Um ano depois, o que o 8 de janeiro causou ao Brasil?

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Na rampa do Palácio do Planalto, uma cadeira de praia verde e amarela virou arma nas mãos de um bolsonarista. O golpe foi contra um cavalo. O bicho sentiu a batida do ferro no seu dorso traseiro. A dor da pancada fez o animal perder o controle das pernas traseiras e arriar, trançando os cascos sobre a superfície lisa de mármore branco, ao mesmo tempo que ainda sustentava um policial militar em seu dorso. O agente tentou manter o animal perfilado aos mais quatro conjuntos de cavaleiro e cavalo que ali estavam, vulneráveis à multidão em fúria. Diante dos golpes vindos de todos os lados, a tropa precisou bater em retirada para evitar mais dores. A crueza da cena impacta e inaugura o filme No Céu da Pátria Nesse Instante, de Sandra Kogut, exibido na telona, no 56º Festival Brasília do Cinema Brasileiro, quase um ano depois do fatídico 8 de janeiro de 2023.

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Era para ser um documentário somente sobre o processo eleitoral de 2022, a disputa mais dividida da história brasileira. Não houve, no entanto, como ignorar o vandalismo que se seguiu à posse presidencial. Até porque a tentativa de golpe de Estado, que eclodiu naquele primeiro domingo depois de Luiz Inácio Lula da Silva adentrar o Palácio do Planalto, resultava exatamente do ambiente de polarização. A edição do longa-metragem dá pistas da complementação após a eclosão da conspiração. As eleições, propriamente ditas, viraram o meio da película, como um sanduíche, um recheio nas cascas feitas com imagens da barbárie. E a cena do cavalo, apesar de seu simbolismo, foi apenas uma ínfima parte do destempero que tomou conta de Brasília. A restauração do que havia sido corroído por dentro nas instituições do Estado precisou virar pauta prioritária para os três Poderes.

“Foi o governo iniciado da forma mais turbulenta possível”, avalia o cientista político Jorge Ramos Mizael, especialista em políticas públicas e diretor da Metapolítica. Em 2014, a disputa entre Dilma Rousseff e Aécio Neves terminou com uma vantagem de 3.459.963 para a petista. E já havia sido um marco dessa divisão. Em 2022, entre Lula e Jair Bolsonaro (PL), a diferença foi de 2.139.645. O cenário, no entanto, não dá sinais de mudança. Há duas semanas, pesquisa do Datafolha indicou que os que se dizem petistas convictos somam 30%, enquanto os bolsonaristas são 25%, cenário praticamente igual ao que antecedeu os atos golpistas golpe, já que, em dezembro de 2022, o instituto encontrou 32% de petistas e os mesmos 25% de aderentes a Bolsonaro.

E um ano depois do 8 de janeiro, as instituições ainda se ocupam de contabilizar os estragos e reações às violações dos prédios dos Três Poderes e, principalmente, à democracia. No Congresso, a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do 8 de Janeiro terminou indiciando Bolsonaro e mais 60 pessoas, entre elas os principais auxiliares do ex-presidente e integrantes militares do governo, como o ex-ministro da Casa Civil e da Defesa general Walter Braga Netto; o ex-ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) general Augusto Heleno; o ex-ministro da Secretaria-Geral da Presidência general Luiz Eduardo Ramos; e o ex-ajudante de ordens tenente-coronel Mauro Cid.

O trabalho político da CPMI ainda não deu frutos na área jurídica e depende agora da atuação dos órgãos competentes, entre eles o Ministério Público, para o oferecimento de denúncias ou mesmo o pedido de mais investigação. Mas um feito importante a comissão conseguiu, na opinião de Mizael. A CPMI abriu a primeira possibilidade institucionalizada de pena para os militares brasileiros. E com o peso do Poder Legislativo nesse pedido. “Não se tinha, desde o Marechal Floriano, alguém que levantasse a possibilidade de se investigar criminalmente os militares. Agora tem”, observou. “As provas e os indícios estão encaminhados, inclusive para o Superior Tribunal Militar”, elogiou. Esse feito se soma ao mérito de também ter sistematizado as provas, e apontado responsáveis pelo ato.

Prisões

O Supremo Tribunal Federal (STF) condenou até o momento 30 pessoas pelos crimes de abolição do Estado Democrático de Direito, dano qualificado, golpe de Estado, deterioração do patrimônio tombado e associação criminosa e, sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes, manteve a mão pesada na dosimetria da pena. Se o tempo de prisão, pela lei, pode variar de 3 a 17 anos, valeu nos julgamentos, até agora, uma média de 16 anos para cada um dos presos.

Atualmente, 102 pessoas estão presas, sendo que 70 delas foram detidas depois do 8 de janeiro, alvo de petições avulsas. No próprio dia 8 de janeiro, foram presas 243 pessoas dentro dos prédios públicos e na Praça dos Três Poderes. Eram 161 homens e 82 mulheres. No dia seguinte, 9 de janeiro, 1.927 pessoas foram conduzidas à Academia Nacional de Polícia. Dessas, 775 foram liberadas e 1.152 permaneceram presas. Entre os dias 17 e 20 de janeiro, após exame dos flagrantes, 938 pessoas permaneceram presas, de acordo com informações do STF. Por enquanto, esse é o saldo da reação do Judiciário. Mas a expectativa é de mais condenações e até de mais prisões nos processos que seguirão a partir de fevereiro, quando será reaberto o trabalho na Corte.

O STF tem se mostrado resistente aos apelos e às tentativas de retomada da ideia de que as prisões são arbitrárias e parte do chamado “ativismo judicial”. Esse é o discurso predominante entre os políticos alinhados ao ex-presidente Bolsonaro. Em  dezembro, senadores de oposição chegaram a apresentar a demanda pela liberdade dos “manifestantes” ao então indicado por Lula para a Procuradoria-Geral da República (PGR), Paulo Gonet. O líder do PL, Carlos Portinho (RJ), e o senador Izalci Lucas (PSDB-DF) apresentaram a demanda enquanto Gonet fazia sua campanha pela aprovação ao cargo no Senado. Agora PGR, Gonet chamou para si a responsabilidade dos inquéritos, mas seu posicionamento só deverá ficar explícito a partir do mês que vem, no retorno dos trabalhos do Judiciário.

Vale lembrar que a retomada dos julgamentos contará neste ano com um personagem que foi central na reação do governo aos ataques: o atual ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, que sairá da pasta no próximo dia 8 e assumirá no mês seguinte a vaga no STF para a qual foi indicado por Lula e aprovado pelo Senado. Para poder julgar os casos, Dino começou a praticar uma “autocontenção” política, mas não se furtou de tecer comentários sobre a conspiração, segundo ele, do ponto de vista “jurídico”. “Nós aprendemos com o 8 de janeiro a não banalizar os ataques à democracia porque isso é um erro jurídico”, respondeu em uma coletiva de imprensa. “Eu não posso, de fato, tecer nenhum comentário político, isso é página virada na minha vida, mas avalio que seria um erro jurídico banalizar os ataques ao Estado Democrático de Direito. Essa é a principal lição dentro do que eu posso analisar.” Da mesma forma que o filme sobre as eleições precisou ser levado para a crítica aos ataques, o próprio governo foi arrastado para a defesa da democracia. “Não foi uma opção”, avaliou Dino. “Eu fui conduzido, arrastado a essa pauta.”

Vidraças quebradas

O corte ainda é profundo, difícil de cicatrizar. Lula não deixou de falar sobre o ambiente hostil no seu pronunciamento de fim de ano. “Fomos capazes de restaurar as vidraças em tempo recorde, mas falta restaurar a paz e a união entre amigos e familiares”, disse o presidente, na noite de Natal. “O ódio de alguns contra a democracia deixou cicatrizes profundas e dividiu o país, dividiu famílias e colocou em risco a democracia. Quebraram vidraças, invadiram e depredaram prédios públicos. Destruíram obras de arte e objetos históricos. Felizmente, a tentativa de golpe causou efeito contrário. Uniu todas as instituições, mobilizou partidos políticos acima das ideologias, provocou a pronta reação da sociedade. E, ao final daquele triste 8 de janeiro, a democracia saiu vitoriosa e fortalecida”, disse o presidente. “O meu desejo neste fim de ano é que o Brasil abrace o Brasil. Somos um mesmo povo.”

O presidente, no entanto, sabe que essa unidade é um cenário distante. Ele se esforça para chamar uma festa institucional no próximo dia 8, com a presença dos representantes dos Três Poderes, com governadores dos estados, deputados e senadores. Governadores de oposição, porém, já apresentaram motivos para não comparecerem.

Nos momentos finais do Congresso em 2023, Lula também tentou fazer da promulgação de reforma tributária uma resposta aos ataques. Convidado, ele foi ao Plenário da Câmara, acompanhado de grande parte de seus ministros, principalmente os da área econômica. Foi vaiado e hostilizado pela parcela pequena e barulhenta da oposição. Mas o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) controlou a revolta com uma bronca pública aos bolsonaristas. Mas o clima geral foi de tentar demonstrar força das instituições em contraponto com o 8 de janeiro.

“A sessão de promulgação foi o oposto àquele dia de golpe. Foi o coroamento da confirmação da estabilidade institucional e política no Brasil”, avaliou, em conversa com o Meio, a ministra do Planejamento, Simone Tebet (MDB-MS), que acompanhou Lula na visita ao Congresso. “A gente tem comemorado os números da economia. Não tem nenhum que seja negativo. Com isso, a gente se esquece que este ano começou com uma tentativa de golpe e hoje nós temos que comemorar a estabilidade política e institucional no Brasil, ao ponto de uma reforma tributária, dificílima como essa, ter sido aprovada com votos da oposição”, observou.

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