Quanto vale um preso?
“Estarão as prisões obsoletas?”, pergunta Angela Davis em seu livro que leva o mesmo nome e discute a reforma e o fim do sistema prisional. Na obra, a filósofa americana e militante do abolicionismo penal questiona como tantas pessoas foram presas sem que houvesse maiores debates sobre a eficácia do encarceramento. “A prisão é considerada algo tão ‘natural’ que é extremamente difícil imaginar a vida sem ela (…) um fato inevitável da vida, como o nascimento e a morte”, constata Davis.
Os Estados Unidos, que têm a maior população carcerária do mundo, caminham para reduzir as taxas de aprisionamento. Já nos primeiros dias de mandato, o presidente Joe Biden publicou decretos para combater a desigualdade racial e encerrou contratos com prisões privadas — um dos fatores para o encarceramento em massa do país. O Brasil, que desde 2017 tem a terceira maior população carcerária do mundo, vai na direção contrária. Em abril deste ano, o governo federal assinou um decreto no qual inclui o sistema prisional nos “projetos de investimento considerados como prioritários na área de infraestrutura ou de produção econômica intensiva em pesquisa, desenvolvimento e inovação”, incentivando a privatização de presídios por meio de isenções fiscais e aporte financeiro por parte do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
No dia 6 deste mês de outubro, a Soluções Serviços Terceirizados LTDA venceu o leilão para construir e administrar um presídio em Erechim, no Rio Grande do Sul. O contrato é de 30 anos e o subsídio por parte do BNDES será de R$150 milhões. A previsão para início das obras do presídio de Erechim é em até 24 meses após a assinatura do contrato, que deve acontecer no primeiro trimestre de 2024.
Especialistas não veem com otimismo a guinada à privatização do sistema prisional que o Brasil vem dando. “Preso não é para servir para ser processo de lucro. Estamos colocando sujeitos privados de liberdade na mão de empresas que estão mais preocupadas com o lucro do que a integração harmônica social dos presos”, aponta Roberto Moura, coordenador do Departamento de Sistema Prisional do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).
O Brasil já conta com um modelo de parceria público-privada (PPP) na cidade de Ribeirão das Neves, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Inaugurado em 2013, o complexo prisional tem 2.164 vagas. O Estado paga R$ 167,03 por dia por vaga ocupada — mensalmente, são cerca de R$ 5,2 mil por apenado. No contrato do Rio Grande do Sul, o valor repassado à empresa será de R$ 233 por vaga/dia, média de R$ 7,2 mil mensais. Conforme o governo do estado, o valor não se refere somente ao preso, mas inclui a construção das duas unidades, que contarão com 1.200 vagas, operação do presídio, equipamentos, alimentação, saúde e educação. O gasto mensal com apenados em penitenciárias públicas gaúchas é de R$ 2,8 mil (cerca de R$ 90,32 vaga/dia).
Como decidir quem vai merecer esse maior “investimento” do poder público? “O Estado administra o sistema prisional com valores muito baixos e irá pagar para a empresa muito mais do que tem previsto para os presos de maneira geral. Que bom se fosse um valor alto para o atendimento de todos os presos. Mas, assim, é direcionado um recurso para esse presídio especificamente, que o restante do serviço não tem”, afirma Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, sociólogo, professor da Escola de Direito da PUCRS e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
O sistema prisional brasileiro conta com 34 operações em cogestão com a iniciativa privada. Neste modelo, serviços como alimentação, assistência de saúde, e vestuário são gerenciados por empresas. De acordo com dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen), a Bahia é o estado com mais presídios em cogestão, com 11 unidades, seguido pelo Amazonas, com 9. Entretanto, a administração dos locais ainda é feita pelo Estado. “Nesses contratos de parceria público-privada, há cláusulas para que Estado garanta uma taxa mínima de ocupação da unidade prisional e a remuneração é calculada por pessoa encarcerada. A empresa irá ganhar X por detento. Quanto mais pessoas encarceradas, maior o aporte para a empresa”, explica Thandara Santos, cientista social e associada do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Até junho deste ano, conforme o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023 (íntegra), são 832.295 pessoas privadas de liberdade no Brasil — para cerca de 600 mil vagas do sistema penitenciário. Houve um crescimento de 0,9% na taxa de presos em relação a 2022. O temor dos especialistas é que o Brasil passe por uma nova onda de encarceramento em massa, problema aumentado pela Lei de Drogas de 2006, que impulsionou o aprisionamento de pessoas, principalmente pobres e pretas, no país. Segundo o Anuário, os presos são, em sua maioria, jovens de até 29 anos (43,1% da população carcerária) e negros (68,2%). “Os contratos muito longos, de 30 anos, as cláusulas que garantem uma taxa de lotação, que remuneram por encarcerado, tudo isso promove o encarceramento em massa como uma prática lucrativa. É uma distorção completa do que seria a política penal pautada por direitos humanos”, complementa Thandara.
O sociólogo Azevedo discorda e duvida que o Judiciário, a quem cabe a atribuição de responsabilizar criminalmente um cidadão, vá trabalhar em função disso. “A tarefa de condenar e executar a pena é do Estado, não da iniciativa privada. É uma tarefa do Judiciário. E falar que o Judiciário vai condenar mais para beneficiar empresas não é lógico”, reforça. Nos EUA, há casos de juízes subornados por donos de presídios para prender mais. Mesmo sem a relação direta da propina, há estudos que mostram que a adoção de prisões privadas aumenta o índice de encarceramento, e a duração das penas, no longo prazo.
Em sua obra, Davis questiona a presunção de que aprisionar uma proporção cada vez maior de americanos traria mais segurança e proteção para aqueles que vivem em liberdade. “Por que as prisões tendem a fazer com que as pessoas pensem que seus próprios direitos e liberdades estão mais protegidos do que estariam se elas não existissem?”. O Brasil segue construindo mais penitenciárias. “É o populismo penal. Uma resposta para a opinião pública sobre o que se está fazendo com as pessoas que a população não quer ver. A população não quer ter contato com quem interage com o sistema de Justiça Criminal. Investir na política de encarceramento em massa sempre foi lucrativo do ponto de vista eleitoral”, aponta Thandara.
Neste ponto, ela está em sintonia com a crítica de Azevedo. Para o sociólogo, é preciso, sim, investir no sistema prisional, mas como um todo, para se melhorar problemas de gestão, saúde, alimentação. “Por que colocar esses recursos nas mãos da iniciativa privada, se todo o sistema está carente? Se o estado não tem recurso para manter os presos atuais, porque ele investiria muito mais que o dobro para a iniciativa privada?”, questiona.
Em setembro, 86 entidades emitiram uma nota técnica contra a privatização do sistema prisional e os recentes incentivos do governo federal para a transferência da gestão dos presídios à iniciativa privada.
A privatização do sistema prisional transita pelos governos, sejam de direita, extrema direita ou esquerda. Em 2016, Michel Temer já planejava as concessões da gestão dos presídios. Posteriormente, Anderson Torres, ministro da Justiça do governo Bolsonaro, reviveu a ideia. Em 2020, houve uma tentativa de realizar o leilão para a construção do presídio em Erechim, mas não houve candidatos habilitados. Segundo Thandara, “essa política perpassa diferentes espectros ideológicos. Tem uma pressão privada e tem uma pressão da opinião pública mesmo”.
A pauta da privatização está dividindo o governo Lula. Além do financiamento do presídio gaúcho, o BNDES, comandado por Aloizio Mercadante, apresentou um plano para a construção de um complexo em Blumenau, em Santa Catarina. Entretanto, o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, apoia as entidades autoras da nota técnica e deve pedir a exclusão das parcerias com o setor privado. “Quando se trata de questões de política de segurança pública, Lula e Bolsonaro se unem. A plataforma de Segurança Pública é muito calcada em política de tolerância zero, de inimizade e neutralização. Não é calcada na política de integração harmônica social, voltada à política pública de estudos. É uma política de espetacularização de corpos pretos e pobres”, completa Moura.