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The Dark Side of the Rainbow

Quando nasci, no ano 2000, o Pink Floyd há muito já havia rompido a formação responsável pelos principais sucessos da banda. Mas também, o filme O Mágico de Oz, de 1939, já era quase mais velho que minhas avós e mesmo assim fez parte da minha formação.

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No caso da banda de rock britânica, a curiosidade veio na pré-adolescência, e com ela o hiperfoco de buscar conhecer os detalhes das músicas e bastidores das composições. Logo tomei conhecimento da teoria do The Dark Side of the Oz ou The Dark Side of the Rainbow, na qual é afirmado ser possível sincronizar o clássico filme infantil com o mais famoso álbum do Pink Floyd, The Dark Side of the Moon. Como se tivesse sido composto secretamente para essa finalidade.

Há diversas coincidências estéticas, narrativas e semânticas. Mas os integrantes da banda negaram e ironizaram por diversas vezes a teoria. David Gilmour, guitarrista e vocalista, disse que os autores da teoria seriam pessoas “com muito tempo livre”. O baixista e idealizador principal do álbum, Roger Waters, disse que era “besteira“. O baterista, Nick Mason, foi além e disse que as músicas eram baseadas em A Noviça Rebelde, em clara ironia. Já o engenheiro do The Dark Side of the Moon, Alan Parsons, foi quem deu o melhor argumento, dizendo que a banda não tinha meios técnicos de tocar fitas de vídeo no estúdio no momento da gravação para fazer a suposta sincronização.

Mesmo assim, é possível encontrar facilmente no YouTube o filme com a trilha sonora do Pink Floyd junto de comentários de entusiastas. E melhor ainda: é possível ver o resultado nas telonas. O Reag Belas Artes, famoso cinema de rua próximo à Avenida Paulista, em São Paulo, realiza o Belas Sonoriza, em que filmes são exibidos com bandas tocando a trilha sonora ao vivo. Um dos mais tradicionais e queridos pelo público, no entanto, é justamente The Dark Side of the Oz.

“A exibição de The Dark Side of Oz foi uma das primeiras do Belas Sonoriza. A primeira edição foi em 2019 com o intuito de resgatar as primeiras sessões de cinema, que musicavam os filmes mudos ao vivo, com uma repaginada contemporânea”, disse Marina de Castro Alves, coordenadora executiva do Belas Artes Grupo e curadora do Belas Sonoriza. Ela também conta que há um desafio logístico aos domingos, quando a Avenida Paulista está fechada para os carros. Isso já gerou algumas “aventuras”, segundo a curadora, como quando a entrega de equipamentos das bandas teve de ser feita na madrugada. “Por ser um prédio antigo também já tivemos alguma dificuldade no transporte de um piano de cauda para a sala”, conta.

A sala de cinema é quase tradicional, não fosse o maior espaço entre a tela e as poltronas, justamente para abrigar os instrumentos e artistas responsáveis pelas trilhas sonoras. Como reza a lenda, é no terceiro rugido do leão do estúdio Metro-Goldwyn-Mayer, que antecede o começo da história de Dorothy, o momento exato do início da sincronia entre o álbum e o filme. Então, a exibição alterna entre momentos de um cinema praticamente mudo, com a banda se sobressaindo, momentos em que apenas o filme é ouvido, e sobretudo a mescla entre as duas coisas. O disco do Pink Floyd tem 42 minutos de duração e o longa-metragem, 1 hora e 42 minutos. Naturalmente, então, a banda tocou todas as músicas duas vezes e ainda uma terceira em que se chega à metade da jornada musical que investiga o ser humano e suas mazelas.

Tanto o filme como o álbum são clássicos, ou seja, para além da qualidade artística e técnica, são atemporais e sua relevância sobrevive ao tempo. Mesmo com isso em mente, foi difícil, durante o espetáculo, não me impressionar com a atualidade das letras da banda. Escritas no contexto da Guerra Fria, as músicas tratam do envelhecimento (Breathe), do fato de o tempo, ano após ano, parecer correr mais depressa (Time), da morte (The Great Gig in the Sky) — com um solo vocal brilhante no lugar de palavras, embalado por acordes melancólicos e positivos em que é possível perceber negação, dor, e por fim aceitação — da ganância e da capilaridade do capitalismo para dentro da subjetividade humana (Money), da guerra, ainda presente, mas também ressignificada a partir da polarização política extrema (Us and Them), e até da sanidade mental (Brain Damage).

Diferenças e semelhanças

Para além da já citada negação dos artistas, a teoria de ser proposital a sincronia entre o álbum de Pink Floyd e o filme dirigido por Victor Fleming tem como fraqueza o viés de confirmação, ou seja, ao crer na hipótese enxergamos apenas os fatos que corroboram nossas crenças prévias e ignoramos o que pode servir de contraponto. Afinal, apesar de muitas coincidências, o que dizer das não-coincidências com o resto todo do filme? Quantos outros filmes não poderiam conter similaridades parecidas

Apesar disso, mesmo os mais céticos precisam reconhecer que a teoria não é famosa por acaso. Em uma rápida pesquisa, ou mesmo fazendo a experiência de soltar as músicas com o filme, é possível encontrar dezenas de coincidências. Entre as que mais chamam a atenção, estão o solo vocal de The Great Gig in The Sky no exato momento em que o ciclone no Kansas acontece. Um pouco depois, enquanto Dorothy se encontra a primeira vez que o homem de lata que não tem coração, é possível ouvir batimentos cardíacos vindo de efeitos sonoros da música. Mais cedo, Dorothy está na fazenda e, ao olhar para o alto, surge um barulho de avião na música. O som da caixa registradora no começo de Money aparece exatamente quando Dorothy pisa pela primeira vez na Estrada dos Tijolos Amarelos, e então o filme deixa de ser preto e branco e ganha cores a partir da aparição da fada. A cena em que Dorothy encontra o espantalho, personagem que alegava não ter cérebro, é acompanhada pela música Brain Damage.

Paralelos conceituais

Talvez, além das cenas sincronizadas, seja possível dizer que as duas obras, no mínimo, rimem também em semântica. Enquanto The Dark Side of the Moon tenta entender o micro a partir do macro, com temas amplos como a guerra e o dinheiro, refletir sobre a atitude e sentimentos das pessoas, o Mágico de Oz é uma fábula que mescla a imaginação de uma criança com poderosos ensinamentos e símbolos. Um leão sem coragem, um homem de lata sem coração e um espantalho sem cérebro se unem à garota para derrotar uma bruxa má e irem atrás do grande mago, que, no final das contas, era um charlatão, mas que concede coragem, coração e cérebro, apenas relembrando aos personagens os seus feitos. Não seria necessário um mágico, mas apenas mergulhar dentro de si para encontrar o que busca: seja uma virtude perdida ou uma reflexão profunda sobre o que mais faz mal à humanidade.

Em alguma medida, o Mágico está para Dorothy, como o dinheiro está para Pink Floyd: uma fonte de ilusão a partir de promessas “douradas” de felicidade, quando o que se busca é algo mais profundo. Mesmo chegar ao mago (ou ao sucesso, no caso da banda) pode ser frustrante.

No final do filme, Dorothy já de volta ao Kansas, repara que todos os personagens com quem interagiu se parecem com pessoas reais de sua vida. Isso evidencia uma similaridade da obra com o princípio da correspondência da filosofia hermética, que afirma misticamente que “o que está em cima é como está embaixo, e o que está em baixo é como está em cima”. Se, na realidade da garota, o filme fica em preto e branco e o reino de Oz colorido, e pessoas comuns assumem outros papéis, é possível entender os mundos como espelhados e invertidos em correspondência. Também, por coincidência, a música Us and Them usa versos com correspondentes inversos. Nós e eles, eu e você, preto e azul (cores do luto e da tristeza, a depender da interpretação), para cima e para baixo, com ou sem, etc.

Por fim, tanto o filme quanto o disco, após refletirem sobre os esses temas, falam também sobre a volta para casa e a vida como o que acontece enquanto isso. “Home, home again”(lar, lar novamente), “And everything under the sun is in tune, but the sun is eclipsed by the moon” (E tudo sob o sol está alinhado, mas o sol está coberto pela lua). Se o arco-íris não tem um fim, a lua também não tem um lado sempre escuro.

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