O Meio utiliza cookies e outras tecnologias semelhantes para melhorar sua experiência. Ao navegar você concorda com tais termos. Saiba mais.
Assine para ter acesso básico ao site e receber a News do Meio.

O sonho da regulamentação

Professora associada da UnB e membro do Conselho Nacional de Política sobre Drogas, Andrea Gallassi fala ao Meio sobre os desafios da cannabis medicinal no Brasil

Andrea Gallassi fez parte do primeiro grupo de pesquisadores que conseguiu autorização para importar produtos e estudar a cannabis medicinal no Brasil. Mestre e doutora em medicina pela USP, é professora associada da Universidade de Brasília e coordenadora do Centro de Referência sobre Drogas e Vulnerabilidades Associadas. Hoje ela está à frente do grupo de trabalho sobre cannabis medicinal no Conselho Nacional de Política sobre Drogas (Conad), buscando estudar modelos de regulamentação do uso da planta que possam influenciar a política de drogas brasileira. Nesta conversa com o Meio, ela falou das nova composição do Conad, do cabo-de-força entre Supremo Tribunal Federal e o Legislativo na questão do porte de maconha e também sobre os horizontes de pesquisa no país. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

Quais são as principais discussões no Conad hoje?
O Conad se dividiu em grupos de trabalho justamente para tentar fomentar discussões mais profundas sobre diferentes temas. Eu coordeno o GT da cannabis, que é o mais estratégico e mais difícil, mas tem também o GT de política de drogas, o de cuidado que pensa modelos de cuidado e tratamento, o de finanças. O objetivo foi aprofundar nesses temas, ter trabalhos simultâneos. Após a finalização dos trabalhos, temos de apresentar o que fizemos para o plenário.

Historicamente, Conad sempre foi um lugar de bola dividida, com membros proibicionistas e antiproibicionistas. Isso tem mudado?
Os proibicionistas tinham uma fatia maior, historicamente. O que aconteceu dessa vez é que o Conad fez um processo eleitoral com candidaturas de instituições que gostariam de ter um assento no conselho, com votações internas nas instituições. Assim, hoje, a composição é majoritariamente antiproibicionista. O conselho é paritário, ocupado meio a meio pela sociedade civil e pelo governo,  e a maioria dos representantes da sociedade civil é antiproibicionista. Mas não todos.  O Conselho Federal de Medicina (CFM) é a favor da proibição. Mas o conselho está bastante favorável a discussão antiproibicionista, com possibilidade de avanço real.

O Conad se posicionou contra a PEC 45/2023, que reforça a criminalização do porte de drogas. Como se deu essa decisão?
Para sair aquele texto e ser chancelado como do Conad não foi uma coisa simples. Foi uma novela, não está suave discutir isso, porque o governo como um todo está bastante cauteloso. No Ministério da Saúde, a coisa está difícil. A gente está tentando, enquanto GT,  trazê-los para uma discussão para conseguir sair com posicionamentos mais concretos. A Anvisa, que não é do Ministério da Saúde, mas é uma autarquia ligada a ele, está mais progressista em suas regulamentações do que o próprio MS.

Quando olhamos para o mercado de hoje de cannabis medicinal no Brasil, temos uma série de associações já com liminares funcionando, podendo plantar, e a criação de clubes canábicos com autorização para vender flores, além de óleos e de produtos comestíveis. O que proporcionou essa abertura foi uma combinação de aprovações na Anvisa com a atuação do Judiciário?
Já existe um cultivo grande no Brasil, o que a gente não tem é uma regulamentação mais avançada. O único caminho que se tem hoje em dia, com essa conformidade política, é o da judicialização. Há duas grandes frentes de discussão nesse tema. Uma que é voltada para essa questão de autorização e de regulamentação, sem passar pelas vias judiciais, da produção nacional para fins medicinais e para pesquisa. E você tem uma outra discussão que é a regulamentação dessas associações e do próprio cultivo doméstico. Como hoje a regulamentação está travada, só a via judicial funciona, seja para o cultivo associativo ou para o cultivo doméstico.

Você tem ideia do tamanho desse mercado medicinal hoje?
No Anuário da Cannabis Medicinal, produzido pela Kaya Mind,  uma empresa brasileira de inteligência de mercado para o setor da cannabis, ela faz a estimativa de qual seria esse mercado. Estima-se, por exemplo, que o Brasil gastou R$ 165,8 milhões com fornecimento público de derivados da cannabis de 2015 até a metade de 2023. Mostram também que há importação de produtos canábicos em 66% dos municípios brasileiros e que mais de 430 mil pessoas fizeram tratamentos com derivados de cannabis no ano passado e que mais de mil empresas e associações forneceram produtos canários no Brasil no ano passado. E um boletim da Anvisa informa que no ano de 2022 foram deferidos 80 mil pedidos de importação de produtos derivados de Cannabis.

Voltando ao anuário, ele estima que cerca de 6,9 milhões de pacientes no Brasil poderiam ser tratados com derivados de cannabis. Por isso, é imperativa a constante atualização de leis e regulamentações que facilitem o acesso.

Com o mercado sem regulamentação nenhuma, há uma forma perversa de desigualdade no acesso à planta e aos remédios. Como você vê isso?
Existem tem duas frentes. Eu diria que a desigualdade no campo do acesso vem primeiro. Para você conseguir uma pessoa que prescreva medicamentos à base de cannabis, você geralmente não vai conseguir achar um médico numa Unidade Básica de Saúde que vá dar o acesso. A cannabis não faz parte da rede de medicamentos do SUS. Então, você já limita aí. O pobre não vai conseguir esse acesso numa consulta de SUS porque esse médico não vai prescrever um medicamento que não tem na rede nacional. E a pessoa mais pobre sequer tem o acesso à informação via profissional de saúde. Para conseguir, vai ter que pagar um profissional particular, que tenha estudado o tema.

Quais os fatores que inibem a prescrição?
Muitos médicos e médicas não prescrevem, primeiro, por preconceito, segundo, por falta de conhecimento. Em medo do Conselho Federal de Medicina, ainda mais nessa investida autoritária e proibicionista que eles vêm fazendo. Então, a desigualdade se dá  também por que muitos profissionais de saúde também não tem acesso à informação de qualidade, à informação científica. E o paciente só consegue acesso com um médico particular,  se conseguir pagar R$ 500 em uma consulta, e estou falando de uma consulta barata. Depois, para ter acesso a esse medicamento, ele vai ter que ir atrás de associações, que vendem num valor mais acessível. Tem associações, inclusive, que fornecem gratuitamente nessa perspectiva de favorecimento do acesso. O que é importante destacar nesse processo todo é que ele não é linear nem é de fácil entendimento. É uma coisa de muito desgaste.  A gente não tem um fluxo estabelecido, não tem uma regulamentação para dar o caminho. Estamos justamente no meio disso. Você tem ali governo e sociedade civil em um momento de grande volume de trabalho para conseguir extrair uma regulamentação que norteie o Executivo para ações nesse sentido.

Pensa que com essa composição do Conad isso é viável?
Essa composição favorece muito. É uma composição e um cenário muito parecidos com o que tivemos na época da regulamentação da Ayahuasca para fins religiosos, que foi justamente uma resolução do Conad. E a gente tem muito no horizonte querer fazer algo nessa perspectiva.

E como você vê os movimentos contrários? Porque a PEC 45/2023 passou muito tranquilamente pelo Senado.
Sim, de uma forma até surpreendente. Do ponto de vista de quem estuda esse tema, é quase uma unanimidade de que ela é um grande retrocesso, seja na questão que ela vai impactar de encarceramento em massa, seja na questão de acesso a medicamentos, seja na questão mesmo de você diferenciar quem é traficante de usuário.

Como é que você vê a tramitação da PEC na Câmara agora?
No Senado a gente perdeu quase por W.O. Porque se a gente tivesse tido minimamente um apoio, um trabalho ali da base do governo no Senado, a gente teria como reverter, já que a Câmara  tem uma composição muito desfavorável ao tema. Quando se coloca essa criminalização num texto constitucional, aumenta ainda mais a força das organizações proibicionistas, que podem ficar numa vigília ainda maior em cima dos profissionais que prescrevem e, consequentemente, eles vão ficar muito mais resistentes a prescrever com medo de sanções. Você cria um movimento que é desfavorável. Por outro lado, a gente tem perspectivas de que isso não avance muito mais por uma decisão do presidente da casa, do Arthur Lira, de dizer assim: vamos deixar isso aqui, vamos sentar um pouquinho em cima e vamos acalmar.

E como você vê o STF, que estava caminhando a descriminalizar o porte, até o julgamento, que começou em 2015, tivesse um novo pedido de vistas?
O STF entendeu que o melhor a fazer agora é acalmar os ânimos e não pautar, e não trazer essa discussão. Enquanto isso, a nossa expectativa, estando a PEC na Câmara, é de fato também que se acalme, que isso fique meio postergando. Mas, se ela for votada hoje, a gente toma uma lavada horrível.

Se temos a via judicial e a via legislativa paradas, por onde avançar?
Essa é uma excelente pergunta. Eu acho que a nossa aposta é que saia do próprio executivo essa normativa. E que o nosso GT traga os argumentos para essa regulamentação pelo Executivo. Nós já fizemos rodadas de consultas públicas com diferentes setores da sociedade, com as associações de profissionais e de cultivo. Agora teremos uma rodada com o governo.

Um ponto importante na questão da informação é a pesquisa. Lá fora, em mercados que já regulamentaram os usos medicinal e recreativo, já existem boas pesquisas. Como está no Brasil?
Nós fomos o primeiro grupo que conseguiu autorização da Anvisa para fazer pesquisa com produtos de cannabis no Brasil e foi a coisa mais desgastante da minha vida. Mesmo com autorização da Anvisa, não conseguia tirar os produtos da alfândega. O que eu vivi foi muito difícil, mas, por outro lado, de alguma forma pude ajudar um monte de outros pesquisadores. Mas a gente não pode esquecer que, nos últimos anos, a Anvisa ficou um tempo sem autorizar nenhuma importação para fins de pesquisa. E uma coisa importante é que a Anvisa só autoriza você a importar produtos de até 0,3% de THC, você não pode fazer com THC alto.

A gente tem pesquisadores capacitados para fazer estudo, a gente tem, do ponto de vista de ter uma plantação, o melhor clima, a gente tem tudo que favorece, a gente tem a área para plantar, para poder extrair, para poder produzir. Mas tem uma enorme dificuldade porque isso não está devidamente regulamentado.

O agro não acordou para o potencial da maconha?
A Embrapa e o Ministério do Desenvolvimento Agrário, que tem o Paulo Teixeira como ministro, são bem favoráveis a essa discussão E, pensando no Ministério da Agricultura e Pecuária, a gente quer escutar o que esses caras estão pensando. Hoje já existe uma essa discussão grande, especialmente do pessoal do cânhamo industrial. Tem muita gente com estudos olhando a questão do solo. Não usar as vantagens naturais que Brasil tem para o plantio é uma perda de dinheiro em todo sentido, seja para a indústria, seja para o uso medicinal, seja para fomentar o próprio agronegócio.

Agora, mesmo no uso de maconha, a gente sabe que tem casos problemáticos, não podemos pensar que maconha é uma panaceia, certo?
Isso que você está trazendo é muito importante. Como pesquisador, a última coisa que você quer é diminuir a percepção de risco daquela substância. Falando de maconha e de qualquer outra droga, incluindo o álcool, é contraindicado o uso dessas substâncias para adolescentes e menores de 21 anos. Por conta de toda a formação de cérebro, eles não podem ter contato com substância psicoativa. Ponto. E os estudos que têm associado com esquizofrenia mostram que são adolescentes que iniciaram o uso pesado de maconha e com alto teor de THC. Por isso, precisamos fazer uma comunicação responsável sobre drogas. Embora a maconha seja a droga com menos potencial para trazer prejuízo e dependência, ela não é inócua.

Investir no sistema de saúde para dar conta desses casos problemáticos é muito melhor do que a repressão ao tráfico?
Isso é fato. O investimento que você tem, tanto no aparato de segurança pública para coibir o uso e coibir o tráfico dos pequenos traficantes é enorme. O custo da segurança pública mais o custo do Judiciário para julgar um caso em que uma pessoa foi pega com  5 gramas de maconha é infinitamente, grotescamente maior do que seria preciso investir em campanhas de prevenção, comunicação responsável e tratamento de casos de uso problemático. Essa foi a aposta, por exemplo, que Portugal fez lá em 2001, de reordenar o investimento voltado para a questão drogas e investir nos aparatos de tratamento e prevenção, tirando da segurança pública e do sistema de justiça. Veja, não estamos dizendo que amanhã, estando legalizado, todos os nossos problemas acabaram. Ninguém está falando isso, porque ninguém é idiota. Mas nós estamos falando de olhar a questão e fazer um investimento no que realmente vai trazer menos problemas. De reordenar, investir na saúde pública, no tratamento, na prevenção e na informação responsável. Fazer as pessoas entenderem que as drogas existem, continuarão existindo e a gente tem que saber se relacionar com elas.

Encontrou algum problema no site? Entre em contato.

Já é assinante premium? Clique aqui.

Este é um conteúdo Premium do Meio.

Escolha um dos nossos planos para ter acesso!

Premium

  • News do Meio mais cedo
  • Edição de Sábado
  • Descontos nos Cursos do Meio
  • 3 dispositivos
  • Acesso ao acervo de Cursos do Meio*
ou

De R$ 180 por R$ 150 no Plano Anual

Premium + Cursos

  • News do Meio mais cedo
  • Edição de Sábado
  • Descontos nos Cursos do Meio
  • 3 dispositivos
  • Acesso ao acervo de Cursos do Meio*
ou

De R$ 840 por R$ 700 no Plano Anual

*Acesso a todos os cursos publicados até o semestre anterior a data de aquisição do plano. Não inclui cursos em andamento.

Quer saber mais sobre os benefícios da assinatura Premium? Clique aqui.