Bolsonaro e a obediência de Tarcísio
Errata: A Polícia Federal apontou a participação do ex-presidente Jair Bolsonaro no esquema de espionagem ilegal da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), mas o ex-presidente não foi relacionado na lista de indiciados porque já responde pela mesma acusação no Supremo Tribunal Federal (STF) na ação da trama golpista.
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Tic-tac, o cerco está se fechando. A Polícia Federal indiciou o ex-presidente Jair Bolsonaro no caso da Abin Paralela. Junto com ele, seu filho, Carlos, o Carluxo, e o deputado Alexandre Ramagem, companheiro de banco dos réus também no julgamento do golpe, além de outros mais de 20.
Não perde as contas aí, não. Agora, já temos quatro Bolsonaros enroscados com a Justiça: Carlos indiciado pela PF por usar a agência de inteligência para perseguir ilegalmente adversários políticos; Eduardo investigado por conspirar contra o Judiciário brasileiro direto dos Estados Unidos; Jair Renan por fraude e lavagem de dinheiro; e Jair, o pai de todos, por… bem, por interferir na Polícia Federal, por vender joias que não eram suas, por tentar um golpe de Estado.
Sobram dois. Flávio, o senador, teve a investigação sobre “rachadinhas” em seu gabinete quando deputado estadual arquivada pelo Superior Tribunal de Justiça em 2021. E Michelle Bolsonaro, ex-primeira-dama, até aqui se livrou de todas as investigações, mesmo aquela do cheque de R$ 89 mil, com a ajuda inestimável de Augusto Aras, ex-procurador-geral da República.
Livres das inconvenientes amarras da Justiça, ambos estão tentando viabilizar o legado eleitoral de Jair. Claro que o ex-presidente, pra fora, fica com esse discurso de que é o candidato em 2026 — é a forma de manter sua base mobilizada. Mas ele sabe que, além de inelegível, muito provavelmente estará preso em outubro do ano que vem.
Então, restam-lhe três movimentos. O primeiro: lutar por prisão domiciliar. Mesmo buscando anular a delação de Mauro Cid, que desobedeceu uma premissa de sua colaboração ao comentar os detalhes do acordo com terceiros por uma conta nas redes sociais, a defesa de Bolsonaro já conta com sua condenação. E há precedentes para condenados com problemas de saúde e com mais de 70 anos para cumprir uma pena privativa de liberdade em casa.
O segundo: lutar por anistia ou perdão presidencial. O terceiro: lutar para botar na Presidência alguém que lhe conceda o segundo. Pois Flávio e Michelle estão na batalha por essas duas.
O senador Flávio Bolsonaro deu uma entrevista para a Folha de S. Paulo e não hesitou em condicionar o apoio do pai em 2026. Falou com todas as letras que o candidato bolsonarista deve se comprometer não só em perdoar Bolsonaro, caso a anistia não passe, como a brigar com o Supremo Tribunal Federal quando a corte disser que o perdão é inconstitucional.
Brigar de que maneira? Pra você não achar que eu estou por fora, ou então que eu estou inventando, como diria Belchior, eu vou ler a frase exata do filho 01: “É uma hipótese muito ruim, porque a gente está falando de possibilidade e de uso da força. A gente está falando da possibilidade de interferência direta entre os Poderes. Tudo que ninguém quer”. Tudo que o bolsonarismo sempre quis, vide a frase do “basta um soldado e um cabo” do Dudu.
Pois bem. Eis que surge, então, o nome que faltava nesse quebra-cabeça. Embora Michelle Bolsonaro venha se saindo bastante bem nas pesquisas de intenção de votos, e seja, particularmente, minha aposta de candidata do bolsonarismo, ela não tem estatura política e apoio suficiente de setores da sociedade pra bancar esse confronto.
Por isso, o campo bolsonarista se saiu, não é de hoje, mas agora com mais força, com a chapa Tarcisio-Michelle para carregar o legado eleitoral do Jair pai. Funcionaria assim: Michelle traria os votos dos valores e costumes, do bolsonarismo raiz. Tarcísio de todo o resto da direita, incluindo mercados, agro, empresariado. E traria ainda o fato de que tem trânsito do STF.
A ideia dessa chapa parece estar dissolvendo resistências, inclusive a do próprio Valdemar Costa Neto, dono oficial do PL, partido da família Bolsonaro. Valdemar e Tarcísio não se bicam. Mas ambos gostam da ideia de ter uma presidência nas mãos.
E Tarcísio, que publicamente jura de pé junto que quer só se reeleger governador de São Paulo, vem se movimentando nos bastidores para seguir sendo o favorito do ex-chefe em 2026. Ao saber que Bolsonaro estava magoado com a falta de demonstrações públicas mais efusivas de apoio, Tarcísio o visitou no PL de Brasília, foi depor no julgamento do golpe a seu favor e levou Bolsonaro a tiracolo em agendas no interior de São Paulo.
Teve mais uma ação de Tarcísio nos últimos dias que está mais difícil de ler. Muitos de vocês devem ter visto que ele postou, no último domingo, uma pregação que fez na Assembleia de Deus no Brás, em São Paulo. Embora tenha postado domingo, ela é do dia 9 de junho.
Nela, Tarcísio fala de obediência. Fala de Abraão, de Moisés, da construção de uma nação com filhos numerosos, da libertação de um povo e da condicionante de se fazer tudo isso sendo obediente.
Vamos juntar esses pontos todos? Porque tem muita peça no tabuleiro aí da direita pra gente interpretar. Eu sou Flávia Tavares, editora do Meio. Aqui, a gente tenta fazer exatamente isso: analisar os fatos, encontrar pontos de conexão entre eles, oferecer uma leitura do que eles representam e de como isso afeta nossas vidas. O Meio faz isso gratuitamente todos os dias na newsletter diária, que te dá tudo que você precisa saber daquele dia em 8 minutinhos. Faz também aqui no YouTube, com nossas colunas e com o Central Meio. E faz no conteúdo exclusivo pra assinantes premium, em duas newsletters semanais e no nosso canal de streaming. É repertório em tudo que é formato. Assine, são só 15 reais por mês!
Eu falei que está difícil de ler a pregação postada por Tarcísio no domingo, né? Por que difícil? Oras, porque ela pode ter diferentes interpretações, a depender do ângulo a partir do qual você observa.
A camada mais óbvia é a de que Tarcísio, um católico, vem fazendo gestos muito concretos de se aproximar dos evangélicos. Além de frequentador da Assembleia de Deus do Brás, ele vai sempre também às Marchas para Jesus, por exemplo. E não à toa, o organizador da Marcha já declarou que a chapa Tarcísio e Michelle é sua favorita.
Agora, o que ele quer com essa aproximação? Ela é um pedágio obrigatório de qualquer político atualmente. O Censo 2022 revelou que evangélicos respondem por pelo menos 26,9% dos brasileiros — fora os que podem estar embutidos na categoria “sem religião”. O fato de que a esquerda não paga esse pedágio — e que Lula, por exemplo, decidiu não ir à Marcha para Jesus, é incompreensível pra mim, cá entre nós. Mas Tarcísio está fazendo seu dever de casa.
Agora, daí a fazer uma pregação no palco e postar para 5 milhões de seguidores só no Instagram são outros 500. Políticos nesse patamar não fazem isso sem calcular bem cada gesto, cada palavra.
E aí vem a dificuldade pra mim. Ele escolheu falar de obediência pra falar de que deus na política? Pra falar de seu mentor eleitoral, Bolsonaro, ou do Deus bíblico, que estaria acima? Porque da deusa Constituição não me parece que tenha sido. Ele promoveu seu lado pastor para atrair ainda mais Michelle Bolsonaro ou justamente para prescindir de sua bênção, nacionalizando seu nome via religião?
Isso não ficou claro pra mim.
Mas aí vem um detalhe. Tarcísio postou o vídeo na véspera da entrevista de Flávio Bolsonaro. E tem mais um “deus” político a quem o governador deve muito de suas glórias: Gilberto Kassab e seu PSD.
Dentro do partido de Kassab gente graúda viu na entrevista de Flávio um baita tiro no pé. “Ninguém gosta de ter a faca no pescoço assim”, me disse um. Ainda mais que, dias antes, o PSD usou cinco de suas sete propagandas políticas no estado de São Paulo para enaltecer Tarcísio. Gente, até o vice Felício Ramuth, que é do PSD, e o próprio Kassab, presidente da legenda, ficaram de fora dos vídeos.
Essas fontes do PSD garantem que isso é sinal claro de que hoje, junho de 2025, as fichas estão todas empenhadas em Tarcísio reeleito governador, carregando junto o partido de Kassab a ampliar ainda mais seu domínio no estado.
Só que Tarcísio atacou de bolsonarista novamente. Pegou Bolsonaro e levou pra uma feira agro em Presidente Prudente, postou vídeo nas redes ao lado do “mito” tendo aquele funk de campanha bolsonarista como trilha sonora.
É um público fácil de engolir o lado bolsonarista de Tarcísio, convenhamos. Uma feira agro no interior bem centro-oestino de São Paulo. A obediência de Tarcísio a Bolsonaro não seria posta a prova ali.
Ela vai ser posta a prova em outras frentes, em outras ações. Se Tarcísio for candidato com Michelle Bolsonaro será, obviamente, o candidato bolsonarista. Terá aceito, então, a condicionante do perdão aos golpistas, algo que, imagino, todo candidato que não Lula terá de prometer se quiser contar com os 15 ou 20% dos votos dos bolsonaristas raiz.
E, se assim for, não vai partir desse campo o questionamento sobre se ele estará disposto a enfrentar também o Supremo, talvez até com o uso de força, como disse Flávio Bolsonaro, para fazer valer o perdão. Essa pergunta vai ter que partir da centro-direita, do centro e da esquerda. O centro aqui não é o Centrão.
Porque o Centrão vai fazer o jogo duplo que for necessário até o limite das cobranças da sociedade. O PSD, até aqui, não se posicionou sobre a anistia. Bolsonaro, em clara bravata, garantiu a seu público numa manifestação em Copacabana que Kassab estava fechado com ele no projeto pra anistiar geral. Kassab, por sua vez, diz seguir “observando” o Congresso, diz que seu partido está dividido, etc. Enquanto isso, promove jantares e propagandas em que Tarcísio, com todo seu bolsonarismo, é a estrela máxima.
Kassab é experiente o suficiente para saber que os ventos políticos mudam com muita força e muito rapidamente. É possível que, em janeiro de 2027, Bolsonaro seja uma memória distante e desbotada e perdoá-lo não seja sequer uma demanda de eleitores. Mas Kassab sabe também que acordos descumpridos na política são letais. Ele fez uma carreira e um partido fiado na reputação de bom cumpridor de promessas.
Então, quando Kassab prometer, ao se juntar a Tarcísio no tíquete presidencial, seja que promessa for essa, ele vai ter de cumprir.
O PSD, segundo Kassab definiu quando o fundou, não é de direita, nem de esquerda, nem de centro. Mas é o centro que vai decidir se topa um presidente comprometido com golpismo bolsonarista. O centro que vai ter que perguntar até onde o candidato da direita e da centro-direita está disposto a ir para ter os votos bolsonaristas não é o Centrão das emendas. É você, eleitor que não se identifica automaticamente com Lula, mas tem ojeriza a Bolsonaro e seus aliados.