recolher, dariam algumas voltas, sempre passariam em frente ao QG. O objetivo de Aranha era este mesmo. Que os militares do Exército se acostumassem com aquele exercício.

Quando assumiu o governo dois anos antes, Vargas tratou de arrumar a casa. Durante todo o período republicano até ali, o Rio Grande do Sul esteve dividido em dois grupos. Houve revoltas separatistas, tentativas de golpe, brigas de toda sorte entre brancos e colorados, entre ximangos e maragatos. Para Getúlio, aquilo enfraquecia o estado. A Primeira República tinha por característica um acordo entre São Paulo e Minas pela alternância de poder. Mais de uma vez, estados grandes como o Rio Grande, a Bahia e Pernambuco ensaiaram se rebelar contra o esquema. Mas nunca o faziam juntos e, em detrimento deles mesmos, os gaúchos pareciam sempre mais preocupados com suas divisões internas. Se a política nacional era para mudar, antes era necessário pacificar o Rio Grande do Sul. Foi a isso que Getúlio Vargas se dedicou nos primeiros dois anos de governo. Aí, saiu candidato à presidência da República.

Mas perdeu.

Perdeu, claro, como perdiam os candidatos derrotados em todos os pleitos, em eleições sempre fraudadas seguindo a orientação dos grupos políticos regionais. Só que a eleição de 1930, em que venceu o paulista Júlio Prestes, havia sido diferente. Porque Prestes, o governador paulista, ia suceder a Washington Luís, outro que deixara o governo de São Paulo para assumir a presidência. Os paulistas haviam se sentido poderosos o suficiente para ignorar o acordo de alternância com os mineiros. Alijados do processo, os políticos mineiros toparam dar apoio à chapa liderada pelo governador gaúcho. Formaram a Aliança Liberal. Que, naturalmente, perdeu a eleição.

Foi perder nas urnas para que uma revolução começasse a ser planejada. Por ela, pela revolução, que o secretário do Interior — atual pasta de Segurança — deu ordens para que a Brigada Militar começasse a marchar todo fim de tarde em frente ao QG do Exército. Para acostumar os soldados, para não alertá-los. A revolução seria combatida pela polícia militar.

A cena de costume se repetiu naquele 3 de outubro, mas tudo foi diferente. Quando as tropas policiais passavam, rajadas de metralhadoras vindas dos prédios em frente se voltaram contra as sentinelas e o pátio do quartel-general. Aproveitando-se da surpresa, os policiais militares partiram para dentro. O fogo foi cerrado por dez, vinte minutos — não chegou a meia hora. E o comandante da 3a Região, o general Gil de Almeida, caiu preso. A partir dali, ao longo da noite, um quartel após o outro do Exército, em todo o estado do Rio Grande do Sul, foi caindo. Em Minas Gerais, o mesmo estava ocorrendo. “Foi um lance épico”, escreveu em seu diário o governador Getúlio Vargas.

A partir dali, as tropas — agora um exército misto de policiais e soldados do Exército que se viraram contra o presidente — iniciaram seu avanço na direção do Rio de Janeiro, a capital federal. Quando enfim chegaram, sequer tiveram trabalho. Washington Luís estava preso e Júlio Prestes, vitorioso na eleição, não tomaria posse.

Esta é uma memória perdida: a Revolução de 1930, que pôs fim à Primeira República, foi feita inicialmente pelas polícias militares. Elas não estavam aquarteladas. Seguiam ordens superiores. Ordens dos governadores que haviam, eles sim, se levantado em revolta contra o governo federal. O medo que existe atualmente, de que revoltas dentro de quarteis PMs possam tumultuar o país, é diferente. Parte de um princípio oposto — o de que, insuflados pelo presidente, os próprios PMs, de forma autônoma, se levantassem em revolta.

Também isto — uma revolta autônoma de PMs — já ocorreu. Foi antes, em 1924, na cidade de São Paulo.

Em 1922, um grupo de soldados liderados pelos tenentes Eduardo Gomes e Siqueira Campos, deixou o Forte de Copacabana, no Rio de Janeiro, para derrubar o governo Epitácio Pessoa. Eram do Exército e estavam tentando dar um golpe militar para encerrar o regime. Aquilo abriu a série de levantes que chamamos Tenentismo. Perderam em 22, mas só dois anos depois Siqueira e Gomes estavam lá, de volta, para tentar derrubar o sucessor de Epitácio, Arthur Bernardes. A missão de Eduardo Gomes era revoltar São Paulo. Conseguiu. Mas o coração das tropas que mobilizou, desta vez, não era do Exército. Eram da Força Pública — a atual PMSP — comandada pelo major Miguel Costa.

Em 5 de julho de 1924, dia do aniversário dos 18 do Forte, Costa revoltou sua tropa do Regimento de Cavalaria da Força Pública, derrotou e converteu à causa um batalhão do Exército, e partiu para tomar o Batalhão de Infantaria. Foi uma batalha árdua que só terminou quando o quartel foi bombardeado pela PM. Sim, bombardeado. Com a vitória da polícia militar sobre o Exército, o governador paulista Carlos de Campos fugiu para o interior e a capital caiu. Por um mês os revolucionários mantiveram controle da cidade até que Bernardes ordenou ao Exército que a bombardeasse. São Paulo não resistiu às bombas — e as tropas de Costa deixaram a cidade para formar aquilo que a história batizaria Coluna Prestes. O capitão do Exército Luís Carlos Prestes pode ter dado nome à Coluna, mas era o número dois no comando. O número um era o oficial PM Miguel Costa.

Por mais de um ano caminharam pelo país para tentar fazer a revolução. Não conseguiram. Até 1930.

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‘Mapa de apoios está desfavorável ao Irã e sua visão de futuro’, diz Abbas Milani

17/04/24 • 11:00

O professor Abbas Milani nasceu no Irã. Foi preso pelo regime do xá Reza Pahlavi. Depois, perseguido pelo regime islâmico do aiatolá Khomeini. Buscou abrigo nos Estados Unidos na década de 1980, de onde nunca deixou de lutar por uma democracia em seu país de origem. Chegou a prestar consultoria a George W. Bush e Barack Obama, numa louvável disposição de colaboração bipartidária. Seu conselho sempre foi o mesmo: o Irã deve se reencontrar com um regime democrático, secular, por sua própria conta. Sem interferências externas.

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