Rio em guerra: o que Lula e Dino podem fazer?

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Foi grave demais o que aconteceu no Rio, com 35 ônibus e um trem em chamas, numa cena de guerra conflagrada, por conta da morte de um chefe de milícia da Zona Oeste. A gente que não mora nas comunidades costuma falar de uma cidade “refém” do crime organizado – e das operações policiais de combate ao crime -, de forma metafórica, e só quando algo dessa magnitude explode é que a coisa fica mais palpável. Mas pras quase 50 mil crianças que dia sim, dia também ficam sem aula nas escolas onde as operações acontecem, não tem metáfora nenhuma nisso. É bem concreta a situação de sequestro das suas vidas, de seus futuros, de qualquer oportunidade de, pelos estudos, encontrar uma saída.

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Bom, seja pra elas, seja pra nós, privilegiados da classe média, o fato está aí. O Rio, nosso cartão-postal, esteve ontem à mercê de bandidos. Ou seria da polícia? Sim, porque a gente se acostumou a culpar a “ausência do Estado” pela ascensão do tráfico, do crime. Mas e quando são agentes ou ex-agentes do Estado, das forças de segurança, que decidem tocar o terror? É o caso das milícias. Elas nasceram na década de 1970 não porque o estado estava ausente. Mas porque parte do Estado decidiu se associar ao crime. PMs, bombeiros, policiais civis…

E isso é fartamente documentado tanto em investigações quanto em reportagens e até em filmes.
Os dois Tropa de Elite nos seduziram não só pelo magnetismo de Wagner Moura, mas pela fidelidade ao mundo real, ao mostrar a podridão do “sistema”, né? E era fácil até um tempo atrás olhar pro Rio, aqui de longe, e pensar: “poxa, que situação terrível essa das milícias lá“…

Mas aí você pisca e fica sabendo que militares do exército ajudaram a roubar armas de um paiol pra fornecer pro PCC e pro Comando Vermelho, em Barueri, na grande São Paulo.

Dá mais uma piscadela e vê policiais civis escoltando 16 toneladas de maconha que saíram do Mato Grosso do Sul, passaram por São Paulo e chegaram ao Rio.

E se pausar por mais um segundo lembra que a Polícia Rodoviária Federal estava até outro dia sob um diretor hoje preso por suspeita de golpismo e com atuação no Brasil todo — isso sem contar o episódio trágico do camburão com gás que matou Genivaldo.

Cá entre nós, passou muito da hora de o Brasil ter coragem de olhar pra suas forças de segurança com honestidade e simplesmente começar do zero. Isso inclui polícia militar, civil, rodoviária, federal e Forças Armadas.

Não é novidade alguma que a segurança pública é um dos temas escolhidos pela oposição pra cutucar incessantemente o governo Lula e seu ministro da Justiça, Flávio Dino.

Existem algumas razões pra isso.

Primeiro, a mais óbvia: a segurança é realmente um problema. É sério, é amplo, preocupa os brasileiros, atinge cada um de nós. Ou seja, mobiliza a opinião pública e pode render votos.

Segundo, a mais estratégica: como é um problema absurdamente complexo e antigo, pro qual não existe resposta única ou fácil, é uma baita oportunidade de políticos tentarem faturar com soluções “mágicas”, simplistas e que pareçam imediatas. Tipo armar todo mundo. Ou sair fazendo operação policial em que uma dúzia de “delinquentes” morre.

Terceiro, a mais delicada: parte da bancada da bala, e mais notadamente a família Bolsonaro, conhecem a fundo a mecânica das forças de segurança — e, mais importante que isso, das milícias.

Não é algo que eles tentaram ou tentam esconder. Em discursos, em condecorações, em empregos em seus gabinetes, os milicianos sempre estiveram em posição de destaque e louvor em torno do bolsonarismo.

É uma tática manjadíssima da extrema direita a de acusar o adversário de fazer o que eles mesmos fazem. Então, eles acusam sem parar Dino e Lula de serem associados aos traficantes e ao crime organizado.

E como a extrema direita não está mais no poder Executivo onde é o palco pra isso? O Legislativo. Assim, Dino já foi convocado 100 vezes pra ir lá depor, quase sempre por bolsonaristas. Nesta semana, tem duas convocações. Já faltou de uma. Aí, o deputado bolsonarista que preside uma das comissões onde ele tinha que ir quer pedir seu impeachment. E assim segue o confronto.

Não tem ajudado muito o fato de que o governo federal, até aqui, não conseguiu apresentar com clareza o que é de fato sua política de segurança.

Os especialistas na área apontam como direita e esquerda, no Brasil, se confundem em suas políticas pra esse setor. Como governantes da esquerda, por mais que digam que têm posições distintas, acabam caindo na tentação das ações espetaculosas que reprimem o crime na ponta, mas acabam não conseguindo mexer estruturalmente em nada. Basta ver o caso da Bahia. Ou mesmo do Rio, onde o presidente Lula chegou a ir nas comunidades e prometer que seria diferente, e o secretário Ricardo Capelli aparece apertando a mão efusivamente do governador Cláudio Castro, do Rio, no dia seguinte do assassinato dos médicos por milicianos e no mesmo dia de mais uma operação que botou as crianças da Maré deitadas no chão das escolas com medo de bala perdida.

Basta ver, ainda, a divisão dentro do governo federal sobre a privatização de presídios. Como é possível que um governo Lula esteja trabalhando ativamente pra privatizar unidades prisionais, alguém pode se questionar. Pois está. E encontra a resistência solitária do ministro dos Direitos Humanos. Dia desses, Capelli elogiou uma proposta da esquerda do Equador de militarizar os presídios, vai vendo.

Lula fez promessas nas comunidades que visitou e tem o apoio de entidades e representantes de gente que sofre todo dia com a ação das milícias e das polícias. Ele certamente será cobrado por isso. E conforme a oposição bate nessa tecla é mais essencial ainda que ele priorize essa agenda, pra não ser surpreendido depois.

Existem algumas maneiras de esse governo se diferenciar e deixar sua marca na segurança pública. Todas são difíceis, custosas e exigem muita, mas muita vontade política — além de alguma dose de apoio da opinião pública.

Uma delas é justamente a de enfrentar a contaminação das forças de segurança. Como é que vai se falar de combate ao crime organizado sem tratar de como ele está infiltrado em delegacias, quartéis, cúpulas das polícias?

O bolsonarismo tornou essa tarefa ainda mais difícil. E mais necessária.

Quando Dino assumiu o ministério, ele tinha muita clareza do quanto precisava se aproximar das polícias para conquistar algum nível de confiança e poder trabalhar.

Agora, o passo seguinte tem que ser dado. As milícias têm que ser combatidas, obviamente. Mas o trabalho de inteligência de que tanto se fala precisa, obrigatoriamente, detectar os agentes do Estado ativos no crime e expurgá-los.

Isso serve também para o Exército e as outras forças.

Sem esse olhar pra dentro das corporações, não é só enxugar gelo ficar matando um miliciano aqui, prendendo outro ali. É deixar as cidades e os cidadãos reféns do próprio Estado.

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