Edição de Sábado: O equilíbrio diante do precipício

A chuva havia dado uma trégua em Araraquara, interior paulista. Dez dias antes, as águas tinham levado parte da Avenida 36, importante via da cidade. Choveu, em seis horas, o que era previsto para três dias. O imenso buraco que se formou com a força do Ribeirão das Cruzes engoliu carros e vidas. Das 16 vítimas, seis pessoas da mesma família morreram após caírem na gigantesca fenda. A tragédia motivava a primeira viagem do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), após a posse, em Brasília, no dia 1º de janeiro. Eram quase 15 horas de domingo, 8 de janeiro, quando Lula e o prefeito da cidade, Edinho Silva (PT), chegavam à beira do precipício.

O fotógrafo Ricardo Stuckert, o secretário de imprensa, José Chrispiniano, além dos ministros do Trabalho, Luiz Marinho (PT-SP); das Cidades, Jader Filho (MDB-PA); e da Integração e Desenvolvimento Regional, Waldez Góes (PDT-AP), acompanhavam o presidente. Jornalistas, políticos e agentes da Defesa Civil, o púlpito apinhado de microfones e gravadores, aguardavam a fala do presidente. Lula desceu do carro. A expressão em seu rosto era de consternação. Mesmo em momentos que exigem gravidade, Lula carrega em si um despojamento que, naquele instante, não estava ali. Havia um peso em sua caminhada até a borda da cratera, mãos nos bolsos. Edinho falava algo a seu lado, mas a cabeça do presidente estava claramente em outro lugar. Lula observou a destruição. Deu meia volta. Chrispiniano veio ao seu encontro e, ao que parece, deu sinal de que era hora de ir. Em silêncio, o presidente entrou no veículo que partiu rumo à prefeitura.

Poucos ali sabiam o motivo do recuo. Minutos antes, Stuckert avisara Lula que bolsonaristas tinham entrado no Congresso, em meio à arruaça verde-amarela na Esplanada dos Ministérios. Mas a notícia ainda não havia se espalhado pelo evento de Araraquara. Enquanto a tenda e os equipamentos de som eram recolhidos, auxiliares de Lula tiveram a primeira pista do que estava acontecendo. Do outro lado da rua, a turma com a camisa da Seleção interrompia os gritos de “Lula ladrão” para comemorar: “Entramos no Congresso!”. Apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) mostravam entre si as primeiras imagens geradas em Brasília.

Lula só soube que os invasores entraram no Palácio do Planalto e no Supremo Tribunal Federal (STF) quando chegou à prefeitura. Foi aí que o gabinete do prefeito se transformou num gabinete de crise. A primeira-dama, Rosângela da Silva, a Janja, também se juntou ao grupo e ficou nervosa quando recebeu, pelo celular, as imagens de sua sala no Planalto, totalmente destruída. Ela conversou por telefone com membros de sua equipe. Alguns, tossindo com a fumaça das bombas detonadas dentro do prédio, confirmaram a destruição. Lula ainda perguntou: “Entraram no gabinete? Entraram na minha sala?”. E foi nessa ligação que o presidente soube que o vidro blindado que separa seu gabinete dos demais cômodos do Planalto havia resistido. A segurança também havia montado barricadas com móveis quebrados para barrar a invasão.

Cadê o Ibaneis?

Entre a entrada, em petit comité, no gabinete de Araraquara e a entrevista concedida por Lula, na qual anunciou a intervenção federal na área da segurança do Distrito Federal, passaram-se duas horas. Foi o tempo necessário para que as medidas iniciais de contenção fossem tomadas. A primeira providência de Lula foi ligar para os presidentes das duas casas legislativas. Conseguiu falar com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que estava em sua casa, em Maceió. Lira já havia sido informado do ataque e estava irado por não conseguir ser atendido pelo governador do Distrito Federal, hoje afastado, Ibaneis Rocha (MDB). Lira passou a tratar com a vice, Celina Leão, sua colega de partido. Apesar de muito tensa, Celina se esforçava para conseguir informações da polícia e responder às cobranças das autoridades federais. A omissão de Ibaneis irritou outra chefe de poder. Naquela tarde, a presidente do STF, Rosa Weber, também tentou contato, mas ele não atendeu.

A fúria de Lira naquela tarde também se estendia ao então secretário de Segurança do Distrito Federal, Anderson Torres, que antecipou suas férias em viagem para Flórida, nos Estados Unidos, para onde Jair Bolsonaro, seu antigo chefe, viajara antes da conclusão do mandato. Curiosamente, o único que conseguiu falar com Ibaneis foi Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que ainda estava em uma viagem à Paris. Pacheco chegou a postar que havia realizado o contato em suas redes sociais — talvez sem imaginar que, àquela altura, tratava-se de um grande feito.

Lula tratou com o vice do Senado, Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PB), que havia assumido as funções nas férias do titular. Também falou com a presidente do STF, ministra Rosa Weber. Em 15 minutos, o presidente havia “trazido o Estado brasileiro para seu lado”. “Ele foi gigante”, diz um interlocutor que esteve ao lado do presidente. Lula esteve o tempo todo pensativo, como se calculando, medindo as consequências de cada passo que daria dali em diante. Seu rosto transpirava tensão. Foi depois de um telefonema a Alexandre de Moraes, ministro do STF, que Lula decidiu qual seria a reação. “Vai ser por intervenção federal”, disse aos presentes na sala, descartando conselhos anteriores para que baixasse uma medida de Garantia da Lei e da Ordem (GLO).

A sisudez na avenida de Araraquara era pelo pressentimento de uma tentativa de golpe. Lula desconfiava que não poderia contar com militares naquele momento. O sumiço do governador e do secretário Anderson Torres corroborava com a tese golpista. Se Lula obteve, de imediato, garantias dos chefes dos Poderes da República, sabia que não poderia ter plena confiança no comando da tropa — sequer em relação à guarda do Planalto, onde remanescentes da era do general Augusto Heleno, o chefe do GSI de Bolsonaro, ainda davam expediente. Naquele fim de semana, o GSI estava em transição. O entrante e fiel general Marco Edson Gonçalves Dias ainda se ocupava de uma verdadeira desinfecção do gabinete, analisava quadro a quadro, embora muitos já tivessem sido exonerados no dia 2 de janeiro.

Lula deixou essa preocupação mais clara depois, em conversas com jornalistas, na quinta-feira (12/1): “Teve muita gente conivente. É importante saber que teve muita gente da Polícia Militar conivente. Teve muita gente das Forças Armadas, aqui dentro, conivente. Eu estou convencido de que a porta do Palácio do Planalto foi aberta para que gente entrasse. Porque não tem porta quebrada na porta de entrada.”

Até domingo, parte do governo, inclusive o ministro da Justiça, Flávio Dino (PSB-MA), ainda confiava que o modelo integrado de segurança funcionaria para conter protestos, da mesma forma que funcionou na posse de Lula. Nem se cogitava uma mudança de planos. Tampouco a inércia do Batalhão Duque de Caxias, que, sob o comando certo, teria condições de armar a proteção do palácio em 8 minutos, mas sequer recebeu essa ordem antes da entrada dos terroristas. Ou a complacência da Polícia Militar do Distrito Federal. “Recebi mensagem às 13h31 do domingo dizendo que estava tudo tranquilo. O ministro José Múcio foi ao quartel general e teve a mesma informação”, diz Dino em entrevista ao Brasil 247.

Secretário de Acesso à Justiça, órgão do Ministério da Justiça e Segurança Pública, Marivaldo Pereira passou o sábado de prontidão. Militante de esquerda, líder partidário, ativista e negro, Pereira já esteve diversas vezes na Esplanada, como servidor ou cidadão. Jamais viu uma atuação tão “mansa” da polícia candanga em reação a protestos quanto a que viu no domingo. “A PM sempre foi muito eficaz nas suas ações. Seja em momentos de confronto ou para evitar esses momentos, às vezes até com força demais.” Mais tarde, Pereira chegou a acompanhar a prisão de alguns terroristas no dia 8, a quem classificou de “lunáticos”. Os bolsonaristas batiam continência aos policiais, entoavam gritos golpistas e, em alguns casos, choravam para os agentes que eles, os que encamparam uma tentativa de golpe de Estado, tentavam “salvar o país”.

Após duas horas trancafiado no gabinete de Edinho, Lula concedeu a esperada entrevista. O presidente leu o decreto de intervenção na segurança do DF e nomeou o interventor Ricardo Garcia Cappelli, ligado a Dino. O presidente ainda prometeu: “Essa gente terá que ser punida e nós vamos descobrir quem são os financiadores desses vândalos”. O documento lido por Lula tinha sido redigido em Brasília, por Dino. O texto foi enviado por WhatsApp para Lula assinar. Lula ainda teve dúvidas de como assinar e protocolar o documento e acabou acatando a solução apontada pelo ministro: mandou imprimir o documento, assinou, uma foto foi enviada de volta para o celular do ministro. “A gente ia numerar o decreto onde?”, contou Dino. O maranhense, que havia observado pela sua janela no Palácio da Justiça o baixo efetivo empregado pela PM na contenção do protesto e assistido pela vidraça a tomada do Congresso, pegou o documento, entregou ao interventor e ordenou: “Desça lá e assuma o comando. Quem mandou foi o presidente de República. Está aqui o decreto”. E assim foi feito. Enquanto Cappelli seguia as ordens, Lula anunciava a intervenção em transmissão feita pelo YouTube, com links distribuídos aos jornalistas de todo o país.

Ao fim da entrevista, Lula não ficou nem mais 10 minutos na prefeitura. Lula queria pôr os pés no Palácio do Planalto no mesmo dia dos ataques. A Polícia Federal precisou se apressar para uma varredura em meio aos escombros para garantir a segurança do presidente. A decisão de Lula de voltar imediatamente também contrariou alguns conselhos recebidos durante a tarde para que ele, por segurança, evitasse retornar à capital federal. Lula chegou ao Planalto à noite, percorreu os quatro andares e ainda atravessou a Praça do Três Poderes para se encontrar com Rosa Weber e os demais ministros do STF e verificar os estragos no plenário da Corte.

Choro contido

O choro da fotógrafa Rafaela Felicciano, do portal Metrópoles, só aconteceu na terça-feira (10/1). Foi acometida de um vórtice de emoções que a pegou desprevenida, bem no meio do discurso do ministro Alexandre de Moraes na posse do novo diretor da Polícia Federal, Andrei Rodrigues. Com as lentes apontadas para a primeira fala pública de Moraes depois da invasão dos palácios, Rafa, como é conhecida pelos colegas, teve o foco dificultado pelas lágrimas. “Sabe quando vem tudo?”, explicou ao Meio.

Ela foi uma entre vários jornalistas que apanharam, tiveram equipamentos levados, cartão de memória com registro do dia roubados pela turba bolsonarista. Na quinta-feira (12/1), o Sindicato dos Jornalistas do DF, que abriu um canal para denúncias de ataques, já contabilizava 16 casos graves. A secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom), comandada pelo ministro Paulo Pimenta, também chamou os profissionais para serem ouvidos. O ministro pediu, por meio de ofício, que a polícia abrisse uma exceção para ouvir os profissionais em um local que não fosse as delegacias do Distrito Federal e foi atendido. Isso porque os profissionais conhecem a realidade da polícia de Brasília e sabem do apoio e da devoção dos policiais ao ex-presidente Bolsonaro. O receio de um tratamento hostil foi a tônica nos relatos ouvidos pela Secom. Diante disso, a sede do sindicato passou a ser o local dos relatos.

O trauma de Rafaela vem daquele plantão de domingo, quando ela partiu para a Esplanada para fotografar mais uma das inúmeras manifestações que cobriu. Quando estava em frente ao gramado do Congresso, ela se viu cercada vários homens, sem poder se defender. Um deles segurou seu braço com força, perguntando para quem ela trabalhava. Ela relutou em dizer. Ele passou a gritar muito perto de seu rosto e apertar ainda mais seu braço. Rafaela ainda tentou ponderar, dizendo que trabalhava para o Metrópoles e que estava ali para registrar “o “momento histórico”, tentando não julgar a natureza golpista dos atos. “Eu não queria apanhar e tinha consciência de que estar ali era perigoso”, contou.

A argumentação não funcionou. O homem ergueu o braço, chamando outros comparsas para a intimidação. Em segundos, a fotógrafa estava cercada de 10 homens, cada um puxando de um lado. “Meu instinto de proteção fez com que eu me abaixasse um pouco e, nesse momento, eu senti um soco na barriga e alguém conseguiu tirar a minha máquina”, disse. “Eu me lembro do olhar que eu dei para o cara que estava na minha frente. Eu falei: vocês estão me roubando”. O apelo da repórter foi em vão. “Relaxa, depois a gente te devolve”, disse um dos agressores. Outro retirou o cartão de memória da máquina e desconfiou que ela tivesse outros com fotos tiradas anteriormente. Rafaela precisou abrir cada bolsinho do seu cinto de apetrechos de trabalho para mostrar que não havia mais nada. Os vândalos, então, roubaram seu celular e desapareceram.

“Quando consegui sair da Esplanada, eu não sentia mais nada. Não estava sentindo raiva, ódio, tristeza. Era como se meu cérebro tivesse se blindado de tudo. Na segunda, tirei uma folga. Na terça, me deram a pauta da posse do diretor geral da PF. Fui lá, bonitinha, fiz as primeiras falas. Aí, o Alexandre de Moraes começou a falar. Sabe quando vem tudo? Eu colocava a câmera na frente dos olhos, tentava enxugar as lágrimas e não conseguia. Quando ele falou que todo mundo vai ser punido, que a gente vai cobrar, que as instituições são mais do que prédios, são também pessoas, caí em prantos e entrei em uma crise de pânico. A mão tremia e eu não conseguia respirar. Eu não conseguia parar de chorar.” Agora, Rafaela diz ter voltado à sensação de não sentir nada. Mas admite espasmos de raiva. “Principalmente quando lembro que os caras estavam muito profissionais, organizados para isso. Eles pegaram a minha câmera e retiraram o cartão de memória. Nem todo mundo sabe mexer em câmeras profissionais.”

A Bela e a Fera

Estilhaços. Pó branco deixado pelas bombas de gás e extintores. Urina e fezes. O chão enlameado pelo golpismo começou a ser limpo na noite de domingo. Funcionários viraram a madrugada na faxina pesada até serem substituídos, pela manhã, por outro turno de trabalhadores. Na medida em que a Polícia Federal concluía a coleta de material para a perícia, fotografava e filmava, os cômodos e corredores eram liberados e chegava a turma da ordem, da higiene.

“Eu cortei a mão com vidro e a nossa garganta está ruim até hoje, porque a gente inalou muito produto. O que mais tinha era CO2 misturado com gás de pimenta”, disse Sunamita Priscila Lima, uma das primeiras a chegar. Havia urina e fezes sobre as mesas. A estratégia foi iniciar a limpeza pelo quarto andar e ir trazendo os entulhos e excrementos. “Eu chorei, não vou mentir”, disse Sunamita ao Meio. “O momento que me cortou o coração foi quando vi o relógio da Bela e a Fera todo destruído”, contou. É com referência ao conto de fadas que os funcionários do Planalto tratam o relógio de pêndulo do século XVIII e que foi presente da corte de Luiz XIV à família de Dom João VI. Fabricado pelo francês Balthazar Martinot, com design de André-Charles Boulle, o relógio foi trazido para o Brasil pela família real em 1808. Ele ficava no terceiro andar do Planalto, onde está localizado o gabinete presidencial. O valor é inestimável. Havia apenas duas peças em todo o mundo. O outro relógio está exposto no Palácio de Versalhes, na França.

Sunamita conta que nunca limpou o relógio. “Só duas meninas eram encarregadas de cuidar dele”, relatou. Na tarde do fatídico domingo, Sunamita começou a ver a destruição pela televisão, em sua casa, no Paranoá, uma das regiões administrativas mais populosas da capital federal, com forte presença de trabalhadores vindos das regiões Norte e Nordeste brasileiras. “Eu assistia e só pensava no momento que a gente ia se lascar para limpar aquilo tudo. Aqui a gente não tem frescura não. Se sujou, a gente está limpando. Eu só fiquei revoltada porque a gente trabalhou muito para deixar limpo aí para a posse. Aí, vem esse pessoal fazendo uma merda dessas. Eu tenho até vídeo que eu fiz quando a gente estava deixando tudo branquinho para a posse e os caras vêm e fazem isso? É muita sacanagem”, reclamou. “Para mim, isso é desprezar o serviço das outras pessoas. Não tem nada que foi feito ali que foi pelo bem da humanidade como eles gostam de dizer. Isso foi pelo bem deles. Não foi pelo bem dos pobres como eles estão falando.”

A mulher de 32 anos, que se especializou na operação de maquinário pesado de limpeza e jardinagem voltou a se emocionar durante a entrevista. “Pensar que você cuida de um lugar para os outros fazerem isso. Não tem quem não fica comovido com essa situação”, desabafou, limpando os olhos com as mãos. Ela prosseguiu com a voz embargada: “Fiquei foi com raiva. Não tem nada de patriotismo. Por qual pátria que esse povo está lutando? Isso aí sai tudo do nosso bolso”. E lembrou do próprio sacrifício para pagar uma TV em 12 vezes quando viu uma maior que a sua toda estilhaçada. “A gente luta tanto para ter as coisas...” Na tarde de sexta, Lula se reuniu com a equipe da limpeza, para agradecê-los pelo trabalho.

Um ano antes de dar expediente no Planalto, Sunamita era responsável por cuidar dos jardins do Palácio da Alvorada, residência oficial que abrigou a família Bolsonaro. Nessa atividade, ela chegou a ter contato com o casal, disse que gostava de Michelle, mas não ia com a cara do marido. Evangélica, ela diz que não acredita na sinceridade do lema repetido pelo ex-presidente. “A realidade é que as pessoas estão doentes. Foi isso que o presidente fez. Adoeceu a mente das pessoas. Endeusaram ele e se esqueceram de Deus. Não adianta ele falar que é Deus acima de tudo e de todos, se ele se pôs como um deus. Deus para mim só existe um e está no céu, longe da gente."

*Colaborou Olavo David

Quem mexeu no meu sigilo?

Um a um, eles começam a cair. Eles, os segredos, de 100 anos ou não, tão usados pelo governo anterior. O das visitas recebidas por Michelle Bolsonaro foi o primeiro. Depois, veio o do cartão corporativo. Num primeiro momento, o Ministério da Saúde negou acesso à carteira de vacinação do ex-presidente, alegando se tratar de dados pessoas — e, portanto, protegidos pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). A Controladoria-Geral da União (CGU) ainda não arbitrou sobre esse segredo. Mas há uma determinação do próprio órgão, publicada em 2022 (talvez num momento de distração), que define: a Lei de Acesso à Informação (LAI) tem prevalência sobre a LGPD e deve ser o parâmetro.

Para entender melhor onde começa o interesse público e termina a privacidade de entes que tomam decisões que afetam o coletivo, convidamos Fabiano Angélico para um papo. Ele é pesquisador da Universidade de Lugano (USI), na Suíça, e doutorando em administração pública pela FGV-EAESP. Ex-consultor sênior da Transparência Internacional, frequentemente presta consultorias ao Banco Mundial e a agências da ONU em projetos sobre transparência e controle da corrupção. É também autor do livro Lei de Acesso à Informação: Reforço ao controle Democrático. Confira os principais trechos da conversa.

Como a LGPD regula os dados pessoais de pessoas que exerçam cargos públicos?
Em primeiro lugar, não devemos olhar apenas para aqueles que exercem ou exerceram cargos públicos. Também devemos olhar para entes privados que exercem deliberadamente influência nas decisões de interesse público. Isso amplia o leque. Sempre houve alguns espaços cinzentos nas definições de privacidade, mas antes da LGPD existia algum entendimento, razoavelmente consensual, de que privacidade era aquilo que não interfere no interesse público. Questões como orientação sexual, por exemplo. Da intimidade. A interpretação que se dá à LGPD, seu uso malicioso, muitas vezes atrapalha essa demarcação. Uma das razões é que a LGPD veio com um enforcement — ou seja, com uma aplicabilidade e punições — bem rigoroso. É até natural que os agentes do Estado, os burocratas, tenham receio de abrir informação que antes da LGPD era pública. Também é fundamental lembrar o contexto em que a LGPD foi criada. O que motivou a LGPD foi o escândalo da Cambridge Analytics. Em um polo, havia alguém com imenso poder econômico e político para coletar, interpretar, analisar, usar os dados tanto pra aumentar esses poderes. No outro, as vítimas eram pessoas comuns. Agora, não. Quando falamos desse fluxo de informação no que diz respeito ao controle social do Estado, esses dois polos não estão aí.

Essa interpretação maliciosa da LGPD é uma falha intrínseca do texto da lei?
Sim, principalmente o trecho que fala de opinião política. Isso levou, por exemplo, o TSE a ter o entendimento de que a lista de filiados de partidos políticos deveria ser ocultada, porque tinha o nome da pessoa e a filiação. Agora, há também um exagero interpretativo que vai além de qualquer falha na redação. Outro dia, um jornalista me consultou sobre um pedido que ele fez a um ministério sobre uma sindicância administrativa. Pela LAI, qualquer ato de fiscalização é sigiloso enquanto estiver em andamento. O que nos leva a crer, por óbvio, que assim que finalizado ele não é mais. Pois o jornalista pediu acesso ao fim da sindicância e o ministério negou, alegando que há milhares de casos e ia levar um século para analisar um por um e tirar o nome da pessoa ou outros dados pessoais que ele nem sabe se tem. Isso é um abuso. Se é um funcionário público passando por uma sindicância, o nome dele já é público, sai no Diário Oficial quando ele é nomeado. Nem tudo é má-fé, malícia. Tem um pouco de receio, legítimo, pela força da lei. Mas aí vem, talvez, uma má-fé dos superiores. O “tone of the top”, como se diz. No governo Bolsonaro era assim, não havia a disposição a ser transparente.

Onde acaba a privacidade de indivíduos e começa o interesse público?
Existe um conceito importante que é o dado pessoal de interesse público. É aquele dado pessoal específico de pessoas privadas que deliberadamente buscam interferir na decisão pública ou são dados de pessoas que tomam decisões públicas. Para ficar em dois exemplos da semana, vamos falar da carteira de vacinação do ex-presidente. Em 2020, o candidato que venceu a eleição para prefeito em São Paulo foi Bruno Covas. Infelizmente, ele veio a falecer no primeiro ano de mandato. Covas não escondia sua situação de saúde dele. O estado de saúde da pessoa pública importa. No caso de vacina, há ainda o ponto de vista da saúde pública, de controle de epidemias. Então, isso é uma informação pessoal de interesse público. Numa analogia, existem decisões no Supremo Tribunal Federal de quando a LAI entrou em vigor sobre a divulgação do salário dos servidores. O relator foi Carlos Ayres Brito e ele diz textualmente que, quando se entra para o serviço público e se está no Estado tomando decisões, seu nível de privacidade é diferente. No caso da agenda da Michelle Bolsonaro, ela era a primeira-dama. E tinha uma função de ordenadora de despesa, um cargo. A agenda dela importa. Se recebeu uma manicure no horário de trabalho, já é questionável. Mas, além disso, é importante saber dos interlocutores dela.

Quando se coloca em sigilo algo que, ao ser revelado, aparentemente não precisava estar escondido, que tipo de mensagem isso dá?
O sigilo ostensivo era uma mentalidade do governo anterior, uma maneira de enxergar a vida em sociedade. É até compreensível, vindo de alguém que tinha uma mentalidade militar. Certamente, vão aparecer coisas que evidentemente não precisavam estar sigilosas. Havia ali até uma rixa infantil de, se um jornalista solicitasse determinada informação, colocá-la em segredo só para não repassar. Aqui entram questões sobre a execução desses procedimentos. Não é fácil operacionalizar o volume imenso de dados e informações de um governo. Então, quando vem uma diretriz de mandar fechar tudo, para o servidor que tem que coletar e sistematizar os dados fica muito mais conveniente. Agora, a literatura é inconclusiva sobre se há correlação de causalidade entre transparência e confiança nas instituições. Ter transparência não necessariamente se traduz em ter confiança. O oposto me parece verdadeiro. O sigilo se traduz em desconfiança. Gera boatos, imprevisibilidade.

Na dúvida, quem deve arbitrar sobre o que é público?
As pessoas colocam várias normativas e leis na mesma categoria, mas a LAI é uma espécie de estatuto da transparência. E em seu artigo terceiro, dá essa resposta. Uma das diretrizes da LAI é fomentar o controle social da administração pública. E qual é o órgão de governo que faz isso? É a Controladoria-Geral da União, no nível do Executivo federal. Há também o controle social feito pela sociedade, principalmente jornalistas e sociedade civil organizada. Agora, a CGU é apenas um órgão, a decisão tem de ser de governo. A LAI foi muito feliz, pegando experiências de outros países, ao colocar níveis de decisões sobre abrir ou não as informações. O primeiro nível é dentro do próprio ministério ou órgão em que a informação existe. O segundo é o topo hierárquico daquele ministério ou órgão. O terceiro é a CGU. E há ainda um quarto nível que é o da Comissão de Acesso a Informação. É uma comissão permanente, que funciona bem ou mal a depender do governo. E é uma instância recursal. Apenas 1% das decisões da CGU são revertidas, ainda assim é um mecanismo interessante.

O que mais esse novo governo pode fazer para melhorar a transparência?
A primeira coisa é a base de tudo: precisa melhorar a gestão documental. Quando se trata de franquear o acesso, está se falando de documentos, digitais ou físicos. E isso também foi muito deteriorado no governo Bolsonaro. A presidente do Arquivo Nacional, que organiza a gestão documental, foi trocada por outra pessoa sem nenhuma experiência na área. Também teve uma decisão de passar o poder do Arquivo Nacional de decidir sobre a destruição de documentos para os ministérios e órgãos. Há uma corrente da arquivologia e da biblioteconomia que defende que os ministérios tenham mais autonomia. Mas, conhecendo os interesses políticos de muitos ministros, não é uma boa ideia. E precisa haver uma profissionalização do Arquivo Nacional. A segunda frente é essa definição clara de dado pessoal de interesse público. Existe uma decisão muito acertada da CGU, de 2022, que cita expressamente a LGPD e determina: para o processamento de pedido informação, o parâmetro é a LAI. Simples. Esse enunciado poderia virar um decreto ou uma lei. Agora, há uma diferença da transparência ativa para essa provocada. A quantidade de informação que é publicada proativamente é muito pequena, uma fração do que o Estado tem. É importante esse governo começar a pensar estratégias de publicar informação sobre o funcionamento de cada órgão do Estado. E, nessa linha, é preciso publicar os termos de classificação da informação. Realmente existem informações que, para o bem do interesse público, devem ficar restritas. Mas precisamos saber esses critérios.

O valor da luz

As fontes renováveis de energia são o presente e, ao mesmo tempo, o futuro. A urgência no combate às mudanças climáticas e a crise energética, agravada com a guerra da Ucrânia, mostram que o planeta precisa caminhar em direção à energia 100% limpa. Rapidamente. Segundo a previsão da Agência Internacional de Energia (AIE), a energia renovável em geral se tornará a maior fonte de geração global de eletricidade até 2025. Entre os tipos de fonte, a solar vive seu grande momento. No mundo, a energia gerada a partir da luz do Sol deve superar o uso do carvão até 2027. No Brasil, o setor brasileiro também está em franca expansão. Mas os benefícios financeiros de quem faz essa transição estão mudando. E podem inibir esse crescimento.

A instalação de painéis solares para fugir da conta alta de energia elétrica tem sido um fator decisivo para o interesse do consumidor comum, como eu e você, em gerar sua própria energia solar, em casa ou no comércio. Só que esse painéis são caros. E uma série de isenções em taxas na “devolução” da energia excedente para a rede elétrica fazia esses custos compensarem. Foi assim que a energia solar fotovoltaica atingiu 23,9 gigawatts (GW) de capacidade instalada no Brasil, ultrapassando a energia eólica e tornando-se a segunda maior fonte de geração do Brasil, atrás da hidrelétrica, segundo a Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (Absolar). Foram mais de R$ 45,7 bilhões em investimentos no setor em 2022, um recorde e um crescimento de 64% em relação ano anterior.

Desses 23,9 GW, 16,2 GW são da geração distribuída —essa de instalações domésticas ou em pequenas empresas. E a procura por painéis solares tem sido tão forte que cresceu 64% em menos de um ano no país. É justamente uma alteração nesse setor que pode tornar a modalidade menos atrativa.

O marco legal da geração distribuída

A geração distribuída significa, na prática, gerar nossa própria energia elétrica. Essa energia é gerada no local de consumo ou próximo a ele, sendo válida para diversas fontes de energia renováveis, como a hídrica, a eólica e a solar. A fonte de energia é conectada diretamente à rede de distribuição local convencional e pode ser compartilhada. Isso permite consumirmos energia elétrica quando está escuro. Além disso, o consumidor recebe um crédito na sua conta pelo saldo positivo de energia gerada e inserida na rede.

Nos últimos 10 anos, o setor de geração distribuída no Brasil vinha se organizando por meio de resoluções da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Até que dois anos após o início das discussões, em janeiro do ano passado, o então presidente Jair Bolsonaro (PL) sancionou o marco legal da geração própria de energia, microgeração e minigeração distribuída por meio da lei nº 14.300/22.

“Antes do marco, havia uma instabilidade muito ruim para o setor. As resoluções poderiam ser alteradas a qualquer momento sem um debate amplo. Estamos falando de um setor com grande volume de investimentos por vários anos, que até então era regulado por uma resolução fraca e sem segurança jurídica", explica Guilherme Chrispim, presidente da Associação Brasileira de Geração Distribuída.

De modo geral, quem tem placa solar ou outra fonte de energia renovável abastece a unidade consumidora, no caso a residência, e o excedente é conectado numa rede de distribuição de uma concessionária. E é aí que o novo marco legal entra, para estruturar esse segmento. A distribuidora agora vai cobrar para permitir que a energia possa ser injetada na rede de dia e depois utilizada quando não estiver sol. Até então, esse sistema de compensação não tinha custo para o consumidor.

Segundo o texto aprovado, os consumidores que produzem a própria energia passarão por uma transição que permite a eles pagar a tarifa sobre a distribuição da energia própria gerada. Isso se dá por meio da tarifa TUSD Fio B, ou Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição.

Taxação do Sol

Esse novo modelo gerou conflitos no setor. Afinal, é dinheiro no bolso das distribuidoras e um novo encargo para o consumidor. Para o presidente da ABGD, não se trata de “taxação do Sol”, mas sim do pagamento de um tributo feito pelo consumidor pelo serviço fornecido pelas distribuidoras. “É uma relação justa. À noite, quando a instalação não gera mais energia a partir do Sol, quem vai fornecer energia elétrica para o consumidor? As distribuidoras. É justo que elas sejam remuneradas.”

O Movimento Solar Livre, um dos que agregam consumidores contrários à taxação, fez um levantamento que aponta que 96% da geração distribuída da classe residencial atende a consumidores das classes C, D e E e apenas 4% atende as classes A e B. Embora favorável ao marco legal, o MSL diz que os cálculos favorecem os lucros das distribuidoras. A entidade lutou para que o prazo para o fim da isenção nas taxas fosse prorrogado.

Um consumidor costuma pagar pela energia consumida, pelo custo da transmissão e pelos investimentos que uma distribuidora faz para montar a rede de distribuição. Com o novo marco, o consumidor tinha um prazo para solicitar a instalação de placas solares com a isenção na taxa de distribuição de energia: até 6 de janeiro. A isenção de quem solicitou até essa data é válida até 2045. Agora, quem solicitar passa a pagar uma taxa gradual de 4,1% na energia que for injetada na rede para custear a infraestrutura elétrica. Em 2030, essa taxa chega a 27%.

Para Márcio Takata, conselheiro da Associação Brasileira de Energia Solar (Absolar), a redução dos custos de instalação das placas solares e ampliação no número de empresas no setor permitiram que a energia solar fosse cada vez mais uma alternativa para a redução dos custos de energia elétrica das grandes concessionárias. Mesmo com o fim da isenção, a geração própria de energia ainda tem sua atratividade, seja do ponto de vista econômico ou ambiental. "O que deve acontecer é uma redução parcial da atratividade, mas que não será tão impactante a ponto de desestimular o modelo de geração distribuída no Brasil”, acredita Takata.

Eu sei. Estamos no meio de janeiro, queríamos falar de outros assuntos. Mas a ameaça à democracia foi o tema mais clicado pelos leitores na semana que passou:

1. Congresso em Foco: A lista de financiadores dos atos golpistas.

2. G1: Risco de mais golpismo.

3. YouTube: Ponto de Partida — Dá para confiar nos militares?

4. Folha: A íntegra da proposta de decreto golpista encontrada na casa de Torres.

5. Estadão: Uma Abin paralela no Planalto.

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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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