Edição de Sábado: Depois da tempestade

Na noite de quarta para quinta-feira, no Brasil dos vira-latas caramelos, muitos concordavam em ceder o apelido mais clássico e carinhoso dos cachorros sem raça definida para outra espécie. Imóvel, a imagem de um cavalo em cima de um dos telhados ainda parcialmente visíveis de Canoas (RS) provocava uma enxurrada de perguntas em cada mente. Como ele chegou até ali? Há quanto tempo? Até quando resistirá? Como resgatá-lo? Com helicóptero? Como içar um bicho tão grande e pesado. Melhor levar uma balsa? Tem profundidade suficiente? Dá para tirar de barco? É melhor se concentrar em salvar gente? E mais: parecia sonho, parecia filme.

Na verdade, a pintura de um cavalo em cima do telhado no meio da planície alagada tem muito de surrealismo e nos trouxe símbolos. E a mistura de pesadelo com a dura realidade define a tragédia que ainda ocorre no Rio Grande do Sul. Caramelo deu ao Brasil algumas representações nessa tragédia. A da resistência diante de eventos extremos é uma delas. Sua resiliente imobilidade, à espera de um socorro, que chegou quatro dias após ele chegar ao cume da casa, mostrou o quanto será preciso saber lidar com situações extremas, antes inimagináveis, que, segundo cientistas, farão parte da vida em cidades daqui para frente.

A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, também se sentiu em uma quase inacreditável película ao sobrevoar a tragédia anunciada de emergência climática. Um anúncio feito, inclusive por ela, 30 anos atrás, quando “ainda não tinha um fio branco na cabeça”. “De repente eu vi uma cena que era velhinhos trepados em uma árvore, se segurando na árvore até chegar alguém para socorrer. Eu vi uma família dentro do sótão, o dono da família em cima do teto, olhando para o horizonte para ver se chegava algum socorro”, disse a ministra, em um vídeo postado por ela nas redes sociais. Para ela, a sessão de cinema “foi em três dimensões”. Foi real.

“Tem muita coisa que a gente tinha que ter começado a partir de 1992, mas a humanidade não fez. Não foi por falta de aviso da ciência. Agora, nós estamos aprendendo dramaticamente, com ondas de calor, com chuvas, com seca, com tudo que está acontecendo no mundo inteiro”, detalhou Marina, em entrevista.

Após sobrevoar a área inundada, Marina destacou que Lula foi a Dubai para dizer que o mundo precisa sair da dependência de combustível fóssil. Mas a aposta do Brasil em um novo modelo energético tem sido considerada bem mais tímida do que a de países da Europa e da Ásia. Um exemplo disso é a disposição maior para uma transição mais lenta, passando primeiro pelos carros híbridos e não partir direto para um investimento em uma planta elétrica. Um modelo que atende ao lobby de usineiros e a uma estratégia de transição gradual da Petrobras, por exemplo, de uma empresa petrolífera para uma empresa geradora de energia sustentável. Um processo muito mais lento do que o necessário para começar a fazer diferença na questão ambiental. Prova disso foi a sanha da estatal em investir na prospecção e exploração de petróleo na foz do Rio Amazonas.

Cidades mortais

Se, por alguns segundos, o ineditismo da cena do cavalo Caramelo sobre o telhado fez parecer irreal a tragédia, a realidade no Rio Grande do Sul chega aos olhos em seguida, como um soco. E, com ela, toda urgência de estancar o negacionismo sobre o que a ciência já produziu de conhecimento a respeito dos eventos climáticos extremos e de como devemos repensar a forma predominante de viver, como é necessário mudar a forma de ocupação territorial, como é preciso abandonar fontes de energia que estão na base da formação dos espaços urbanos, no Brasil e no mundo.

Tendo em vista o que já existe de conglomerados urbanos, o tempo em que as emergências climáticas se tornaram mais graves e mais frequentes impõe o desafio de tornar as cidades menos mortais. Ter mais chuvas, mais seca, mais calor do que o normal são consequências do aumento na emissão de gases do efeito estufa.

Nesta semana o jornal inglês The Guardian ouviu 380 das maiores autoridades científicas ao redor do globo e há praticamente um consenso de que vamos exceder as metas de aquecimento global neste século. Quase 80% dos entrevistados acreditam em um aumento de ao menos 2,5ºC tendo por base os níveis pré-industriais, enquanto quase a metade prevê um aumento maior, de 3,5ºC. Apenas 6% pensam que o aquecimento global se manterá dentro do limite a ser alcançado de 1,5ºC.

Muitos desses cientistas projetam um cenário futuro semidistópico, com fome, conflitos, e migrações em massa causadas por ondas de calor, incêndios florestais, alagamentos e tempestades com intensidade e frequência muito maior do que as que temos historicamente. E muitos desses pesquisadores dizem se sentir desesperançados, irritados e assustados com o fracasso dos governos em agir, a despeito das evidências científicas apresentadas.

Se quisermos seguir a ciência, faz-se necessário entender de vez que tipo de relação com o território e com a natureza provoca o aquecimento global e evitá-las.

Ergue e destrói

Uma das dimensões desse pensamento parte da necessidade energética das cidades. A arquiteta e urbanista Raquel Rolnik, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e relatora especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU para o Direito à Moradia Adequada, entre 2008 e 2014, acompanha de perto as transformações de São Paulo. “A gente sabe que 62% das emissões, pelo menos no caso de São Paulo, vêm da queima de combustível fóssil, gasolina, diesel, caminhão, ônibus, carro. Se continuar usando isso, não vai dar (para evitar tragédias)”, disse ao Meio.

Além do aspecto energético, outra dimensão a se considerar é a ocupação territorial. E é nesse ponto que é necessário repensar como as cidades brasileiras negaram e continuam negando a existência dos rios, mananciais, lagos e bacias. “Nossa relação histórica com os rios foi a de negar sua existência, enfiar dentro de um tubo, de um canal, tampar e colocar um sistema viário em cima, ou do lado. Isso não está no passado. Isso continua acontecendo hoje. Esse é o modelo hegemônico atual. As políticas de drenagem e a relação com os rios urbanos são historicamente assim”, indicou Rolnik. Pior, para conter os efeitos disso, houve o acréscimo das bacias de retenção, os chamados piscinões, que reforçaram ainda mais o tão nocivo processo de impermeabilização das cidades. “Os metros cúbicos de cimento para reter a água continuam reproduzindo o mesmo problema”, destaca a professora. “A gente continua cobrindo as cidades de asfalto que é 100% dependente de petróleo e vilão das emissões. Além disso, é pouquíssimo permeável, faz com que a água escorra e se acumule em locais baixos e aumentam os perigos de inundação.”

Seguindo a atual lógica, as cidades acabam sendo feitas em função dos carros, ao ponto de se colocar um rio em um canal para se construir um sistema viário que provocará o aumento das emissões de gases tóxicos que, por sua vez, contribuirá para a ocorrência de eventos climáticos extremos. Um ciclo vicioso no qual todos estão envolvidos e sem saber como sair. Se a gente imaginar um outro modelo de cidade, podemos considerar por exemplo, um trilho de trem, que é um modal de alta capacidade, e passa sobre uma área inundada com tranquilidade. O trem pode rolar sobre uma base inundável sem interferir nela e faz muito mais sentido do que um monte de caminhão, ônibus e carro. “Temos duas opções. Ou repensamos o modelo ou vai ficar morrendo nas enchentes e nos deslizamentos. Tudo é uma questão de escolha”, enfatizou Rolnik.

O arquiteto Sérgio Marques, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), aponta como uma cidade do futuro aquela que consiga combinar valores da sociedade moderna com a tecnologia e com saberes ancestrais. “Nós não vamos voltar a ser como os índios, que eram extremamente sustentáveis. Mas quero crer que essas novas sensibilidades desfaçam erros cometidos. E é nesse ponto que, a seu ver, a arquitetura da América do Sul tem muito a ensinar. Desde a casa de pau-a-pique do morador do interior do Nordeste do Brasil, que conserva a temperatura amena em seu interior e é altamente permeável, até trabalhos feitos por arquitetos paraguaios como Solano Benítez, José Cubilla e Javier Corvalan. Eles usam coisas análogas ao pau-a-pique, como o adobe, a terra, a cerâmica artesanal, tijolos, empregados em arquiteturas extremamente sofisticadas. Só que ainda hoje poucos têm acesso a isso”, disse ao Meio.

Marques conhece bem o sistema de drenagem do entorno de Porto Alegre e da Lagoa dos Patos e diz que, se houvesse a manutenção correta das estações de bombeamento e dos diques, a inundação teria sido evitada. “Não tenho dúvida que o dever de casa não foi feito. O que deveria ter sido bem feito era o arroz com feijão. Se tivessem dado manutenção correta no sistema de proteção contra as cheias, que são 68 quilômetros de diques e dois quilômetros de muro e portão, se tivessem blindado as casas de bombeamento, de 2023 para cá, nem uma gota de água teria entrado. E é por isso que eu sou a favor de uma responsabilização”, reclamou.

Novas estratégias

Outra estudiosa de urbanismo que conhece bem a situação de Porto Alegre é mais enfática em sua crítica. A especialista mexicana em água e cidades Loreta Castro Reguera diz não ter ficado surpresa com o que ocorreu na capital gaúcha, pois entende que a cidade sempre foi vulnerável a inundações. Ela cita as críticas do hidrólogo gaúcho Carlos Tucci sobre o fato de a cidade ter um dique ao redor dela. “Justamente porque o dique faz com que a água fique presa e não possa sair”, disse ao Meio. Para Reguera, somos parte de um sistema, e o humano não pode se sobrepor ao natural. “Precisamos gerar uma mudança de mentalidade sobre como nos aproximamos do planeta, não é? Porque obviamente tentar controlá-lo é impossível. Então, é melhor aceitarmo-nos como parte desse sistema e projetar para ele”, disse.

Entendendo que assim como a natureza é incontrolável, o crescimento das cidades também é de difícil controle, Reguera defende que temos de buscar soluções que levem em conta as particularidades de cada localidade, tanto para captação de água, proteção de encostas ou de defesa contra alagamentos. E cita como exemplo de mudança de mentalidade ao abordar essas estratégias o caso da Holanda, que sempre investiu em grandes obras de engenharia para conter o avanço do mar e que, "nos últimos anos, vem desenvolvendo outro tipo de estratégias mais suaves e mais ao alcance das pessoas, com menos recursos econômicos". Uma dessas estratégias são casas que não têm fundações, e sim flutuadores, e o quarteirão todo sobe ou baixa sem danificar as casas no caso de inundação.

Outro exemplo que ela traz vem de Malmö, na Suécia.“Eles tinham também problemas de inundações e, ao mesmo tempo, quiseram fazer o manejo sustentável de água. Criaram esse bairro completo, onde as casas estão distribuídas ao redor do quarteirão e têm ao centro um espaço verde. Esse espaço verde recebe toda a água residual das casas, trata a água residual, que é reutilizada em banheiros e nas áreas verdes. Depois toda essa água volta para um grande pântano que está no bairro. E têm um montão de áreas de permeabilidade, zonas que permitem uma adaptação aos momentos em que chove demais.”

Já o arquiteto e professor da Escola da Cidade em São Paulo Fernando Viegas disse ao Meio que já sabemos que as cidades não podem ser pensadas como independentes do meio ambiente, que é preciso romper a lógica do século passado. “Você nunca vai poder pensar as coisas como soluções imediatas, como foi feito ao longo do século 20, que a gente viu que foi um desastre. Mas as mudanças requerem um compromisso muito maior, que envolva inteligência numa forma mais ampla e uma discussão entre diferentes áreas.”

Um dos lugares em que vê essa lógica sendo rompida hoje é na China, que trabalha a questão da porosidade das cidades. “Estão quebrando as marginais e construindo parques lineares ao longo dos rios, o que permite um regime natural de cheia e vazante, estão desviando o trânsito, investindo muito em transporte público, trazendo barcos de volta para os rios.”

Emissões de carbono

Não incentivar as emissões ainda é um desafio muito grande no Brasil. Recentemente, foi aprovado na Câmara dos Deputados o projeto de lei que regulamenta o mercado de carbono. A proposta cria um limite de emissões de gases do efeito estufa para as empresas. As que mais poluem deverão compensar suas emissões com a compra de títulos. Já as que não atingiram o limite ganharão cotas a serem vendidas no mercado. Na Câmara, o deputado Aliel Machado (PV-PR) foi o relator do projeto e aponta a necessidade de inverter a atual lógica da rentabilidade. A ideia é fazer valer a ideia de que é mais lucrativo manter a floresta em pé do que desmatar, considerando as relações no campo. Uma emenda adicionada ao projeto na Câmara deu também a dimensão do que ocorre nas cidades. O artigo 60 aprovado pelos deputados prevê que os órgãos de trânsito devem regular as compensações das emissões também por proprietários de veículos.

“Não tem como desassociar a discussão econômica das questões ambientais. Infelizmente, o futuro tenebroso que nos era arremetido chegou da maneira mais drástica, levando vidas e destruindo cidades inteiras. E o mercado de carbono surge como uma alternativa para que possamos remunerar a floresta de pé, o reflorestamento e, consequentemente, a diminuição do CO2, que é o grande vilão das catástrofes ambientais que temos no Brasil e no mundo”, disse o deputado ao Meio. “Mas, para que isso funcione efetivamente, é fundamental uma compreensão de todos e participação do poder público, sociedade civil e setores econômicos. A ciência já nos avisou e agora toda a sociedade clama por medidas eficientes e rápidas para ajudar a resolver ou amenizar o problema que já não é mais do futuro e sim do presente.”

Ciência hoje

A tecnologia, entendida de forma ampla, é uma aliada não só para essas novas estratégias urbanas como também tem sido usada nesse momento no auxílio às vítimas da enchente no Rio Grande do Sul. Pensando apenas na questão dos alagamentos, já existem muitas maneiras, com custos variáveis, de se criar sistemas eficazes de alerta usando diferentes tecnologias, inclusive as redes sociais, e de telemetria para medir águas.

Lembrando que, quando pensamos em redes, há sempre uma preocupação legítima de checar a informação, um trabalho ativo de buscar fontes confiáveis. Afinal, mesmo diante da tragédia, as redes de desinformação seguiram atuando de forma implacável. Por outro lado, há antídotos e a tecnologia foi aliada na formação de uma rede de solidariedade, com gente comum fazendo a sua parte. É o caso de Vitor Arnt, estudante de computação da UFRGS que já no começo da semana centralizou informações checadas de como ajudar as vítimas no bento.me/ajudars, ou da especialista em redes sociais Diana Haas, que criou um robô para interagir com sua página no Instagram, com informações seguras de doação, a partir da interação com um post na rede social.

Soluções práticas também foram levantadas rapidamente e colocadas em prática. Ao perceber que a questão da água potável seria crucial para os afetados pela enchente, o coordenador do Projeto Saúde & Alegria, Caetano Scannavino, começou uma articulação para levar ao sul filtros de baixo custo que usam nanotecnologia. São canudinhos que conseguem 99,9% de proteção contra vírus, bactérias e impurezas. Uma tecnologia que tem sido usada na Amazônia, tanto em áreas sem água potável, quanto em regiões afetadas pelo garimpo, como as aldeias Munduruku.

Força da grana

Por mais que exemplos de novas estratégias comecem a surgir mundo afora, sair da roda destrutiva desse modelo de cidades é mais complexo do que se pensa. Significa romper com uma lógica hegemônica, uma engrenagem de interesses que turva a visão de futuro. Segue forte a ideia de usar todo espaço para permitir que ele seja rentável do ponto de vista econômico. Romper com isso significa romper com essa lógica-fim e perceber que a defesa da vida é um valor mais importante que a rentabilidade dos negócios. Além disso, a coalizão que sustenta o modelo atual de cidades é absolutamente hegemônica e detém o controle político das cidades. Para Raquel Rolnik, trata-se de um conjunto de interesses econômicos e políticos que mantém as coisas como são porque se ganha com esse modelo.

Rolnik esteve na equipe inicial do Ministério das Cidades, em 2003, quando a pasta foi entregue por Lula ao ex-governador do Rio Grande do Sul Olívio Dutra (PT). E foi nessa época que o governo começou a elaborar políticas habitacionais que, posteriormente, culminaram no plano Minha Casa, Minha Vida, marca dos primeiros mandatos de Lula e de Dilma Rousseff. A arquiteta deixou o governo justamente por não concordar com os princípios adotados pelo programa habitacional. “O programa era como eu achava que não deveria ser feito. Era a ideia de uma produção de habitação onde não tem cidade, abrindo frentes de expansão e pensando moradia como se fosse plantation”, disse. Embora considerando que o modelo estava longe do ideal, Rolnik pondera a importância do plano para pessoas mais pobres. “Onde essas pessoas iriam morar se não houvesse o programa? Seria um lugar mais longe e mais precário ainda”, ressaltou.

Para suplantar essa lógica que ainda perpassa muitas das decisões públicas, precisamos implantar o que o urbanista Pedro Henrique de Christo, presidente do Nave (Novo Acordo Verde) e diretor do Parque Sitiê e MPP’11 Harvard, chama de urbanismo climático em artigo na Folha: novas estratégias que levem em conta o meio ambiente e soluções locais de baixo custo para modificar as cidades, como foi feito com o urbanismo social de Medellín ou no Parque Sitiê.

“É urgente produzir controle climático por meio de estruturas multifuncionais de resiliência urbana, onde são utilizados elementos naturais de terreno, vegetação e água como tecnologias construtivas associadas à aplicação pontual de materiais duros, como o concreto, com o objetivo de fazer a água penetrar no solo, ser absorvida por vegetação que incha, diminuir sua velocidade e ser concentrada em áreas previstas para alagamento — junto a redes de drenagem construídas como parte de espaços públicos verdes de integração e sustentabilidade”, argumenta.

Repensar a ocupação urbana diante do aquecimento global não é uma tarefa para amanhã. É preciso começar antes da próxima tragédia, que certamente virá mais cedo do que o estimado, e, como no Rio Grande do Sul, com um altíssimo custo em vidas, e um impacto econômico desastroso.

Diário: uma cidade tomada

Conheci o Sebastião em 2015. Um senhor pardo, de média estatura, que tem uma fala calma e dirige um Gol 1000 cinza. Grande entusiasta e profissional em botânica, ele é jardineiro no prédio em que morei entre 2015 e 2021. Quando chuvas mais fortes atingiam Porto Alegre, ele era sempre a primeira pessoa que eu entrava em contato para ver se tudo ia bem. Ele me respondia que sim, que tinha construído a casa mais alta justamente por conta das enchentes. Há mais ou menos 30 anos Sebastião e toda a família moram na Ilha das Flores, uma das ilhas que faz parte do arquipélago do Delta do Jacuí, a cerca de 10km do centro de Porto Alegre.

Na quinta-feira, dia 2 de maio, Sebastião foi resgatado pelo exército, saiu de casa com a roupa do corpo e os documentos. A água invadiu a casa que ele construiu cuidadosamente mais alta, e até agora não baixou. Alojado em um bairro da Zona Norte de Porto Alegre, Sebastião não sabe ainda dimensionar o que perdeu em termos materiais. Entretanto sabe que o jardim e suas plantinhas provavelmente não resistiram. Fotos do jardim, das flores brotando, da samambaia que não sobreviveu nas minhas mãos, mas que Sebastião ressuscitou. Todas essas imagens ele compartilhava comigo pelo WhatsApp, onde a foto dele, inclusive, é com uma bergamoteira que tinha no pátio de casa. A água, essencial para a sobrevivência da flora, tão adorada por Sebastião, desta vez foi vilã.

Sou gaúcha da fronteira, de Uruguaiana, situada a 695 km de Porto Alegre. Nos últimos anos, a cidade, que é plana, vem passando pelo processo de verticalização, mas sempre teve mais casas do que prédios. Quando pequena, em visitas a Porto Alegre, dizia que meu sonho era morar na capital, porque considerava linda a vista cheia de prédios.

Há 11 anos moro na capital e realizo o sonho da Maria Eugenia criança de ver a vista da cidade alta. Nas últimas semanas, entretanto, a vista da cidade alta não é gentil, nem aos olhos, nem aos que aqui habitam. Estou segura. Nada perdi. Não precisei sair da minha casa pois meu bairro não foi afetado pela enchente. Mas é difícil sair ileso de um trauma coletivo. Estou sem água, busco banho na casa de amigos que já foram reabastecidos, vez e outra fico sem luz e internet. Estou imersa em notícias sobre a tragédia, equilibrando pratos entre meu trabalho e em voluntariados para ajudar vítimas das enchentes.

Na última semana, o barulho da cidade viva foi tomado por uma melancolia e o ruído constante de helicópteros e sirenes de polícia, ambulância e bombeiros. Não sei se você já leu ou ouviu por aí que o clima por aqui está parecendo como em meados de março de 2020, quando o coronavírus começava a se alastrar pelo Brasil. É semelhante, mas me arrisco a dizer que é ainda pior.

Tenho a sensação de todo dia é o mesmo dia, e estamos sempre aguardando pela próxima medição do Guaíba. Paira um ar tenso, há poucos carros na rua, as gôndolas dos supermercados estão escassas de mantimentos – há uma cota estabelecida para compras, inclusive de água. Ironicamente, a abundância da água da chuva nos deixou sem água potável. Pelas ruas o assunto são sempre os mesmos, a enchente, a falta de água, de luz e a previsão do tempo. O que era uma conversa leve de elevador, se tornou um diálogo tenso e cheio de medo: será que chove?

Um estado que não terminou de reconstruir suas cidades e nem chorou seus mortos da enchente de setembro de 2023, no Vale do Taquari, sete meses depois se vê engolido pela água e, mais uma vez, resgatando pessoas, animais e contando mortos e desaparecidos. Um estado que foi alertado e ignorou completamente o sinal.

Há uma forte mobilização civil para minimizar o sofrimento de quem foi fortemente afetado. Há uma rede de solidariedade  para doação de alimentos, roupas, itens de higiene, que depois passam por uma triagem. Com frequência você vê na rua carros transportando colchões e até barcos ou botes no reboque. Há inúmeras cozinhas solidárias espalhadas pela cidade preparando marmitas para os atingidos. Toda essa logística acontece pela ação conjunta de voluntários. Ao menos, penso, é possível ter contato seguro com as pessoas, algo que gerava medo em 2020. Agora, de certa forma, conforta.

Nesta rotina de doações foi que conheci Raquel, uma técnica de enfermagem e colega de trabalho da minha irmã. Provavelmente, se não fosse essa catástrofe, nunca teríamos tido um contato direto. Até então, Raquel morava com a família em Eldorado do Sul, uma das cidades metropolitanas de Porto Alegre que está 90% submersa. Assim como na casa do Sebastião, a água nunca tinha avançado na casa de Raquel, que morava há quase 10 anos na cidade.

Na sexta-feira, 3 de maio, por volta das 21h, Raquel e o marido decidiram se deslocar até Porto Alegre, porque a água avançava na cidade. A ideia dele era voltar e buscar os filhos. Não conseguiu. A inundação foi tão rápida que os acessos a Porto Alegre foram bloqueados. Na madrugada, os filhos de Raquel tiveram que sair da casa, que já estava sendo tomada pela água. Junto dos avós, ficaram ilhados na beira da BR esperando resgate.

No sábado, poucos minutos depois que eu e minha irmã entramos no apartamento com as doações, um responsável pelos resgates ligou avisando que seus filhos e a mãe estavam chegando em Porto Alegre, haviam sido resgatados pelo Exército. Inicialmente, seriam deixados em um ponto da Avenida Assis Brasil, na Zona Norte. Porém, o ponto logo foi tomado pela água.

Nestes dias, é a natureza que dita as regras de como viver em Porto Alegre, assim é uma metrópole que vive cenas quase distópicas. Ruas importantes, pontos turísticos, estabelecimentos tradicionais, todos inundados. É recorrente escutar “quem imaginou que a água chegaria no Mercado Público? Ou na Casa de Cultura Mario Quintana?”. E chegou. No final de semana anterior, estávamos ocupando a rua em um festival de fanfarras, que recebeu musicistas de diversos lugares do Brasil. Na semana seguinte, barcos transitavam por essas ruas resgatando moradores impossibilitados de sair de suas casas por conta da água.

Penso na enchente como um luto. A partir daquela perda, nada será como antes e sempre haverá um buraco, que não será preenchido. As tragédias também levam consigo afetos, memórias, fotos, a construção de uma vida toda. A partir deste momento, a vida das pessoas precisará ser reconstruída do zero e será sempre cercada pela iminência do medo da chuva e do que se sucederá a partir dela.

Termino de escrever este relato na sexta-feira à tarde e chove em Porto Alegre. A cidade foi tomada. Pela água, pelo medo, pelo luto e também pela solidariedade de um povo. Como diz Emicida em Principia: “tudo, tudo, tudo que nóis tem é nóis”.

Desastre também na economia

Embora seja cedo para se ter uma ideia da real dimensão dos estragos, todos os setores econômicos serão afetados, dos pequenos comerciantes às grandes indústrias. Consultorias do setor afirmam que a destruição das lavouras de soja no estado, que é segundo maior produtor da leguminosa no Brasil, pode elevar os preços do óleo, além da carne de porco. A perda de vacas e pasto também vai impactar a criação de gado para a produção de leite, e as frutas tradicionais da região, como uva, pêssego e maçã, devem encarecer nas prateleiras. Os efeitos da catástrofe ainda serão sentidos na indústria local, cuja paralisação pode levar à falta de suprimentos de inúmeros setores.

O estado também é o maior produtor de arroz do Brasil, sendo responsável por 70% da produção. Com as chuvas, cresce o receio de que poderá haver falta do grão no mercado interno, com corrida aos supermercados. Embora representantes do setor tenham garantido que a produção de arroz colhida no RS seja suficiente para abastecer o país nos próximos meses, o governo federal publicou ontem, em edição extra do Diário Oficial, uma Medida Provisória (MP) autorizando a importação, em caráter excepcional, de até 1 milhão de toneladas de arroz para recomposição dos estoques públicos, que serão destinados, principalmente, à venda para pequenos produtores rurais do Rio Grande do Sul.

Para Guilherme Dietze, assessor econômico da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP), além do aumento da inflação no bolso do consumidor, os impactos das enchentes também serão sentido no Produto Interno Bruto (PIB) do país. “Os preços podem ficar pressionados não só pela queda na produção, mas também pela falta de estradas e comunicação, causando atrasos na logística de insumos e ocasionando a falta de alguns produtos para os consumidores em todo o país”, explica o economista. "São questões que terão impacto no curto, médio e longo prazo. As pessoas precisam ficar atentas, pois haverá impactos no bolso e na economia nacional. A economia do Rio Grande do Sul é extremamente importante, e a recuperação do estado não será tão rápida.”

Previsão é de recessão

Neste cenário, alguns acreditam que o PIB do Rio Grande do Sul pode entrar em recessão em 2024, ou sofrer uma pequena queda. Por isso, consultorias como a XP Asset já revisaram suas projeções para o crescimento da economia neste ano. A estimativa é que as enchentes reduzam em 0,2 ponto percentual a expansão do PIB do Brasil em 2024. Já os cálculos preliminares da 4intelligence apontam que o desastre pode fazer o crescimento do PIB gaúcho chegar a apenas 0,5% este ano, de 5,5% projetados anteriormente. Em seu relatório, o Bradesco acredita que o principal impacto na atividade se dará em maio, e que em junho grande parte das atividades estará normalizada, a depender dos danos físicos e do ritmo de recuperação. O banco também vê impacto potencial da tragédia de 0,2 a 0,3 p.p. sobre o PIB brasileiro. Já o impacto sobre o IPCA nacional seria da ordem de 0,06 p.p., que provavelmente será revertido nos meses seguintes.

Com o estado devastado, a concessão de linhas de crédito com condições especiais para os produtores rurais é uma das principais reivindicações de entidades da economia gaúcha para mitigar os danos e ajudar na recuperação da região. “Nós pedimos uma linha de crédito especial para que eles possam pagar suas contas”, afirmou Antonio da Luz, economista-chefe da Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Farsul), em entrevista ao Meio. “Mas é muito cedo para mensurar qualquer coisa. Quem tem que fazer [reconstruir o estado] é quem coleta os impostos. As entidades não coletam impostos. Quem tem a obrigação de fazer alguma coisa é o governo brasileiro.” Nesta semana, a federação e mais de 100 sindicatos rurais do estado se reuniram com o ministro da Agricultura e Pecuária, Carlos Fávaro. A Farsul apresentou a necessidade da prorrogação de dívidas, criação de uma linha de crédito com juro de 3% e prazo de pagamento de 15 anos, com até dois anos de carência. A instituição solicita ainda a restrição de burocracia para acelerar a tramitação dos processos.

No pacote anunciado na última sexta-feira, o governo federal liberou a injeção de R$ 50 bilhões para o Rio Grande do Sul. O dinheiro será usado entre outras coisas, para a antecipação do Bolsa Família, operações de crédito e aporte a fundos de bancos públicos, além de descontos em juros de empréstimos feitos a produtores rurais gaúchos. Antonio da Luz afirmou que a entidade ainda está avaliando o pacote, mas ressaltou que “muitos produtores perderam tudo e precisam ter uma forma de pagar”. O economista também criticou os anúncios do governo sobre a importação de arroz, dizendo que “não há necessidade alguma”. “O governo tem um desejo estranho de controlar os preços. Já fez isso com os combustíveis, com a energia elétrica, e agora quer fazer com o arroz. Quando o governo faz esse tipo de anúncio, ele causa pânico para a população, que vai correr para os supermercados para estocar arroz. Isso é o que causa o desabastecimento”, rebateu.

Guilherme Dietze, da FecomercioSP, acredita que a reconstrução do estado virá a longo prazo e também defendeu a coordenação dos bancos públicos para fornecer crédito com taxa de juros básica, ou mesmo subsidiadas, para produtores e empresas da região. “Em uma reconstrução como essa, é importante que as empresas impactadas tenham condições de restabelecer a ordem operacional. No médio a longo prazo, além das ajudas feitas pelas organizações não governamentais, de empresas e pessoas físicas, o governo precisa de um plano de crédito para que haja a manutenção do emprego e para que essas empresas consigam contratar os equipamentos necessários para voltarem às suas operações”, explicou. Também está em discussão um acordo da União com o governo do RS para suspender o pagamento da dívida de R$ 90 bilhões do estado. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse que as tratativas devem ser concluídas nos próximos dias.

Sem discutir a necessidade do socorro ao Rio Grande do Sul e sem diminuir a urgência com que esse dinheiro precisa chegar ao estado e às cidades afetadas, um ponto de atenção é com a eficiência dos gastos e com a transparência no uso dos recursos, como defendeu, em entrevista ao Zero Hora, o ex-secretário da Fazenda do estado Aod Cunha.

Para finalizar, as mais clicadas da semana:

1. CNN Brasil: Compare as enchentes gaúchas de 1941 e 2024.

2. Globo: As imagens de Madonna em Copacabana.

3. Folha: O agito das redes após show de Madonna.

4. Omelete: A nova roupa do Superman.

5. CNN Brasil: O antes e depois da enchente em Porto Alegre.

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