Os problemas de ‘1964, Entre Armas e Livros’

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O filme 1964, Entre Armas e Livros (assista), em exibição nos melhores YouTubes da cidade, conta a versão que a neodireita propõe para a história do Brasil desde 1964. No conjunto, a história narrada não é a fantasia proposta pelo ministro da Educação Ricardo Vélez ou pela turba minion mais braba do Twitter. Neste documentário, em 1964 houve um golpe de Estado, não uma revolução; e, ao menos a partir de 1968, eles reconhecem ter havido uma ditadura militar. Sua proposta é outra. Na história como a compreendem, o Golpe de 1964 foi uma reação à revolução comunista que se aproximava. E, a partir de finais dos anos 1960, puxados por Luís Carlos Prestes, os comunistas empregaram técnicas recém-aprendidas vindas do italiano Antonio Gramsci para dominar as artes, as universidades e as redações.

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Vale dissecar alguns pontos.

O filme anda em círculos, mas não apresenta qualquer evidência de que era iminente uma revolução comunista no Brasil. Apresentam malas de dinheiro entregues pelos cubanos para, ao que parecem sugerir, as Ligas Camponesas lideradas pelo deputado Francisco Julião. As próprias Ligas são caracterizadas como peça fundamental destas guerrilhas revolucionárias.

O episódio da mala de dinheiro realmente ocorreu. Mas as Ligas Camponesas não atuavam escondidas. Eram, todas, organizações com estatuto registrado em cartório. Numa conta do historiador Fernando Azevedo, chegaram a ter dez mil associados em 1961, em todo o Nordeste. Quase todos, analfabetos. Acreditar que aqueles pobres homens poderiam se tornar a base de uma revolução é desconhecer a história do País.

Quarenta anos antes, liderados por Miguel Costa e Luís Carlos Prestes, um grupo de militares brasileiros percorreu o Nordeste justamente tentando organizar uma revolução com um exército formado pelo povo. Não conseguiram. Não se constrói um exército disciplinado com pessoas analfabetas e famintas.

Os documentaristas trazem, também, papeis do serviço secreto tcheco que sustentariam a ideia de que uma revolução comunista estava sendo planejada no Brasil. Devia haver, mesmo, espião de toda sorte entre o Rio e Brasília. Mas o argumento de que uma revolução era factível tem de mostrar onde estavam os focos revoltosos, quais eram os contingentes, quem estava no comando e, ao menos, apresentar um plano.

Nada disso está lá. Eles têm, portanto, uma hipótese. Precisam de mais para bancar. O filme mostra que tinha comunista que gostaria de ver uma revolução. Tinha mesmo. Não consegue mostrar que havia chance de um movimento assim dar certo.

Aliás, não custa lembrar, a resistência ao Golpe foi nula. Ninguém se ergueu porque ninguém tinha a mínima organização para travar uma batalha que fosse.

E é engraçado porque, nas pontas soltas, vários pequenos elos não completados apontam as muitas fragilidades.

Um dos entrevistados, por exemplo, informa que as Marchas da Família com Deus pela Liberdade “reuniu mais gente do que a Coluna Prestes”. Não custa perguntar: qual a lógica de comparar o número de pessoas numa operação paramilitar que durou mais de dois anos com o número de presentes numa passeata que durou uma tarde?

Prestes, aliás, é um grande vilão. Aprendemos no filme que ele era revolucionário, que era comunista, que após o Golpe começou a estudar Antonio Gramsci e que deste estudo nasceu o futuro Marxismo Cultural. A Coluna Prestes (entre 1925 e 27) parece ter sido mostra deste espírito revolucionário.

Pois. Era líder da Coluna Prestes, também, Juarez Távora — o homem que disputou e perdeu a eleição indireta contra Castello Branco. Um homem mais conservador do que Castello. Como por muito pouco não foi líder da Coluna, igualmente, o brigadeiro Eduardo Gomes, citado como um dos ‘heróis anti-comunistas’. Tinha mais golpistas entre os membros da Coluna do que comunistas — comunista, só ele. Prestes não era um desconhecido para nenhum dos generais brasileiros. Foram, todos, colegas na Escola de Preparação de Oficiais do Realento — e Prestes, como Gomes, eram os dois mais respeitados da geração por sua sisudez. Prestes não era um mistério. Prestes era muito bem conhecido. E nunca deixou de ser respeitado pelos generais.

Assim como sugerir que Prestes conheceu Gramsci nos anos 1960 é das declarações mais estranhas que alguém possa fazer. O Velho, como era conhecido, se converteu ao comunismo em 1928, na Argentina. Já estava ligado à Internacional Comunista em 1929 e considerado o principal líder brasileiro em 31. Gramsci era o principal líder político italiano justamente neste período. Eles certamente não se conheceram — Gramsci foi preso em 1926 pelos fascistas e morreu na prisão. Mas não há qualquer possibilidade de Prestes não conhecer seus trabalhos, parte da literatura comunista básica da primeira metade do século 20, desde a primeira edição.

O Prestes de 1964 já era um homem cansado. Os comunistas estavam divididos porque seu grupo, o hegemônico, tinha por meta conseguir a legalidade e voltar a disputar eleições. O Golpe foi uma derrota dura. Ali, sua carreira política acabou. Ele não tinha mais fôlego ou força para enfrentar uma nova ditadura, quanto mais voltar a ser preso. Sua geração pendurou as chuteiras e, nos anos seguintes, uma nova assumiria. Mas isso foi depois. Dos grupos armados que agiram e são citados no filme — VAR-Palmares, Colina, ALN, PCdoB — apenas um existia em 1964. Era o PCdoB. Era um grupo tão novo que sequer tinha ainda comitê aberto em estados que seriam fundamentais para suas operações armadas — Ceará, Goiás e Pará.

A segunda tese é de que existe algo chamado Marxismo Cultural, que ele foi implementado seguindo a cartilha gramsciana, e que se tratou de uma tática deliberadamente traçada para domínio de universidades, redações e artes. Evidências deste ‘marxismo cultural’ são uma certa amoralidade sexual, políticas pró-minorias incluindo feminismo e LGBT, além de uma aura que ser jovem é ser de esquerda.

É curioso. Luís Carlos Prestes estaria tão chocado com casamento LGBT e os atuais debates sobre gênero quanto o mais conservador dentre os brasileiros. Ele era profundamente conservador — stalinistas costumam ser. Jamais estaria num festival cantando ‘Proibido Proibir’ ou botando flores no cabelo, quanto mais acendendo um baseado. Prestes não bebia. O que houve em todo o Ocidente, após 1968, foi um enorme avanço das liberdades individuais e das garantias de que, por mais diferente que a pessoa seja, ela tem de ter os mesmos direitos que qualquer um a seu lado. Isto não é marxismo. No ideal marxista seríamos todos uma massa uniforme, jamais celebrando diferenças.

Os problemas de 1964, Entre Armas e Livros estão nestes detalhes que nunca fecham. Como mostra do avanço comunista no mundo, em certo momento, comenta que soldados americanos denunciavam abusos do Exército dos EUA — e que isto fazia, de alguma forma, parte da estratégia soviética. Ilustram a afirmação com um retrato do jovem John Kerry, sem identifica-lo. Em essência, parecem acusar um ex-secretário de Estado de colocar-se a serviço da União Soviética quando criticou, jovem, a política da Guerra do Vietnã.

Como se a liberdade de criticar a política do governo não fosse, ora, uma das conquistas americanas — portanto liberais — fundamentais.

Pedro Doria é editor do Meio. Uma newsletter gratuita que todo dia de manhã resume, em oito minutos, o noticiário do dia. Assine.

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