Uma instituição brasileira, por dentro
Eros começa com uma câmera subjetiva em que uma pessoa chega a um motel e pede uma suíte. Logo você entende que essa pessoa é a diretora do filme, que começa a contar o que a atrai sobre a ideia de motel e que havia convidado outra pessoa para filmar com ela nesta instituição brasileira. Conforme o tempo vai passando, ela se despe, se filma de diferentes ângulos. E, para a frustração dela e do espectador, a companhia nunca chega. Rachel Daisy Ellis tomou um belo bolo.
Mas outras pessoas não foram tão recatadas e toparam se filmar em diferentes motéis do país para o documentário que está em cartaz nos cinemas. “Inclusive este é um filme bom de ver no cinema, com pessoas em volta, vira uma experiência aumentada”, defende a diretora inglesa radicada no Recife desde 2004. Vi o filme na telona e, de fato, é interessante dividir essas intimidades com outras pessoas. O filme é plural na escolha dos personagens. Sem dar spoiler, há casais de todo tipo e formato. Embora tenha sexo explícito, é muito menos sobre o ato sexual em si do que a respeito de mostrar diferentes maneiras de viver a sexualidade, com muitas reflexões preciosas sobre a vida, nossa estrutura social, e claro, sobre as diferentes motivações para frequentar motéis.
Eros é o primeiro longa-metragem de Rachel como diretora, mas há 15 anos ela é a produtora dos filmes de Gabriel Mascaro, e corroterista de alguns deles. O trabalho mais recente dos dois, O Último Azul, premiado no Festival de Berlim deste ano, chega aos cinemas em agosto. Mas a nossa conversa foi muito sobre como ela conseguiu chegar a esse resultado único de exposição e intimidade. Leia os principais trechos da entrevista.
Você é inglesa e veio morar no Recife em 2004. Como enxerga o motel na cultura brasileira?
Cheguei no Brasil, 2004, era jovem e não conhecia motel, porque não tem essa cultura na Europa. Eu conheci com uma pessoa que me convidou para ir e fiquei impressionada que existisse esse lugar só para transar. Logo de cara me despertou uma curiosidade muito grande sobre algumas coisas que ficaram comigo durante muitos anos, até eu decidir fazer o filme. Aquilo era uma novidade total para mim, mas todos os meus amigos brasileiros achavam que tinha motel no mundo todo. Tem até em alguns outros países. No Japão tem uma cultura muito forte. Tem bastante no México, em outros lugares da América Latina, em Portugal. Mas não é como no Brasil.
O que tem de singular por aqui?
O motel é, ao mesmo tempo, muito integrado no cotidiano, no imaginário popular e na ideia de como são conduzidas as relações sexuais, românticas. Uma camada que me interessou desde o início era essa ideia de um lugar gritante, que você vê de longe, só que esconde totalmente a identidade das pessoas lá dentro. Passei muito tempo pensando sobre essa relação entre corpo, espaço, arquitetura. Quando pensei que queria fazer um filme sobre isso, comecei a pesquisar se havia outros documentários sobre motel e fui surpreendida porque não tinha nada. O motel era representado em novelas, nas pornochanchadas, mas de uma forma muito estereotipada. Não encontrei nas artes, no cinema, algo que investigasse esse espaço.
Agora tem o seu filme e Motel Destino, do Karim Aïnouz, que é uma ficção.
Sim, mas são filmes muito diferentes.
Uma coisa interessante do Eros é que ele não fala apenas de motel. É um comentário muito forte sobre essa nossa cultura da autoexposição, que atinge níveis impensáveis com as redes mas também com essa conexão feita por apps de relacionamento, pelo WhatsApp, com a troca de nudes. Como você enxerga esse universo de se filmar e de se mostrar na intimidade?
É algo que faz muito parte da maneira que as pessoas se relacionam hoje. Não tenho nenhuma opinião formada se é bom ou ruim. É uma ferramenta que a gente tem nas mãos e pode usar entre adultos, e deveria ser restrita só a eles num jogo de sedução. Tive a ideia de que convidar as pessoas a se filmar poderia funcionar. Por que eu queria fazer um filme sobre motel, mas como fazer isso? Ir para um motel filmar as pessoas lá dentro não teria nenhuma graça. As pessoas não iriam se sentir nada à vontade. Eu tive uma experiência de produzir o Doméstica, de Gabriel Mascaro, há 15 anos, e já tinha essa experiência com a autoimagem, então foi um caminho muito natural para mim. Tive uma pequena preocupação no início, antes de ver as primeiras imagens, de vir vídeos tipo OnlyFans, XVideos, esses vídeos caseiros que têm aos milhões na internet.
O que veio nessas primeiras imagens?
Quando vi os primeiros casais que se filmaram, foi muito mágico. Não por acaso foram os casais religiosos. Entendi que tinha um filme. Era como se o convite para participar oferecesse um palco de certa maneira onde eles podiam explorar suas visões da vida e reflexões sobre suas relações e também sobre o espaço.
Como foi o processo de escolher as pessoas que iriam contribuir com imagens feitas para o filme. Teve gente que mandou imagens e que você acabou não aproveitando?
Duas situações não entraram no filme, mas foi uma questão de espaço, de edição. Todo mundo que está no filme entrou através de um processo de pesquisa. Eu e os pesquisadores falamos com muita gente porque havia um desejo de ouvir muitas histórias, para entender quem são essas pessoas, os diversos usos, as motivações e desejos que existem no motel. Fui descobrindo que muito do que a gente entende de motel — que é só para infidelidade, para sexo pago e para jovens transarem pela primeira vez — era redutor. A maioria das pessoas que usam motel são casais monogâmicos, que usam como um refúgio, um lugar para viver sua sexualidade e seus desejos de uma maneira que não conseguem no dia-a-dia. Queria fazer essa provocação.
Foi fácil fazer as pessoas se filmarem?
Muita gente não topou, mas no final você tem um conjunto de pessoas com desejo de falar algo para o mundo.
E como é que você fez para garantir a qualidade das imagens?
A única orientação que dei sobre fotografia era de filmar na horizontal. E não foi 100% aceita, tem algumas imagens na vertical, mas que não quis tirar do filme. Eu pedi para as pessoas falarem de certas coisas, a partir das pesquisas, mas eles não necessariamente seguiam isso. Sempre tinha surpresa, coisas que surgiram na filmagem que nunca tínhamos conversado. As escolhas de fotografia foi 100% deles.
Uma surpresa para mim foi como o sexo e religião aparecem com força no filme, de uma maneira nada óbvia, que captura um outro lado do Brasil evangélico. Tinha esse direcionamento?
Quando comecei a falar com as pessoas, tinham só dois perfis que queria muito incluir no filme e o resto estava um pouco mais aberto. Queria muito incluir um casal de mais idade, até mais velho do que o casal retratado no filme, que foi o mais difícil de encontrar, demorou dois anos. Por que eu queria refletir sobre o desejo e a sexualidade na terceira idade, que ainda existe e é bem vivo. E queria encontrar casais evangélicos. Um pouco para desafiar o imaginário do uso de motel. A pesquisadora encontrou dois casais [um hétero e um gay], e foi muito incrível, muito impressionante a forma como eles pensam. A relação do sexo com o divino, da sexualidade mais integrada de um ponto de vista mais filosófico, da união mais espiritual entre as pessoas. Ambos falam coisas muito incríveis e fazem reflexões sobre coisas que são muito maiores do que a sexualidade deles, como se aquilo abrisse uma porta para refletir sobre algo muito maior. O Brasil é muito religioso e no final a gente conseguiu um equilíbrio, que mostra que religiosidade e espiritualidade têm muito a ver com sexo historicamente.
Falando em sexo e religião, lembrei de Divino Amor, que você foi corroterista junto com o Gabriel Mascaro. Você é produtora dos filmes dele, inclusive de O último Azul, que levou o Urso de Prata no Festival de Berlim deste ano. Queria entender a importância dessa parceria para você.
Comecei a fazer filmes com Gabriel. Um processo muito incrível. Ao longo de 15 anos a gente vem criando e fazendo filmes juntos, tem sido uma parceria muito grande, profissional, criativa e artística. Lembro quando falei do Eros para ele, que foi uma das primeiras pessoas que mais me encorajaram a dirigir. Sempre me senti realizada produzindo os filmes dele. Mas começou a rolar um momento em que eu percebi que eu estava tendo ideias que eu mesma precisava realizar. Como produtor, às vezes a gente contribui muito criativamente nos projetos dos outros. Mas tem uma hora que você precisa fazer a sua ideia.
Tenho uma última pergunta para você. Você deu uma segunda chance para a pessoa que te deu um bolo no motel?
Se eu dei? Ah, não sei se deveria responder, se bem que na verdade eu convidei mais de uma pessoa para fazer uma filmagem comigo. Elas não toparam, mas eram pessoas que já tinha uma certa relação. Então, dei uma chance, mas foi bem frustrante.