O caso Silvio Almeida
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Passei o fim de semana pensando se devia entrar no tema do ministro, agora ex-ministro Silvio Almeida, hoje. Sabe, estar no debate público impõe custos sociais. Nos ambientes progressistas, neste episódio, se sua opinião for de jogar pedras, os likes vêm com folga. Mas se sua opinião for um pouco diferente, aí tudo muda. É atrair para si as pedras. Com alguns assuntos, o espaço de conversa possível fica muito limitado. Ter certas opiniões se torna imediatamente tóxico. Só que aí um conhecido num dos grupos de WhatsApp em que estou lançou a seguinte provocação: se acontecesse a mesma coisa com Pablo Marçal, qual seria o resultado?
Bem, a verdade é que não aconteceria nada. Se Pablo Marçal fosse acusado de assédio sexual, o impacto em seu eleitorado seria mínimo. Ou nenhum. Ele seria massacrado pelos progressistas na internet, evidentemente. E o resultado deste massacre seria, possivelmente, Ricardo Nunes perder votos, Pablo ganhar, porque ficaria mais claro quem é o candidato de quem a esquerda não gosta.
Não é assim só no Brasil. É perfeitamente possível imaginarmos os mesmos dois cenários noutros cantos do mundo. Nos Estados Unidos, um senador imensamente popular e querido dos democratas, o humorista Al Franken, foi defenestrado em 2018 num caso bastante similar. Uma jornalista denunciou que ele havia forçado um beijo nela enquanto ensaiavam um esquete teatral, ambos trabalhavam como atores uns anos antes. Mas a partir dali começaram a empilhar outras denúncias. Várias mulheres apareceram contando histórias envolvendo Franken. Ele dizia que algumas eram mentira, que outras eram episódios que ele descreveria de forma muito distinta. Mas disse também que entendia que, em pelo menos alguns daqueles casos, mesmo que sua intenção fosse distinta, ele havia cruzado a linha para as mulheres que o acusavam. Uma comissão do Senado chegou a ser organizada para investigar, mas o processo sequer chegou ao fim. Al Franken renunciou a sua cadeira no Senado americano. Foi defenestrado.
Naquele mesmo momento governava os Estados Unidos Donald Trump, que uns dias antes da eleição presidencial havia sido ouvido, numa gravação, por todos os americanos dizendo que porque ele era famoso podia pegar as mulheres pela vagina. Que fazia isso com frequência. Para os eleitores de Trump, aquilo não queria dizer nada. Enquanto Franken renunciava, concorria a uma cadeira para o mesmo Senado, pelo Partido Republicano, um juiz do Alabama chamado Roy Moore. É um tipo daqueles que mandou botar um monumento aos Dez Mandamentos na entrada da Suprema Corte estadual. Era acusado de vários estupros de menores. Ele negava, tá? Inúmeras acusações de assédio, também. Em muito maior volume, com mais violência e em geral contra meninas. Casos muito diferentes dos que envolviam Franken. Moore perdeu a eleição, mas perdeu por uma margem menor do que um ponto percentual.
Uma das marcas deste nosso momento da história é essa divisão. É uma polarização profundamente agressiva que nos divide, inclusive, a respeito de valores. A respeito do que é aceitável e do que não é. E até porque surge desta divisão a necessidade de reiterar ao máximo possível a diferença entre um grupo ou outro, nossas posições são sempre imediatas. A gente precisa se manifestar imediatamente sobre qualquer coisa. E precisamos nos manifestar sem demonstrar qualquer dúvida. O mero ato de reconhecer que talvez não conheçamos detalhes o suficiente de uma circunstância, que tudo possa ser um pouco mais complicado, já é suficiente para repúdio imediato.
Tanto assédio sexual quanto importunação sexual são crimes previstos por lei. São crimes que trazem uma particularidade: na maioria das vezes, acontecem a portas fechadas. Acontecem em circunstâncias nas quais não há testemunhas, não tem vídeo, nada. São crimes que podem deixar marcas psíquicas profundas, traumas graves. Mas que na maioria das vezes não deixam marcas físicas que um médico legista possa detectar. Por isso mesmo, são crimes para os quais damos na prática da Justiça um tratamento diferente. O testemunho da vítima tem um peso muito maior. Porque precisa ter um peso maior. Porque, muitas vezes, fora a palavra da vítima, não há mais nada. A alternativa a não dar peso à palavra de quem acusa é em essência permitir que continue acontecendo.
E o Brasil é um país onde assédio e importunação sexual acontecem muito. A gente não tem muitos números com os quais trabalhar. O índice de denúncias é baixo. Mas uma pesquisa da consultoria Deloitte, em ambientes corporativos, ouviu que 40% das mulheres brasileiras já foram vítimas de assédio sexual. Quando perguntadas por que não denunciam, as razões variam no entorno do mesmo tema. No fim, é medo de se expor e ver sua carreira prejudicada. Isto é em ambientes corporativos. Não há por que achar que em outros ambientes seja diferente.
Então quando o acusado de assédio é o ministro dos Direitos Humanos, essa no mínimo deveria ser uma oportunidade para conversarmos sobre o assunto. Para conversarmos sobre Justiça. Uma conversa sobre que sociedade desejamos ter.
Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.
Neste último fim de semana, publicamos um relato escrito pela editora-chefe do Meio, Flávia Tavares, sobre como está a Ucrânia. O país acaba de invadir a Rússia, virando a guerra do avesso. E, ainda assim, ainda celebra sua cultura. Você tem ideia de como é viver num lugar em que as sirenes anti-aéreas podem tocar a qualquer momento do dia ou da noite? A Flávia esteve lá e nos conta. Se você assina o Meio, conhece.
E este aqui? Este é o Ponto de Partida.
Entre janeiro e agosto deste ano, a Controladoria-Geral da União recebeu 557 denúncias de assédio sexual envolvendo servidores federais.
Não precisa fazer as contas. São dois casos por dia.
Assédio e importunação não são a mesma coisa. A ação física pode ser a mesma. O toque, a imposição de um corpo sobre o outro, o ato de tomar uma liberdade que não lhe cabe. Mas há uma diferença fundamental entre um crime e o outro. No assédio, há uma diferença hierárquica. A pessoa que tenta se impor sexualmente, quase sempre um homem, tem poder sobre os destinos da vida da vítima. É quem pode decidir um aumento, uma promoção, uma transferência. É também quem tem poder de transformar a vida profissional daquela pessoa num inferno. No assédio, além da violência sexual há, também, uma relação de poder envolvida. Com a importunação é diferente. Pode ser um desconhecido no ônibus, pode ser um colega de trabalho no mesmo nível hierárquico. Não muda o ato, a violência. Mas não há relação de poder.
O que sabemos de concreto a respeito do ministro Silvio Almeida são dois episódios. Um envolvendo sua colega de Esplanada, a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco. Ela não falou publicamente sobre isso, nem tem qualquer obrigação de falar sobre isso em público. Mas comentou com outros ministros que aconteceu. O outro caso é de uma candidata a vereadora em Santo André, a professora Isabel Rodrigues, que publicou um vídeo no Instagram descrevendo uma situação similar à denunciada por Anielle. Silvio teria enfiado a mão entre suas pernas.
A informação publicada na imprensa é de que a ONG Me Too falava de mais de dez denúncias envolvendo o ex-ministro. Segundo apuração da jornalista Ana Flor, alguns são casos de assédio moral. Concretamente, o governo federal investiga quatro casos de assédio sexual que o envolvem. Não há nenhuma outra informação pública. Há muita ilação.
As denúncias de assédio moral saíram quarta-feira no UOL e, na quinta, o jornalista Guilherme Amado, do Metrópoles, falou de assédio sexual e envolveu o nome da ministra Anielle Franco. Na sexta-feira o presidente Lula demitiu Silvio. A decisão é correta. Não havia o que fazer. Não pode um ministro, ainda mais o ministro dos Direitos Humanos, conviver com a suspeita de ter cometido um crime contra os direitos humanos. Ele precisa ser afastado do cargo. Não pode haver dúvida a respeito da reputação de um ministro de Estado.
A partir daí, o procedimento correto é este: o ministro é afastado, a CGU e a Polícia Federal abrem investigações. Quem acusa é ouvido com todos os preceitos de que neste tipo de caso sua voz conta mais do que noutros crimes. O ministro é ouvido. Testemunhas são convocadas. Provas são apresentadas: trocas de Zap, fotografias, vídeos, o que for, o que houver. Este inquérito é concluído e encaminhado ao Ministério Público que decide se há elementos para apresentar uma acusação formal. Aí vão todos à Justiça. A pena pode chegar a três anos de reclusão. É o que diz a lei.
Só que não foi só isto que aconteceu, não é? Será que a gente é capaz de conversar honestamente a respeito do que aconteceu aqui entre quinta e sexta-feira passada? Nós assistimos, coletivamente, ao maior cancelamento jamais feito no Brasil. O nome de Silvio Almeida foi condenado amplamente em todos os setores progressistas. Uma pessoa após a outra, gente que tratava ele como um dos maiores intelectuais públicos do país apenas uma semana atrás, foi às telas para publicamente bani-lo da sociedade educada. Aqui ele não tem mais espaço. Ele não pertence mais ao nosso grupo. Expulso sumariamente perante a acusação feita. Foi um ritual tribal. No mundo pré-iluminista, era assim que se fazia Justiça. As pessoas que cometiam certos crimes eram tornadas párias. Às vezes, suas peles eram marcadas com letras para que em qualquer lugar que chegassem todos logo soubessem. Lá está uma mulher adúltera ou seja qual for o crime moral que aquela pessoa tivesse cometido.
Não houve inquérito. Não houve julgamento. Não aconteceu nada, ainda. Pessoas que passaram os últimos dez anos reclamando da falta do devido processo legal se tornaram punitivistas radicais e imediatas.
Olha, pode ser que seja assim mesmo. É só chegarmos ao acordo a respeito de em que tipo de sociedade desejamos viver. Se uma pessoa for acusada de assédio ou importunação sexual, nosso acordo é este? Perante a acusação, todos nós coletivamente erguemos o dedo, apontamos e falamos em conjunto: “Culpado.” Quem julgou? Nós a partir do que lemos na internet. E a partir daí, a sentença: “Banido.” O espaço que você um dia teve na sociedade não existe mais.
É este o ideal progressista de sociedade?