Os EUA flertam com ruptura institucional

A morte da juíza Ruth Bader Ginsburg, a seis semanas das eleições presidenciais americanas, lançou o país na boca de uma crise política sem precedentes. Uma crise que lança dúvidas a respeito da própria democracia americana. Uma crise que, no limite, pode até alterar o resultado da própria eleição de 3 de novembro.

O cenário

Juízes da Suprema Corte são indicados por quem ocupa a presidência da República, depois sabatinados e aprovados por maioria simples no Senado. Em média, desde 1975, o processo entre a escolha do nome e a aprovação demora 67 dias. O presidente Trump deve anunciar entre hoje, sábado, e a próxima segunda-feira a pessoa que considera mais apta a substituir Ginsburg.

Ou seja, em condições normais, a substituição ocorreria na primeira semana de dezembro. Quase um mês após o pleito. Quem tem, neste momento, todas as peças nas mãos para definir o jogo é o Partido Republicano: Donald Trump na Casa Branca e maioria, ainda que tímida, no Senado. Mas é assim no momento e apenas.

Dos cem senadores, 53 são republicanos. Nas eleições de 3 de novembro, sete vagas para o Senado, de acordo com as pesquisas, estão em disputa cerrada. Delas, apenas uma é ocupada por um democrata. Na previsão do site de análise estatística FiveThirtyEight, os democratas têm 61% de chances de assumir o controle da Casa. Mas isso é só em janeiro.

A história complica. Uma das eleições mais disputadas é a do Arizona, e a atual senadora Martha McSally — republicana — pode ser derrotada pelo ex-astronauta democrata Mark Kelly. Dependendo da pesquisa, um ou outro aparece na frente, com diferença nunca maior do que de dois pontos percentuais. Ocorre que é uma eleição especial. McSally ocupa a vaga mas não foi eleita, foi indicada pelo governador após a morte do senador John McCain para substituí-lo. E, em sendo uma eleição especial, quem for escolhido pelo voto ocupa a cadeira imediatamente. Ou seja, não espera janeiro. Se Kelly vencer, em meados de novembro a maioria republicana cai de 53 para 52.

Para um nome da Suprema Corte ser confirmado, são necessários 51 votos.

A decisão sobre a estratégia está nas mãos do líder da maioria, o senador Mitch McConnell, do Kentucky. McConnell não pretende esperar tanto. Ele gostaria de ter um nome aprovado ainda em outubro. É possível que consiga, mas será por um triz. Duas senadoras de seu partido que disputam eleições difíceis, Susan Collins (Maine) e Lisa Murkowski (Alaska), já afirmaram que serão contra fazer a escolha antes da eleição presidencial. McConnell tem, portanto, 51 votos. É o suficiente. Se cair a 50, o Senado é presidido pelo vice-presidente Mike Pence, que pode decidir quando há empate. Quer dizer: McConnell tem gordura de um voto. Caso perca dois por pressão das pesquisas, não consegue.

O prêmio é fácil de compreender: uma sólida maioria de 6 conservadores contra três progressistas na Suprema Corte. E, num país dividido, decisões da Suprema Corte vêm determinando o comportamento há anos. O aborto é legal, nos EUA, porque a Corte assim o definiu, em 1973. O casamento LGBT também é legal por decisão da Corte, em 2015. Assim como o financiamento de campanhas eleitorais por entidades privadas é possível por decisão da Corte, tomada em 2010. E esta é, hoje, uma das principais fontes de dinheiro para os candidatos republicanos.

Com juízes jovens, e sem limite de idade para seus mandatos, esta maioria sólida para os conservadores vai perdurar por décadas. Mas, caso ela se forme, será com base em crassa hipocrisia. Os democratas têm como se defender. E, aí, será numa guerra dura. Confronto político direto. Um momento no qual os dois partidos tiram as luvas e flertam abertamente com crises constitucionais.

Hipocrisia?

Em 13 de fevereiro de 2016, o juiz Antonin Scalia foi encontrado morto em sua cama, num rancho texano onde estava hospedado. Tinha 79 anos e um longo histórico de complicações cardíacas. Era um dos mais próximos amigos pessoais de Ruth Ginsburg na Corte e também o mais sólido jurista conservador do time de nove supremes. O presidente Barack Obama indicou para substituí-lo um juiz moderado, Merrick Garland. Naquele ano, Mitch McConnell liderava uma maioria republicana ainda mais estreita, de 51 senadores. Foi o suficiente para bloquear qualquer avaliação do nome.

O argumento de McConnell era simples: Scalia havia morrido em ano eleitoral. O povo deveria decidir os critérios para a substituição ao escolher o novo presidente. Quando novembro veio, e Donald Trump foi eleito por estreita margem, a aposta do senador veterano foi recompensada.

Scalia morreu no início de fevereiro. Ginsburg, no final de setembro. Em anos eleitorais.

McConnell tenta escapar da acusação de hipocrisia com um argumento. Em 2016, o presidente era democrata e, o Senado, republicano. Havia um racha. Agora é diferente pois a manifestação do desejo popular pôs em ambos os braços — presidência e Senado — um mesmo partido. O argumento é forçado pois ele jamais havia feito qualquer ponderação antes. É igualmente forçado porque as pesquisas sugerem a possibilidade de que esta realidade pode mudar em semanas.

Em alguns casos, a acusação de hipocrisia é ainda mais clara. O presidente do Comitê para o Judiciário, que coordena a sabatina dos candidatos à Corte, é o senador da Carolina do Sul Lindsey Graham. Em 2016, ele não poderia ter sido mais claro. “Quero que vocês usem minhas palavras contra mim”, afirmou no plenário. “Se houver um presidente republicano e a vaga surgir no último ano de seu mandato, podem dizer que Lindsey Graham afirmou que o próximo presidente, não importa quem seja, deve indicar o nome.” Em 2018, ao assumir o Comitê, Graham repetiu a garantia. “Se aparecer uma vaga no último ano do mandato do presidente Trump, nós vamos esperar a próxima eleição.”

Nunca, na história, um candidato à Suprema Corte foi definido no segundo semestre de um ano eleitoral. Nunca.

Pois os republicanos mudaram a regra do jogo. É legal, só vai contra a tradição. Por um lado, a movimentação tem favorecido financeiramente o Partido Democrata — eleitores indignados vêm contribuindo financeiramente com a legenda, doando quantidades de dinheiro muito superiores ao que os adversários têm conseguido angariar.

McConnell é tido como um estrategista político hábil, em grande parte responsável pelas vitórias no Parlamento do governo de Donald Trump. Ele construiu ao longo dos anos uma técnica dupla e uma visão de como atuar politicamente. A técnica, no início, envolve explorar questões muito caras ao eleitorado do partido, como o aborto, para levantar apoio popular. No caso da Suprema Corte, é justamente a possibilidade de reverter a leitura da Constituição que legalizou o aborto sua maior promessa. O maior atrativo para seu eleitorado.

A mais cotada para ser indicada por Trump, Amy Coney Barrett, é uma católica devota, ainda jovem aos 48 anos de idade. Ligada a uma ordem que tem origem na Renovação Carismática, é vista como hiper-conservadora.

Enquanto acena em público com causas populares entre conservadores, em privado McConnell é muito preocupado com o financiamento de seu grupo político. É um fervoroso defensor de diminuir quaisquer regulamentações que afetem o setor privado — ambientais, trabalhistas de toda sorte. Em troca, tornou-se uma máquina de levantar fundos de campanha a partir de grandes corporações ligadas a alguns setores. O Vale do Silício, por exemplo, quer distância. A indústria de energia limpa, idem.

Em sua visão, a maneira mais segura de manter a política neste fluxo é através dos tribunais. O Senado aprova não apenas os candidatos à Suprema Corte, mas também os juízes federais em geral. E, nos últimos anos, a dobradinha McConnell e Graham vem cuidando de tornar o colegiado de juízes cada vez mais conservadores no comportamento e anti-regulação na economia. Porque maiorias políticas podem mudar a cada eleição. Mas quem tem o poder de reverter decisões parlamentares e presidenciais são, justamente, estes juízes.

A ameaça eleitoral

A principal arma de McConnell, no comando estratégico do Partido Republicano, vem sendo aproveitar os mecanismos contramajoritários do sistema político em seu favor. O país foi construído para impedir que a democracia se tornasse uma ditadura da maioria. Uma das ferramentas para isso é justamente o Senado — cada estado indica dois nomes sempre, não importa seu tamanho. Desta forma, a Califórnia, com seus 40 milhões de habitantes, terá dois senadores. O Wyoming, com seus 600 mil, também. Há 50 estados, são cem senadores.

Outro mecanismo é o Colégio Eleitoral. As eleições presidenciais são estaduais, não nacionais. Cada estado escolhe seu vencedor e conta com um número de eleitores que manda ao Colégio. A Califórnia tem direito a 55 votos, o Wyoming tem três. Proporcionalmente, isto quer dizer que o voto de cada cidadão do Wyoming vale muito mais do que o de um californiano. Hillary Clinton venceu Donald Trump no critério do voto popular. Mas perdeu no Colégio Eleitoral. Nas contas de demógrafos ligados à ciência política este padrão deve começar a se repetir com mais frequência: democratas que ganham as eleições quando os votos de cada cidadão são contados, mas perdem no Colégio Eleitoral. É uma crise de legitimidade do sistema.

Este ano, por conta da pandemia, um número grande de eleitores deve votar por correio. É uma modalidade popular de voto, nos EUA, mas será usada numa proporção jamais vista. Isto quer dizer que, quando a noite de 3 de novembro virar para a madrugada do dia 4 e todos os votos do dia forem contados, talvez não se saiba o vencedor da eleição. Nos estados em que o resultado for apertado, cédulas despachadas pelos correios que ainda não tiverem sido contabilizadas podem mudar o vencedor.

A princípio, uma demora assim seria inconveniente e nada mais. Mas Donald Trump vem consistentemente acusando o voto por correio — que é legal e habitual — de passível de fraudes. Não há qualquer estudo que fundamente a suspeita. Entre seus eleitores mais devotos, porém, a ideia de que o pleito possa ser roubado para os democratas encontra seguidores.

É irônico. O próprio Trump vota por correio há várias eleições, e votará assim este ano.

Aí entra, no cenário, a disputa entre George W. Bush e Al Gore, em 2000. Naquele ano, quando a madrugada encerrou, a corrida na Flórida estava tão apertada que foi necessário iniciar uma recontagem dos votos recebidos pelo correio. A briga se estendeu à Suprema Corte que, no fim, decidiu encerrar na contagem antes do final porque o prazo legal para comunicar um vencedor havia expirado. A decisão, naturalmente controversa, beneficiou Bush que terminou eleito.

Este ano, tanto republicanos quanto democratas se preparam para uma briga judicial que pode chegar a dezembro e que, desta vez, não se concentraria apenas num estado. Poderá ser em vários. A briga pelo preenchimento rápido da vaga na Suprema Corte pelo presidente que pode terminar sendo diretamente beneficiado por ela se torna ainda mais dramática.

A hipocrisia de McConnell e Graham também cresce aos olhos.

O contra-ataque democrata

Isto não quer dizer que os democratas estejam indefesos. Não só eles vêm sendo capazes de arrecadar muito mais dinheiro entre seus eleitores, justamente por conta da agressividade institucional republicana, como sua base tem se mostrado mais ativa e animada para a briga.

Quer dizer, por exemplo, que ao longo de outubro outros senadores republicanos podem vir a se sentir pressionados eleitoralmente caso acompanhem a maioria do partido numa substituição a toque de caixa na Suprema Corte.

Caso conquistem maioria do Senado e a Casa Branca, no ano que vem, os democratas terão outras ferramentas de combate. Só que, aí, o território será de briga mais violenta. Até este instante, o jogo duro constitucional tem sido unilateral. É a prática de, seguindo as regras, confrontar as intenções da Constituição. Quando lá atrás, durante um ano inteiro, os senadores republicanos se recusaram a sequer avaliar um nome de juiz indicado por Barack Obama, era jogo duro constitucional que estavam fazendo. Está dentro da lei, mas não foi para ser politicamente manobrada que a lei foi feita.

Com maioria no Senado, os democratas poderiam elevar à condição de estados tanto a capital Washington, DC, quanto o protetorado de Porto Rico. São reivindicações antigas de ambos, que embora façam parte dos Estados Unidos não são plenamente representados no parlamento. O número de senadores saltaria para 104 — e quatro destes seriam seguramente democratas por anos a fio. Seria muito difícil, para os republicanos, reconquistarem maioria na Casa.

Mas é uma mudança dentro das regras com objetivo político — jogo duro constitucional.

Outro passo é ainda mais agressivo. Aumentar o número de juízes na Suprema Corte para 11 ou 13. Nada, na Constituição, define quantos compõem o tribunal e, até 1869, o número variou muito. São Câmara e Senado que definem a composição. E os democratas poderiam perfeitamente dar a um possível presidente Joe Biden, num repente, mais quatro vagas a preencher.

O problema é evidente: uma democracia precisa de estabilidade. Se ambos os partidos se lançarem ao jogo duro, forçando as instituições, a polarização se tornará ainda mais aguda. Mas quando um dos lados parte para o tudo ou nada, deixa o adversário numa situação em que ele só tem duas escolhas. Ou admitir derrota ou jogar o mesmo jogo.

Por Érica Carnevalli

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