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Edição de sábado: Anatomia da fé

Quando o Brasil ainda era Império, em 1872, o primeiro recenseamento geral perguntou aos habitantes não apenas idade, cor e profissão, mas também sobre sua religião.

Naquele primeiro censo, em um país onde o catolicismo era oficial e quase unânime, a pergunta servia para confirmar uma identidade coletiva. Desde então, com raras interrupções, essa variável atravessou quedas de regimes, ditaduras e revoluções constitucionais, preservando-se como uma das marcas mais persistentes da estatística brasileira. Ao longo de 150 anos, enquanto países como França, Estados Unidos e Argentina abandonaram ou jamais adotaram essa prática, o Brasil acumulou uma das séries históricas mais extensas e contínuas do mundo sobre a composição religiosa de sua população.

A regularidade da pergunta nos censos reflete o fato de que a religião nunca deixou de ser um dos eixos constitutivos da vida social brasileira. Se em 1872 o objetivo era, ainda que tacitamente, contar e confirmar uma sociedade majoritariamente católica, os registros que se seguiram passaram a capturar, pouco a pouco, as fissuras desse modelo único.

Um século e meio depois do primeiro censo realizado no Brasil, a pergunta sobre religião segue sendo chave para compreender nossas transformações mais profundas.

O catolicismo

Em 150 anos de perguntas sobre religião nos censos, uma constante atravessa os números: o percentual de católicos diminui. Em 1872, eles eram 99,7% da população. Cinquenta anos depois, 95%. Na década de 1960, haviam recuado a 90%; em 1980, à casa dos 80%; hoje, 56%. Desde que o Brasil passou a medir sua demografia religiosa, começou também a deixar de ser católico.

O catolicismo é a religião historicamente majoritária no Brasil, e também uma espécie de doador universal: a tradição da qual derivam, virtualmente, todas as genealogias familiares de conversão a outras identidades. Mesmo quando recusado, foi em relação a ele que o quadro de identificação religiosa se estruturou.

A novidade das últimas décadas é que a corrosão da população católica acelerou como nunca antes. Em 40 anos, os católicos perderam mais do que um terço de sua base original. Os números divulgados ontem pelo IBGE (íntegra) nos colocam duas ordens de perguntas distintas. A primeira é mais conhecida: por que tanta gente deixa de ser católica? A segunda: por que nesta década menos gente deixou de ser católica?

Há razões internas, estruturais ao próprio catolicismo, que teriam levado a sua desidratação, e há razões externas. Comecemos pelas primeiras.

Há um dado contraintuitivo que precisa ser considerado: existe uma relação inversamente proporcional entre o número de católicos no Brasil e a força institucional da Igreja Católica. Segundo dados oficiais da própria Igreja, nunca houve tantas paróquias e dioceses no país. Assim como a relação de padres por habitantes e de padres por católicos nunca foi tão alta. O problema não é a falta de padres, portanto. Os indicadores de força institucional da Igreja Católica mostram que a crise não é institucional, mas sim de identificação.

Os dados internos da Igreja são ainda mais reveladores quando mostram o declínio contínuo no número de freiras no Brasil. Ou seja, enquanto o número de padres cresceu, o de religiosas diminuiu. Este processo alterou de maneira profunda a ecologia interna da Igreja.

Durante o período de maior presença social da Igreja, as congregações femininas foram responsáveis por boa parte da educação, da saúde e da catequese popular, instituições que garantiam a inserção cotidiana do catolicismo na vida social brasileira. As freiras eram figuras centrais nessas redes de vínculos cotidianos. Seu enfraquecimento comprometeu o enraizamento social da Igreja e sinalizou a masculinização de suas estruturas. O catolicismo brasileiro tornou-se mais masculino, mais institucional e mais distante da vida diária dos fiéis.

É justamente o contrário do protagonismo feminino no campo das igrejas evangélicas. Talvez aí também esteja uma das razões de seu crescimento. Jacqueline Teixeira e Lorena Mochel são apenas duas das pesquisadoras brasileiras que identificaram isso ainda no começo da década passada.

Os dados apresentados pelo IBGE, no entanto, mostraram diminuição da intensidade da queda do percentual de católicos. Especulava-se sobre uma queda igual ou superior a 10 pontos percentuais na última década, mas o que os dados agora publicados mostram é uma queda de 8,3 pontos percentuais entre 2010 e 2022. Se olharmos a sequência histórica de 1991 a 2022, o que o Censo revela é uma desaceleração na taxa anual de queda dos católicos. Passamos de uma redução média de 1,33% ao ano na década de 1990, para 1,25% nos anos 2000 e 1,17% na última década. O catolicismo segue perdendo fiéis, mas a velocidade da erosão diminui de forma lenta e contínua.

A desaceleração pode estar associada, ainda que residualmente, a fatores como a valorização da tradição católica por grupos conservadores, o aumento da presença digital e o carisma do papa Francisco. Nenhuma das pesquisas que realizei ou acompanhei na última década, no entanto, aponta para a predominância clara de qualquer desses elementos.

Mais do que a queda dos católicos, o que está em jogo é a dissonância entre a expectativa de um declínio linear e a lição demográfica mais elementar: mudanças populacionais não seguem linhas retas.

Os evangélicos

A grande questão do Censo de 2022 é que o crescimento evangélico foi inferior ao esperado. Longe da expansão avassaladora sugerida por tantas análises recentes, os números indicaram um avanço mais contido. Entre 1991 e 2022, o percentual de evangélicos no Brasil passou de 9% para 26,9%. Mas a análise da taxa anual de crescimento revela uma curva de desaceleração constante: 6% ao ano na década de 1990, 3,7% nos anos 2000 e apenas 1,6% na última década. Em vez da esperada explosão, os dados expõem um crescimento cada vez mais lento.

Há aqui dois exercícios sociológicos necessários. O primeiro diz respeito à própria demografia do campo evangélico: por que cresceram menos? O segundo pertence à ordem da sociologia política: o que a expectativa hiperinflacionada de crescimento evangélico revela sobre aqueles que tanto a alimentaram?

Ao menos uma parte dessa expectativa foi impulsionada por um pânico moral em torno da figura do “outro evangélico”, construído como um coletivo percebido como ameaça à ordem democrática e às conquistas sociais recentes. À medida que as crises políticas e sociais da última década se aprofundavam, os evangélicos foram frequentemente identificados, de maneira apressada, como responsáveis pelo avanço do conservadorismo e pela intensificação dos dilemas da democracia liberal.

A projeção pública desse grupo foi ainda mais acentuada pela sua crescente presença no Congresso e em cargos do Executivo, fenômeno que reforçou a impressão de um avanço demográfico acelerado. A visibilidade política amplificou sua presença na imaginação coletiva muito além do que os números indicavam. Poucos imaginavam que o crescimento, embora real, pudesse ser mais moderado. O ritmo desacelerado registrado pelo Censo 2022 contraria essas previsões e relativiza o impressionismo, muitas vezes repetido, de que o país caminhava inevitavelmente rumo a um “Evangelistão”.

O Censo 2022 nos reconduz aos dados concretos e recoloca os dilemas sociológicos de um grupo que cresceu de forma exponencial nas últimas décadas, mas que agora, diante de uma base populacional muito mais ampla, vê o seu ritmo de expansão declinar.

Vários fatores ajudam a explicar essa inflexão. O primeiro é de natureza demográfica. À medida que a base populacional evangélica se expande, manter os mesmos índices percentuais de crescimento se torna estatisticamente mais difícil. Crescer de 5% para 15% é mais simples do que avançar de 25% para 35%. A dinâmica populacional impõe, assim, um freio natural ao crescimento, que não significa estagnação, mas maturação de um ciclo.

Outro fator relevante é a fragmentação interna do campo evangélico. Se no passado o avanço era puxado por grandes denominações pentecostais, hoje o crescimento está disperso entre uma miríade de igrejas pequenas e independentes. Essa é a nova configuração dos evangélicos no Brasil. Pesquisa do Datafolha, coordenada por mim, Juliano Spyer, Christina Vital e Vinicius do Valle, mostra que 71% dos fiéis paulistanos frequentam igrejas de pequeno e médio porte — espaços que recebem, respectivamente, até 50 e até 200 pessoas. Esse predomínio sugere uma dinâmica de descentralização da prática religiosa, contrastando com a imagem mais visível dos grandes templos.

Essa fragmentação tem raízes históricas e teológicas profundas no campo evangélico. Quanto mais evangélicos há, maior tende a ser o número de denominações e templos, em uma dinâmica que combina expansão numérica com dispersão institucional.

A partir do Censo de 2000, um novo movimento passou a se sobrepor à multiplicação de igrejas: a mudança no padrão de autoidentificação religiosa. Se até então uma pessoa que se declarava evangélica costumava responder ao recenseador com o nome da sua denominação — “Assembleia de Deus”, “Batista”, “Presbiteriana” —, a partir desse momento categorias mais genéricas ganharam força. Muitos passaram a se identificar simplesmente como “evangélicos” ou “cristãos”, sinalizando o surgimento de sensibilidades não denominacionais que marcariam o tom do campo evangélico no século 21.

Inicialmente notada pelos antropólogos Emerson Giumbelli e Clara Mafra, a sutileza na forma de se apresentar inaugurava o que chamamos hoje de “desigrejados”. Longe de significar abandono da religião, muitos desses evangélicos continuaram a circular entre diferentes grupos, frequentando cultos, participando de células e reuniões de oração, mas sem vínculo formal com uma igreja. Trata-se de uma transição: do modelo denominacional rígido para formas mais fluidas de pertencimento, acompanhando a crescente individualização das trajetórias religiosas e a pluralização do campo evangélico.

Essas mudanças ajudam a lançar luz sobre o novo ritmo do crescimento evangélico no país. À medida que o campo se fragmenta e as trajetórias se individualizam, o dinamismo expansivo que marcou décadas anteriores se dilui. O modelo baseado em grandes movimentos de conversão, impulsionados por igrejas robustas e hierarquizadas, dá lugar a formas de pertença mais flexíveis, menos regimentadas e institucionalmente mais frágeis.

A dispersão entre igrejas pequenas, a circulação entre diferentes grupos e o crescimento do contingente de evangélicos sem filiação denominacional sólida indicam que o impulso missionário — motor histórico da expansão evangélica — já não opera com a mesma intensidade. Em um campo religioso cada vez mais plural e segmentado, o crescimento passa a depender menos de grandes fluxos de adesão coletiva e mais de movimentos dispersos, difíceis de capturar pelas antigas categorias de expansão. A desaceleração, longe de indicar esgotamento, revela a maturação e a complexificação do fenômeno.

A multiplicação de igrejas e o crescimento dos evangélicos sem filiação denominacional sólida não alteraram apenas o perfil religioso do país; transformaram também o jogo político. Em um campo cada vez mais fragmentado, multiplicam-se não apenas templos, mas palanques. A política evangélica, que antes orbitava figuras e denominações consolidadas, precisa agora lidar com lideranças fluidas e redes dispersas. A barulhenta campanha de Pablo Marçal no primeiro turno da disputa pela prefeitura de São Paulo ilustra essa nova lógica, capaz de capturar votos fora dos tradicionais canais institucionais. A reação crítica de líderes históricos, como Silas Malafaia, diante da ascensão de figuras como Marçal não é casual; revela o desconforto de quem vê a autoridade denominacional sendo desafiada por novas formas de mobilização, mais horizontais e adaptadas à lógica das redes.

Ao focarmos na disputa entre católicos e evangélicos, corremos o risco de perder de vista uma realidade estrutural mais ampla da paisagem religiosa brasileira. O Brasil segue sendo um país majoritariamente cristão, mas a base vem encolhendo. Em apenas quatro décadas, o país perdeu cerca de 12,5 % da sua população cristã. Ou seja, embora a dinâmica entre católicos e evangélicos redesenhe o mapa religioso nacional, o cristianismo como um todo vem encolhendo.

E para entender essa transformação, o grupo-chave são os sem religião. Se fossem uma religião, já seriam quase duas vezes maiores que todas as tradições espíritas, afro-brasileiras e outras minorias religiosas somadas. Eles formam hoje a fronteira mais dinâmica e a força mais disruptiva da paisagem religiosa brasileira.

Os sem religião

Nenhum grupo religioso cresceu tanto no Brasil nas últimas décadas como o conjunto dos sem religião. Entre 1980 e 2022, sua proporção na população saltou de 1,6% para 9,3% — um crescimento de quase seis vezes.

Mais do que números, o crescimento dos sem religião revela uma transformação silenciosa e profunda: o enfraquecimento dos vínculos religiosos tradicionais e a emergência de formas mais individualizadas, fluidas e instáveis de relação com o sagrado. A categoria “sem religião” acomoda uma diversidade difícil de capturar pelas classificações convencionais. Nela estão agregados ateus, agnósticos e aqueles que não se identificam com nenhuma religião, mas que não necessariamente abandonaram crenças religiosas.

Historicamente, esse grupo tem maior presença entre os jovens urbanos. Há mais de uma década, a antropóloga Regina Novaes chama atenção para esse grupo. Os sem religião expressam duas recusas: a recusa às instituições religiosas e a recusa aos mediadores tradicionais do sagrado — sacerdotes, pastores, pais de santo. Preferem caminhos espirituais que dispensam essas instâncias de autoridade. Eles creem sem pertencer.

O perfil traçado pelo Censo de 2022 revela que a maior parte desse grupo é formada por jovens urbanos e escolarizados, com concentração mais alta na faixa etária dos 30 aos 39 anos. A maioria é branca (39%), vive na região Sudeste — que reúne cerca da metade do total — e apresenta uma taxa de 20,5% de ensino superior completo, acima da média nacional. Ainda que não espelhem plenamente a diversidade do país, são a face mais visível de uma mudança silenciosa: o desapego gradual a vínculos religiosos tradicionais.

Não abandonaram necessariamente a espiritualidade, mas buscam experiências religiosas fora das estruturas formais. Suas crenças são, em geral, menos dogmáticas e mais abertas à combinação de referências diversas: misturam elementos do cristianismo com práticas alternativas, incorporam crenças em energias, espiritualidades da natureza ou visões cosmológicas não religiosas. Trata-se de uma espiritualidade personalizada, vivida à margem das instituições, marcada pela autonomia e pela rejeição a formas de controle sobre a experiência com o sagrado.

Embora o crescimento dos sem religião no Brasil seja expressivo, ele ainda está aquém dos patamares registrados em outros países da América Latina. No Uruguai, cerca de 41% da população se declara sem religião; no Chile, 25%; e na Argentina, 18%. O Brasil, com 9,3%, aproxima-se mais da realidade mexicana, onde 8% da população não possui filiação religiosa formal. O que singulariza o caso brasileiro é que esse avanço dos sem religião ocorre paralelamente à expansão evangélica e à reconfiguração de um campo religioso mais híbrido e competitivo, diferente do padrão mais linear de secularização observado no Cone Sul.

Mas os sem religião não são os únicos a redesenhar a paisagem da fé no país. Outros grupos, historicamente marginalizados, também emergem com nova força e visibilidade. É o caso das religiões de matriz afro-brasileira, cuja expansão recente carrega implicações que ultrapassam os números.

Religiões afro

Encerro este texto com um dado que talvez seja o mais revelador desta década: nenhuma tradição religiosa no Brasil cresceu tanto quanto as de matriz afro-brasileira. Entre 2010 e 2022, sua presença na população triplicou, saltando de 0,3 % para 1,0 %. É o crescimento relativo mais acelerado registrado entre todos os grupos religiosos no país.

Mais do que um fenômeno demográfico, essa expansão traduz um processo de afirmação simbólica e de visibilização política. As religiões afro-brasileiras, historicamente marginalizadas e perseguidas, conquistam um espaço público inédito, redesenhando não apenas o mapa religioso, mas também o imaginário social e cultural brasileiro.

Havia a expectativa de que o crescimento das religiões afro-brasileiras estivesse profundamente ligado à reconfiguração identitária de uma nova geração — jovens que, assumindo a negritude como dimensão central de sua identidade, adeririam às religiões de matriz africana como filiação primária e afirmativa. No entanto, os dados do Censo 2022 não confirmaram essa hipótese. Ao contrário, mostraram que a maioria dos adeptos da umbanda e do candomblé no Brasil é branca e que a distribuição regional dessas religiões tem um centro de gravidade, o Rio Grande do Sul. Sozinho, o estado reúne mais da metade do número de adeptos registrado no segundo colocado, São Paulo.

Essa configuração desafia interpretações apressadas que associavam o crescimento dessas religiões exclusivamente a processos de afirmação racial e identitária. A ascensão da umbanda e do candomblé precisa ser lida à luz de uma geografia social e racial mais complexa, que articula fatores históricos, culturais e regionais, deslocando a narrativa de que estaríamos diante apenas de um fenômeno de enraizamento das religiões afro-brasileiras entre jovens negros urbanos.

O Censo de 2022 mostra que o Brasil religioso do século 21 é menos previsível do que supunham análises lineares. Em vez de uma narrativa de substituição simples, de católicos por evangélicos ou de religiosos por ateus, o que emerge é um cenário fragmentado, multifacetado e dinâmico. Oxalá que, na próxima década, sejamos capazes de trocar certezas apressadas por interpretações mais atentas à complexidade do Brasil religioso.


*Rodrigo Toniol é antropólogo, professor da UFRJ e colunista da ‘Folha’. É autor dos livros ‘Espiritualidade Incorporada’ (Zouk, 2022) e ‘Uma Encruzilhada Modernista’, entre outros.

O fator nuclear na guerra entre Rússia e Ucrânia

O fantástico ataque ucraniano com drones contra bases militares russas em regiões tão distantes quanto a Sibéria, executado no último domingo, foi celebrado no Ocidente como uma espécie de luta entre Davi e Golias. Assim como na mitologia judaica, a pequena e ágil Ucrânia desferiu um golpe mortal contra uma Rússia pesada, desorganizada e ébria por tanta soberba. Mas a euforia inicial começou a dar lugar aos temores daqueles que conhecem bem os corredores e as mentes que habitam o Kremlin. Para muita gente, a Ucrânia – e talvez a OTAN – cruzou uma linha perigosa que pode ter consequências imprevisíveis para esta guerra, e aproximou ainda mais o mundo de reviver os horrores de um ataque nuclear.

O ataque ucraniano não só humilhou o aparato de defesa que Vladimir Putin vendia ao mundo como intransponível. Ele foi capaz de mostrar como parte da infraestrutura nuclear russa é profundamente vulnerável. Os drones que viajaram milhares de quilômetros escondidos em contêineres especialmente fabricados para o ataque destruíram ao menos uma dúzia de aviões em diferentes bases aéreas, em ao menos cinco regiões da Rússia. Mas não foram quaisquer aviões. Kiev destruiu parte da frota russa com capacidade nuclear. Ou, na linguagem técnica de quem acompanha os pormenores militares, esse foi um ataque à tríade de dissuasão russa.

Trinca do horror

A tríade é um conceito estratégico das potências nucleares mundo afora que indica que eles são capazes de realizar ataques nucleares por terra, ar e mar. Dos nove países com capacidade de ataque nuclear, apenas três têm a tríade completa: Estados Unidos, Rússia e China. A Índia está em fase de estruturação de sua tríade, mas continua sem bombardeiros estratégicos capazes de lançar mísseis de cruzeiro que possam carregar ogivas atômicas.

Logo, para quem conhece os tratados e acordos militares em vigor, o mais impressionante do ataque com drones não foram exatamente a audácia e o sucesso da operação. O que realmente deixou muita gente de orelhas em pé foi a decisão ucraniana de ter como alvo a tríade nuclear russa. “Os ucranianos cruzaram uma espécie de linha vermelha que Moscou deixou muito claro que estava riscando no chão”, afirmou George Beebe, diretor de Estratégia Geopolítica do Quincy Institute, um think tank americano que analisa e estuda a política externa dos Estados Unidos, em uma entrevista à revista Foreign Policy. “Acredito que na Rússia pouca gente entendeu esse ataque como um ataque meramente ucraniano, muita gente no Kremlin viu como uma provocação das potências ocidentais como um todo”, concluiu.

Beebe sabe do que fala. Por quase uma década ele foi o diretor do Grupo de Análise sobre a Rússia na CIA, a agência de inteligência americana. Durante o primeiro mandato de George W. Bush, de 2001 a 2005, Beebe foi o conselheiro presidencial para a Rússia e a Eurásia. Para ele, nesse exato momento diferentes assessores linha dura no Kremlin devem estar colocando pressão sobre Vladimir Putin para que responda ao ataque ucraniano com, ao menos, armas nucleares táticas, pequenas bombas atômicas com capacidade reduzida para causar danos de larga escala. Por capacidade reduzida, leia-se uma ponte, uma base militar ou mesmo um palácio presidencial. “É difícil saber como Putin vai reagir a esse ataque, mas com certeza opções nucleares estão sendo colocadas na mesa com a justificativa de que há razão para isso”, diz o especialista.

Nova doutrina

Na teoria, de fato, há. A Rússia fez uma grande atualização de sua doutrina nuclear no ano passado. Ampliou de forma considerável as razões que a permitiram atacar ou contra-atacar com armas nucleares inimigos com e sem a bomba. E fez questão, como fazem as grandes potências atômicas, em deixar claro quais são as linhas vermelhas, as fronteiras que seus inimigos não deveriam cruzar. Uma delas é exatamente o ataque, nuclear ou não, de sua tríade nuclear, de sua capacidade de reagir a uma agressão com uma das 6 mil ogivas nucleares que mantém em seu arsenal.

Por isso, rapidamente, os Estados Unidos trataram de tentar desvencilhar-se do que aconteceu no domingo. Primeiro, por canais diplomáticos, Washington fez questão de avisar Moscou de que não participara, não financiara e não sabia dos ataques ocorridos em 1º de junho. Ao mesmo tempo, Kiev iniciou uma campanha midiática rara, divulgando detalhes do planejamento, da execução e do resultado do ataque. Na narrativa da Ucrânia, bravos, inventivos e corajosos ucranianos fizeram todo o ataque sozinhos, sem apoio externo. Em Moscou, é óbvio, ninguém comprou a história.

Ajuda externa

Desde o início da guerra, a CIA, o MI5 inglês e outras agências de inteligência europeias têm trabalhado diretamente com Kiev, fornecendo armas, dinheiro e, principalmente, informações sensíveis de inteligência. Foi assim que a Ucrânia conseguiu destruir a nau capitânia da esquadra russa no Mar Negro, o Moskva, um cruzador de quase 10 mil toneladas, o maior navio militar russo desde a Segunda Guerra Mundial. Com ajuda das forças ocidentais, os ucranianos conseguiram recuperar vastas áreas ocupadas pelas tropas russas no primeiro ano da guerra. Nesse ano, o jornal americano New York Times publicou uma intensa investigação mostrando como a CIA e outras agências americanas estavam operando em conjunto com os ucranianos.

Por isso, menos de 48 horas depois do ataque, o enviado especial da Casa Branca para a Ucrânia, o ex-general e diplomata Keith Kellogg, foi à Fox News dizer que os Estados Unidos não só não sabiam do ataque, como estavam profundamente preocupados com sua consequência. “Os riscos de um confronto nuclear cresceram muito”, disse ele. Kellogg tem sido o principal intermediário entre o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky e Donald Trump. Suas declarações públicas parecem não ter sido suficientes para aplacar a fúria de Moscou. Na quarta-feira, o presidente americano ligou para Putin para reafirmar, agora de forma pessoal e direta, que os Estados Unidos nada tinham que ver com o ataque. Putin apenas prometeu retaliar.

O uso de armas nucleares tem sido uma ameaça desde o final da Segunda Guerra, quando os Estados Unidos fizeram ataques devastadores contra Hiroshima e Nagasaki, no Japão. Mas, desde então, nenhum armamento atômico foi utilizado nos campos de batalha. Apesar das pressões internas, Putin sabe que cruzar essa fronteira terá repercussões importantes mesmo entre seus mais fiéis aliados, como a China e a Índia. Por isso, quando o Kremlin anunciou um dos maiores ataques aéreos desta guerra com drones, mísseis balísticos e de cruzeiro contra a Ucrânia na manhã desta sexta-feira, muita gente respirou aliviada. Ao que parece, não foi dessa vez que as armas nucleares voltaram à cena.

De máquinas e mundos

Laura Vinci é uma artista visual que desde muito cedo encontra sentido nas transformações, no movimento, no tempo, ou como coloca Aguinaldo Faria, na exposição Fluxos, em cartaz no Museu Brasileiro da Escultura e Ecologia (Mube), em São Paulo, “composta por esculturas de pedra, tubulações de vidro, cabos e estruturas metálicas, acopladas em motores, sistemas mecânicos baseados em leis e princípios físico-químicos diversos, a obra de Laura Vinci espraia-se em direções variadas”.

São esculturas, instalações performances que tem o tempo como elemento central, uma descoberta que a artista fez ao participar da terceira edição do Arte/Cidade, na Fábrica Matarazzo e criar a obra site-specific Ampulheta. Fez um pequeno furo em uma laje e depositou uma quantidade enorme de areia sobre essa estrutura. Aos poucos, a areia caía para o andar de baixo, marcando não só a passagem do tempo como diferentes possibilidades visuais.

Neste fim de semana, além da exposição no Mube, que contempla obras de diferentes fases de sua carreira e algumas inéditas, Laura também leva seu projeto de teatro Máquinas do Mundo ao Instituto Capobianco. Depois de visitar a exposição, sentei com Laura em um banco na parte externa do Mube para conversar sobre suas obras. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

Na exposição Fluxos, o Agnaldo Faria fez uma curadoria de trabalhos de diferentes épocas e períodos. Eles trabalham a dimensão, mas também o efêmero. Por exemplo, o vapor que está aqui já foi feito para este mesmo espaço. Como que você lida com essa questão do tempo na escultura?

A escultura, na verdade, é um desejo. Toda escultura é um desejo de segurar o tempo. Mas ela não consegue. É um exercício humano de tentar permanecer para eternidade. Essa questão da enfermidade do tempo, isso já vem lá da Arte/Cidade, de 1998, em que eu fiz a Ampulheta. Foi uma experiência muito rica. Então, desde ali, essa questão do tempo e da transformação da matéria surge com mais força. De lá para cá, eu venho lidando com a matéria, a mudando, testando outros materiais, mas essa questão está sempre muito presente. Se eu olho aqui as pedras ou lá embaixo a Máquina do Mundo, que é de Inhotim, aquele pó que está lá embaixo já foi pedra. Essa aqui é pedra e será areia. Então, mesmo na forma mais controlada, essa ideia de impermanência e de transitoriedade está contida.

Lembro de uma obra que estava no átrio do Centro Cultural Banco do Brasil que lidava com os vapores em cima e com o gelo embaixo. Que de certa forma é lidar com o mundo movimento, o que para mim é também uma discussão sobre o nosso lugar no mundo.

Exato. Não só o nosso, mas o das coisas também. Do ar, da água. Eu nunca mais consegui fazer aquele trabalho com gelo novamente. Ele é meio sofisticado, difícil de fazer. Mas quando estava pensando na parte do vapor quente, na hora pensei em fazer algo sólido, como gelo também. Mas, para dar certo, a temperatura tinha de estar a menos 7ºC, e eu não queria as pessoas congelando. Então, com os engenheiros, a gente fez umas caixas metálicas e pusemos o sistema de refrigeração dentro com glicol e a serpentina girando a menos 7°C. E então, o que congelou foi a umidade do ar.

Aqui na exposição do Mube você usa vapor mas a frio. Essa obra foi feita anteriormente para este lugar. Quando você a concebeu, levou em conta a arquitetura do museu?

Totalmente, é sempre uma negociação entre nós e o lugar e a natureza.

Como é a sua relação com a arquitetura?

Eu não tenho formação como arquiteta, mas o trabalho me deu isso de se fazer com arquitetura ou na arquitetura. E aqui é um exercício tremendo. Porque é uma senhora arquitetura, com muita personalidade, muita força. Então é uma negociação. Me preocupei muito em deixar ela visível. E a pontuar com as minhas obras. Por exemplo, [apontando para uma obra que fica no limite do prédio, quase acima do restaurante] coloquei um escultura lá por que ninguém vai ali naquele cantinho. E quando você olha para ela em relação a essa [aponta para um par de esculturas que estão à nossa frente], as obras ajudam a gente entender que eles estão no mesmo nível. O Paulo [Mendes da Rocha] concebeu esse espaço para que houvesse shows, mas isso nunca foi levado muito a sério, então eu coloquei as bailarinas aqui e fazer um espetáculo [A obra em questão não se chama bailarina, mas é feita de dois conjuntos de pêndulos em movimento, cujos pés dourados parecem vestir sapatilhas de balé].

Você falou do auditório, e uma coisa muito presente no seu trabalho é o teatro. Neste fim de semana vai haver uma apresentação de Máquinas do Mundo, que começou no Oficina. Como é a sua relação com esse teatro que não é exatamente clássico, tem elementos de teatro, mas também de performance e o peso das coisas inanimadas. Como se deu o casamento dessas ideias?

Nós não programamos ter as duas coisas acontecendo ao mesmo tempo, mas é uma alegria. Eu comecei a fazer teatro em 1998 com o Zé Celso [Martinez Correa]. Fiquei quatro anos no Oficina e foi lá que aprendi tudo. Foi uma experiência muito interessante, incrível, primeiro pelo homem que ele era, extraordinário, de uma cultura. E depois pelo espaço. É um teatro muito inusual. Então eu aprendi fazer um jeito de teatro que era muito próximo do meu procedimento como artista. E levei o meu procedimento como artista para o teatro. Depois trabalhei com outras companhias, com o Vertigem e com a Mundana Companhia. O Máquinas do Mundo, foi um momento que eu brinco que é a revolta da técnica. Luz, figurino, música, cenografia. Entender que a gente tem poder de construção de uma ideia. Não precisa ficar dependendo de uma estrutura de um diretor e de um texto. A gente tem como propor visualidades independentes. Nasceu muito daí, com as técnicas criando uma dramaturgia visual.

A Máquina do Mundo é um poema do Carlos Drummond de Andrade. Uma outra coisa que me interessa é saber como o Drummond entra no seu trabalho? Imagino que tenha uma influência do José Miguel Wisnik.

Sim, total. Na verdade, a máquina eu já conhecia e queria fazer um trabalho com ela. Eu ia num lugar que vendia imãs e tinha uma foto de uma máquina enorme. Eu dizia que um dia queria fazer um negócio com isso, e ficou na minha cabeça. Aí um dia eu assisti uma palestra do Zé da análise do poema A Máquina do Mundo e aí eu falei: achei a máquina. Porque o Drummond é dúbio. Ele está falando de qual máquina? Da máquina devoradora de terra, a monstra, mas está falando também da máquina de Camões, do imaginário humano. Então com a leitura do Zé e o poema eu cheguei na minha máquina do mundo.

Ao vivo é a mesma performance adaptada para um novo ambiente?

Ela tem uma adaptação espacial, dos elementos, sobretudo agora porque o espaço é menor. Tem algumas mudanças do ponto de vista de efeitos, de texturas assim, mas os três textos nunca mudam porque são gravados. Mas a ação a gente vai mudando. Nesse lugar tem uma escada que a gente achou feia e ontem ela entrou na peça. O espaço ajuda a determinar a performance.

E para onde vai o seu trabalho daqui para frente? Porque essa mostra ela tem um caráter quase retrospectivo. No que você está trabalhando de novo?

Tenho agora um desafio grande. Me chamaram para fazer um negócio dentro da água. Uma experiência em que o público vai entrar dentro da água. E como eu sou nadadora, é o meu esporte, tenho muita intimidade com o mundo da água, tenho uma rotina. Então agora estou nesse lugar.

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1. Guardian: Mais célebre nome da arte urbana moderna, o misterioso Banksy cria nova obra, aparentemente na França.

2. CNN: Museu na Holanda exibe um raro preservativo do século 19 decorado com ilustração erótica.

3. Estadão: Desenho de 1654 retrata a expulsão do invasores holandeses do Nordeste colonial brasileiro.

4. Folha: Artista cria em Berlim um polêmico cyber bordel.

5. CNN: Tudo sobre a briga de Donald Trump e Elon Musk (com direito às baixarias).

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