Edição de sábado: A solidão do homem de meia-idade

Ainda é um mistério como eu, um intelectual de esquerda, me tornei um viciado em artes marciais mistas (MMA, na sigla em inglês) nos últimos anos. O relato do escritor Sam Graham-Felsen, publicado na New York Times Magazine em 25 de maio, me ajudou a refletir sobre isso e entender melhor o que está acontecendo comigo – um homem heterossexual de 54 anos – e com o planeta, que se entrincheira principalmente no campo dos costumes e no afastamento ideológico entre homens e mulheres.
Comecei a assistir a eventos do UFC em 2018. Estava de volta ao Brasil depois de oito anos vivendo na Inglaterra, por conta do mestrado e doutorado. Minha esposa permaneceria lá por mais dois anos. Eu me afastara das redes de amizade que tinha em São Paulo e, estando casado, não queria “cair na noite”. Durante o dia, me sentia produtivo, em um emprego que me motivava e desafiava intelectualmente. As noites, porém, eram mergulhos no estômago de um mundo morto e sombrio. Todas as noites eu morria – ou me sentia morto; de manhã, renascia, e a vida retornava.
Estava clinicamente deprimido. Demorei a perceber e pedir ajuda porque nunca tinha sido depressivo. Em um aniversário recente, em que me forcei a convidar velhos amigos para um jantar, eles estranharam saber que eu estava sozinho. A imagem que deixei entre meus contemporâneos de faculdade era a de uma pessoa cheia de amigos, comunicativa, com vida social mais do que plena. O artigo de Graham-Felsen me ajudou a ver esse processo em perspectiva, e a conectar minha experiência a fenômenos como o da emergência da “manosphere” (a esfera masculina, em inglês) e também à polarização ideológica entre gêneros.
Vou chamar Graham-Felsen, o autor desse artigo, de Sam daqui em diante – não para sinalizar intimidade, mas porque seu sobrenome é longo, difícil de escrever e soa formal demais.
Sam parece ser um pouco mais jovem do que eu. A primeira parte de seu artigo registra um fenômeno conhecido, especialmente nos EUA, como “solidão masculina”. Ao se casarem, os homens se distanciam de suas redes de amizade – todos fazem isso ao mesmo tempo. Há o trabalho, as ambições, o esforço dobrado para progredir na carreira. O tempo que sobra é dedicado à esposa e aos filhos. E, enquanto as mulheres, por motivos que ainda não compreendo bem, mantêm ou renovam suas redes de solidariedade, os homens se afastam e, como um jardim abandonado, deixam de cultivar os vínculos. O jardim vira um cenário pós-apocalíptico de ervas daninhas. Mas Sam vai além desse tema.
A filosofia de vida a partir do sofrimento de David Goggins
Ele conta que, na medida em que se afastou dos amigos e começou a ter crises de baixa autoestima que impactaram seu trabalho como escritor, buscou companhia e orientação em podcasts, especialmente os que falam sobre meditação e autoajuda. Percebeu que os influenciadores eram poucos, diziam basicamente as mesmas coisas e giravam nos mesmos circuitos. E notou que muitos homens que, como ele, buscavam companhia e respostas em podcasts acabavam, inevitavelmente, chegando ao podcast Joe Rogan Experience.
Foi aí que o relato de Sam lançou nova luz sobre a minha própria experiência. Joe Rogan é alguém que passei a acompanhar ocasionalmente – nunca fui fã, mas ouvi, com mais regularidade, dois criadores de conteúdo do seu círculo mais intelectualizado: o neurologista de Stanford Andrew Huberman e Lex Fridman, um pesquisador do MIT especialista em inteligência artificial. Além de pertencerem à mesma galáxia de produtores de conteúdo, ambos são ex-progressistas, rejeitam rótulos, se apresentam como “não políticos”, mas são críticos das práticas de cancelamento nas universidades motivadas pelo identitarismo, e adeptos da filosofia de um ex-militar chamado David Goggins.
Vale falar brevemente sobre Goggins e o modelo de masculinidade que ele representa. Goggins era um jovem negro obeso, resignado a um emprego subalterno como dedetizador de baratas. Um dia, ouviu no rádio um chamado para o programa de treinamento dos Navy SEALs, grupo de elite das Forças Armadas. Não apenas conseguiu perder um terço do peso em um mês, como sobreviveu ao treinamento brutal, comparável à tortura. (Pense no programa Legendários, que tem se popularizado no Brasil.) Depois de participar de operações militares com os Navy SEALs, possivelmente em zonas de conflito como o Afeganistão e o Iraque, ele voltou aos EUA, aposentou-se e tornou-se um ironman, atleta que compete em provas de resistência extrema.
Como Sam, cheguei aos livros de Goggins após ouvi-lo no podcast de Huberman. Li seu livro e, estimulado por essa filosofia da dor e do sofrimento, entrei – por pouco tempo – em uma dieta rígida para perder peso com exercícios físicos. Colei post-its pelas paredes com frases como “Você vai desistir de novo?” e outras que tenho vergonha de compartilhar.
Diferente de mim, Sam não desistiu. Após ser “mordido” pelo vírus Goggins, começou a correr e, por três anos, manteve uma rotina intensa de exercícios – até mesmo durante uma internação hospitalar.
A análise que Sam fez dessa experiência trouxe insights originais. Um deles: o podcast de Joe Rogan se assemelha às conversas entre homens, que começam desconexas, mas evoluem para falas radicalmente honestas. Rogan se tornou o substituto massificado dessa experiência masculina que hoje é mais rara de encontrar. Sam também nota que essas conversas invariavelmente derivam para o tema da busca da felicidade – e que a resposta, quase sempre, passa por três elementos: psicodélicos, jiu-jitsu brasileiro e uma rotina exaustiva de exercícios físicos.
Lembro de uma entrevista no podcast de Huberman em que um executivo do Vale do Silício, infeliz apesar do sucesso, pediu ajuda. A receita foi direta: “Pare de fumar maconha e ande de bicicleta ergométrica até vomitar – todos os dias.” É assim que muitos homens falam sobre exercício: como sacrifício a um deus da masculinidade. Mesmo na chuva, mesmo de ressaca, o suor é diário. É uma espécie de religião.
Não sou ouvinte assíduo de Rogan, mas reconheço esse ethos no Huberman e Fridman. Ambos evitam vínculos afetivos profundos com mulheres – não acham que vale a pena dedicar tempo a relacionamentos. Fridman, por exemplo, tem uma rotina insana diária: treinos de jiu-jitsu, participação em equipes e projetos de pesquisa no MIT e gravação de um dos podcasts mais ouvidos do mundo, com convidados como Donald Trump.
(Curiosamente, ouvi Jones Manoel, influenciador de esquerda, falar sobre sua rotina de exercícios como um sacrifício ao deus da masculinidade. E vejo também Yago Martins, pastor neocalvinista, rendido à mesma idolatria aos exercícios e esportes de combate.)
Selfie no espelho ajuda a autoestima mas não resolve a solidão
O relato de Sam já teria sido valioso por associar a solidão masculina à atração pelos esportes de combate, e por sugerir que isso se relaciona com uma reação ao identitarismo. Existe, sim, uma desconfiança – essa é uma reflexão minha – de que muitos defensores dos direitos humanos, especialmente entre os progressistas, vivem vidas confortáveis e falam para plateias que os aplaudem, sem nem cogitar passar uma semana na quebrada para entender como seus discursos soam alienígenas nesses espaços. Mas Sam vai além.
Sam supera a fase Goggins. Viveu-a intensamente por três anos, mas admite que não encontrou felicidade ali. Fala da vaidade por trás das selfies de corpo definido. Mas confessa que continuava indo às lágrimas, inexplicavelmente, ao ver gestos de companheirismo masculino. Cita, por exemplo, o episódio “Breaking Point”, da série Untold, em que um tenista veterano ajuda o amigo mais jovem, em crise de pânico na véspera de um jogo decisivo. Eu me reconheço nisso. Chorei ao ver os atos de companheirismo e sacrifício do personagem de Tom Hanks em O Resgate do Soldado Ryan, ou quando Will Smith entra num prédio infestado de zumbis para salvar seu cachorro no filme Eu Sou a Lenda.
Sam encerra seu relato indicando um novo podcast chamado Man of the Year, feito por dois melhores amigos. Eles discutem a solidão masculina e propõem práticas simples para reverter o quadro. Uma delas é retomar contato com velhos amigos da seguinte forma: mandar uma mensagem por semana, fazer uma ligação por mês e encontrar-se presencialmente uma vez por trimestre. Sam registra, no final de seu artigo, a sensação de felicidade apenas por encontrar um amigo para assistir ao show de um artista que os dois gostavam enquanto estavam na universidade. Nada de especial aconteceu; nenhuma conversa transformadora; mas fez muito bem.
Recentemente, por coincidência, conheci uma pessoa que é amigo de um grande amigo meu que mora literalmente a um quarteirão de mim. Nossa amizade tem anos, moramos juntos no início das nossas carreiras, tivemos conversas profundas que hoje só acontecem – pelo menos comigo – em sessões de terapia. Esse novo conhecido contou que meu velho amigo o procurou pedindo ajuda. Fiquei enciumado.
Alguns dias depois, escrevi para esse amigo. Ele respondeu que estava viajando, resolvendo questões de trabalho. E encerrou com o clássico “vamos marcar”, que é quase sempre uma recusa polida. Interpretei aquilo como algo pessoal. Mas me lembrei do que Sam escreveu: evitamos buscar amigos para confessar vulnerabilidade por medo de sermos vistos como fracos, e também evitamos procurá-los quando ouvimos que eles estão atravessando um momento difícil, por medo de sugerir que eles próprios estejam em busca de ajuda. E assim o ciclo da solidão se perpetua.
Algumas semanas se passaram. Em pensamento, mandei esse amigo “se foder”. Quem ele pensa que é para desprezar meu esforço de aproximação? A resposta dele me fez sentir fraco e carente. Mas ontem, sem pensar muito, fiz mais uma tentativa – dessa vez, mais explícita. Escrevi: “Homens maduros estão sufocando por falta de amizades. Não esquece do nosso café.” Pouco depois, ele respondeu: “Não esqueço! Mesmo!”
Talvez ele apareça. Talvez não. Mas só de ter voltado a insistir, de ter dito com todas as letras, mesmo brevemente, o que está em jogo – e de ter recebido uma resposta que não foi silêncio –, me senti melhor. Senti que, por um breve instante, quebrei o ciclo. E isso, por enquanto, basta.
Café com rave, por favor
Você chega na cafeteria e pede um cappuccino, enquanto ouve um house dançante tocado diretamente das pickups do DJ ao lado do balcão. São dez horas da manhã, mas o ambiente lembra uma danceteria às duas ou três da madrugada. A diferença é que o Sol está radiante à sua frente e os drinks que você observa nas mãos das pessoas são cafés espressos, frappuccinos e lattes. Esse tipo de balada está deixando de ser incomum em grandes cidades brasileiras e se tornando parte do roteiro dos fins de semanas de jovens cosmopolitas.
São as coffee parties, festas em cafeterias que são tendência na Europa e na Ásia e estão ganhando espaço no Brasil. O importador Tiago Sato, de 31 anos, já foi a eventos como esse em São Paulo e Tóquio e aprova a experiência. “Quando eu vi, achei sensacional. Porque eu gosto muito de música eletrônica. Achei legal, uma coisa que nunca tinha visto, porque geralmente as festas são noturnas”, conta sobre sua primeira coffee party, em 2023, no Japão.
Esse movimento ganhou força na Europa, com vídeos de festas animadas viralizando nas redes sociais. Também é onde houve uma queda brusca na abertura de casas noturnas, principalmente depois da pandemia. Um exemplo disso é Londres, que fechou permanentemente mais de 3 mil boates, bares e pubs entre março de 2020 e dezembro de 2023, de acordo com uma pesquisa da Night Time Industries Association (NTIA). “Antes da pandemia, mais de 300 milhões de turistas noturnos iam para o Reino Unido todos os anos, com Londres comandando cerca de 25% desse tráfego”, explica o diretor executivo da NTIA, Michael Kill. Essa mudança impactou o turismo da capital inglesa, deixando os visitantes confusos, perguntando-se por que tudo fecha tão cedo.
A uma altura dessa do texto, você deve estar se perguntando: essas festas não são matinês? E a resposta é: não exatamente. Muito associada no Brasil com eventos carnavalescos durante o dia (que toca marchinhas de carnaval, no caso), as matinês são eventos culturais que acontecem normalmente no período da tarde e em diferentes ambientes. Já as coffee parties estão associadas a um fenômeno mais novo, ocorrendo mais cedo (comumente logo de manhã), e cujos locais estão diretamente ligados ao café, seja porque acontece em cafeterias ou por ser o combustível base para o evento.
O fator wellness
Um relatório da empresa de pesquisa de público GWI aponta a interação social como o principal motivo para sair de casa entre pessoas de 16 a 34 anos. Essas “raves cafeinadas” chegam caindo como uma luva – pra não dizer como uma xícara – entre essas gerações que buscam unir maneiras acessíveis e refrescantes de festejar em um ambiente sem (ou com pouco) álcool. A consultora de estratégia Tanya Thadani, de 28 anos, tem preferido a sobriedade na hora de curtir a balada. “As pessoas estão se conscientizando mais sobre o consumo excessivo de álcool, especialmente nesta geração. A gente sente que já fez de tudo e que não é saudável – ficar de ressaca não é legal, então esta é uma boa alternativa”, conta, em entrevista ao site britânico Metro.
Claro que a geração Z também consome álcool e outras drogas. Mas esta também é a que tem focado em wellness, palavra da moda entre influenciadores especializados em um estilo de vida cujo bem-estar envolve não só a parte física, mas também mental e social. Para eles, já não basta curtir a festa. É preciso chegar inteiro no outro dia. “Eu vejo muito mais pessoas interessadas em treino na casa dos 18, 20 anos do que quando eu tinha essa idade”, admite Tiago, que malha na academia, mas também faz corrida. “Hoje em dia, a galera quer uma planilha de corrida, fazer yoga, pilates, ir num rolê de manhã para não afetar o sono, porque no domingo de manhã tem uma prova de corrida”, observa.
Em busca de uma vida mais saudável e sem remorso por perder noites de sono, a Geração Z tem encontrado nessas festas uma boa forma de socializar e curtir sem abrir mão da saúde. Afinal, nessas “raves de café” é possível se divertir com os amigos sem o ônus da ressaca do dia seguinte. A depender da realidade econômica local, também é possível economizar com bebida no rolê, que pode custar muito caro em algumas cidades e ainda vir mais gelo do que drink. Não só dinheiro, o que conta também são os valores pessoais, o autocuidado, o bem-estar.
O hype do café
Essas festas matutinas têm sido usadas para atrair jovens, em especial da GenZ, para diferentes projetos, que vão desde promoções de espaços culturais a posicionamento de marcas de materiais esportivos. Um exemplo foi o Museu da Imigração em São Paulo, que realizou uma coffee party para celebrar o encerramento da 23ª Semana Nacional de Museus, em 18 de maio. O evento mesclava um cardápio exclusivo de cafés e bebidas especiais com discotecagem em vinil, tocando ritmos como lundu, choro, samba, baião, bossa nova e rock. “Uma matinê imperdível para quem aprecia café, cultura e boa música, em um ambiente que conecta história e contemporaneidade”, dizia o convite.
Buscando atrair um público que adota um estilo de vida mais saudável, com exercícios físicos, boa alimentação e música animada, a Mizuno tem apostado em coffee parties no Brasil este ano, promovendo o conceito de “corrida + música + lifestyle” com a Mizuno AM Sessions. A mais recente ocorreu na cafeteria Botanikafe, em Pinheiros, Zona Oeste de São Paulo. O evento era bem animado, mesmo que tenha começado às 10h de uma manhã de sábado.
As coffee parties também são uma oportunidade para as empresas especializadas em café. A marca 3 Corações, por exemplo, promoveu um evento com vista panorâmica de São Paulo no Dia Nacional do Café, em 24 de maio, misturando a bebida com gastronomia e a energia da música eletrônica, e recebendo os participantes com degustações de cafés e cappuccinos. Em Vitória (ES), aconteceu, em fevereiro, a primeira edição do Coffee Party Terrafé, que combinou música, drinks e experiências sensoriais com cafés especiais do instituto. Em Curitiba, a Royalty já realizou duas edições da House and Coffee, enquanto outras cafeterias têm promovido eventos semelhantes no Rio de Janeiro.
Mais café
Não é à toa que as coffee parties estão surgindo num contexto em que o foco principal é a geração Z, que tem tido uma relação diferente com o café, que por sua vez, está deixando de ser visto como coisa de adulto para ser associado ao comportamento mais jovem. Caleb Bryant, consultor de insights do cliente na Circana, escreveu no ano passado o que ele chamou de “quarta onda do café”. Enquanto as primeiras ondas estavam focadas em popularizar o produto e na qualidade disponível nas cafeterias, a quarta, liderada por essa geração, é caracterizada por bebidas geladas, inovação de baixo para cima e uma nova abordagem para o marketing desse produto.
A Technomic projeta que o consumo de café cresça mais do que outras bebidas não alcoólicas, como energéticos e refrigerantes, nos próximos cinco anos. E a geração Z deve ser a responsável por essa transformação. Afinal, a iniciação na seara cafeeira está começando cada vez mais cedo. Um estudo da Mintel descobriu que, enquanto adultos com pelo menos 35 anos relataram ter tomado sua primeira xícara entre os 18 e 20 anos, os consumidores de 18 a 24 anos disseram ter experimentado com 15, em média. Essa diferença é atribuída ao tom proibitivo que antigamente era dado ao sabor ou acesso, o que tem diminuído com a exposição mais precoce desses jovens a novas culturas.
Aliás, a GenZ gosta de versões diferentes, com cremes, especiarias, chantily e outras adições não tão tradicionais. Esses espaços especializados têm caído no gosto (com perdão do trocadilho) dos mais jovens, que se reúnem para tomar um cafezinho bonito e fazer umas selfies num ambiente instagramável. Esses ambientes estão ganhando espaço em países como Estados Unidos, mas é só você entrar em qualquer We Coffee em São Paulo para perceber esse movimento.
Entre a cruz e a caldeirinha
O historiador indiano Dipesh Chakrabarty é uma das vozes mais influentes do pensamento pós-colonial e dos estudos sobre as implicações históricas e filosóficas da crise climática. Nascido em Calcutá em 1948, possui trajetória acadêmica única. Começou estudando física para depois migrar para a administração e daí para a história. Um ponto central no seu pensamento é a crítica ao eurocentrismo nas ciências humanas e a redefinição da condição humana na era do Antropoceno, termo proposto para a nova época geológica em que vivemos, caracterizada pelo fato de que a humanidade se tornou a principal força de transformação do planeta, superando as forças naturais.
Em um primeiro momento, o que ocupou sua produção foram os estudos pós-coloniais. Chakrabarty foi um membro fundador do Grupo de Estudos Subalternos, um coletivo de historiadores sul-asiáticos liderado por Ranajit Guha. O projeto subalternista era o de reescrever a história da Índia a partir da perspectiva dos grupos subalternos – camponeses, a classe trabalhadora, mulheres e outras classes não pertencentes à elite – cujas vozes foram ignoradas tanto pela historiografia colonialista britânica quanto pela historiografia nacionalista indiana. Crítica que está em sua obra mais famosa: Provincializando a Europa: O Pensamento Pós-Colonial e a Diferença Histórica, de 2000.
Atualmente, é professor de História no Lawrence A. Kimpton Distinguished Service na Universidade de Chicago e sua preocupação migrou para a crise climática. Em 2009 escreveu o ensaio O Clima da História: Quatro Teses, no qual argumenta que os efeitos do que acontece no nível planetário, incluindo biologia e geologia, forçam uma reconfiguração radical da disciplina histórica. Em 2001, aprofundou esse pensamento no livro O Global e o Planetário, a História na Era da Crise Climática, que acaba de ser lançado em português pela Ubu Editora. Conversei com o professor justamente para compreender melhor o seu pensamento em relação à crise do clima, a ação humana e o que se pode fazer. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
Como podemos distinguir entre o global e o planetário, e por que essa distinção é considerada crucial para a compreensão dos nossos tempos?
No meu uso, o globo refere-se a um mundo conectado que a expansão europeia, a colonização e a apropriação de terras e vidas de outros povos – e as tecnologias (incluindo as digitais) desenvolvidas para tais fins – criaram nos últimos 500 anos, enquanto o planeta se refere ao sistema terrestre onde processos físicos, químicos, geológicos e biológicos convergem para criar condições que sustentam a vida – tanto humana quanto não humana. O sistema terrestre tem bilhões de anos e, sem o seu funcionamento adequado, os humanos também não podem existir. A crise do aquecimento global nos tornou conscientes de que os humanos, principalmente os privilegiados, estão tendo um impacto negativo no sistema terrestre por meio de seu número, consumo e tecnologias, pondo em perigo a existência humana. A distinção é crucial para entender a natureza da nossa atual crise ambiental planetária.
Quais são os principais argumentos sobre as limitações do pensamento histórico e humanístico tradicional em abordar os desafios do que você chama de Era Planetária ou do Antropoceno?
A principal limitação atual do pensamento histórico humanístico tradicional é que ele se baseava em uma distinção entre histórias humanas e naturais. O fato de que as instituições humanas estão agora agindo como uma força geológica destrói essa distinção.
Como o livro aborda e desafia as noções tradicionais de tempo e temporalidade?
Um dos argumentos do livro é de que agora temos de considerar as escalas de tempo humanas e geológicas em conjunto ao pensar nos futuros humanos, já que o agora humano coincidiu com o agora geológico, se a alegação de que estamos vivendo o início de uma nova época geológica – chame-a como quiser – estiver correta. Ao realizar tais experimentos mentais, percebemos o quão difícil é o exercício e o quanto ele diz sobre nossa situação contemporânea. Considere o seguinte: sustentar nossos atuais estilos de vida capitalistas-consumistas, ou a aspiração a tais estilos de vida, pode muito bem significar que teremos que viver em um mundo mais quente e com uma crise significativa de biodiversidade. Esses tipos de resultados podem então nos levar a usar tecnologias desesperadas para gerenciar o clima do planeta por meio da geoengenharia, como captura e sequestro de carbono, tornando os mares artificialmente mais alcalinos e gerenciando a radiação solar.
Esse tipo de interferência traz mais riscos, não?
Não se sabe quais outros riscos essas tecnologias criarão para os humanos. Não sabemos se podemos sequer gerenciar um planeta que, ao contrário de um navio ou uma aeronave, não projetamos. O que isso significa, argumento no livro, é que os humanos não podem mais tomar o mundo como um pano de fundo inerte contra o qual podemos encenar o drama do desenvolvimento capitalista. Nosso impacto no ambiente do planeta agora colocou em primeiro plano o que costumava ser o pano de fundo para nós. Daqui para frente, teremos que pensar cada vez mais sobre como os humanos se encaixam neste planeta e qual deve ser nosso papel se quisermos tornar a civilização humana sustentável.
Que críticas o livro oferece em relação ao capitalismo extrativista e à busca mais ampla por produtividade e modernização, particularmente em relação ao Antropoceno?
Ele não rejeita a modernização ou a produtividade, pois os desafios da pobreza e das desigualdades humanas são reais. Mas aponta para a necessidade de repensar a modernização, para trazer nossas preocupações em eliminar a pobreza e as desigualdades para um diálogo com nosso crescente conhecimento do sistema terrestre e de como ele mantém a vida. O ponto mais imediato e crítico é que não devemos empreender formas de modernização que destruam a biodiversidade, pois a biodiversidade é uma das condições-chave para a sustentação da vida. Se a biodiversidade entrar em colapso, nós vamos junto! Isso, na prática, é uma crítica ao capitalismo extrativista.
Como o livro aborda o papel da cultura, do afeto e do “registro visceral” na formação das respostas humanas (ou da falta delas) à crise planetária?
O desafio aqui é entender que a política humana é escalonada. Temos diferentes possibilidades de ação em vários níveis: o pessoal, o local, o nacional, o global e o planetário. O planeta também é igualmente escalonado. Nem sempre é a coisa enorme e grandiosa de que os geólogos falam. O planeta é pessoal, por exemplo, quando se trata do seu peso. Portanto, há coisas que podemos fazer para intervir nesta crise nesses vários níveis, começando pelo pessoal e se estendendo até as escalas planetária e global. Não teremos o mesmo sucesso em todos os níveis – e os níveis estão interconectados, afinal – mas a situação não significa que não há nada que possamos fazer.
De que maneiras o livro explora a condição humana transformada na Era Planetária, indo além de entendimentos anteriores como o de Hannah Arendt?
Arendt escrevia na inauguração da era espacial. Ela pensava que os humanos sobreviveriam mudando-se para outros planetas, embora pagassem o preço da “alienação da Terra”. Agora percebemos – seguindo o surgimento da ciência do sistema terrestre e os estudos, por exemplo, do falecido Bruno Latour – que somos terráqueos. Ir para outro planeta para habitar não é uma solução para nós. A condição humana hoje é muito mais precária do que Arendt, pensando em sua própria época, imaginava.
Quais são suas principais preocupações em relação à crise climática? É tarde demais para evitá-la?
Infelizmente, parece ser tarde demais em nível planetário. Fala-se muito agora em “realismo climático” nos círculos empresariais, que assume que até o final deste século teremos que viver com um aquecimento de três graus. Isso será um desastre para a maioria dos humanos, e provavelmente veremos um mundo mais conflituoso. Não é uma perspectiva agradável. Mas o que você pode fazer se nações poderosas e grandes consumidoras de combustíveis se recusam a mudar seus modos de vida? Isso não significa, no entanto, que não há nada a fazer. Ainda há muito que se pode fazer dentro das nações, com coalizões de nações em regiões específicas (para salvar a floresta amazônica ou as geleiras do Himalaia, por exemplo), e até mesmo em fóruns como o IPCC e a ONU. Também penso que, sempre que possível, as nações deveriam ver como poderiam se afastar, na prática, de ideias de modernização e desenvolvimento que destroem o mundo, protegendo ao mesmo tempo os valores fundamentais da dignidade humana, do bem-estar e do cuidado com o meio ambiente. São processos difíceis que exigem paciência, união e imaginação, mas os humanos possuem essas qualidades. Sinto-me esperançoso nesse aspecto.
Governado por um dos regimes mais controvertidos do mundo desde a Revolução Islâmica de 1979, o Irã está no centro das atenções por conta do conflito com Israel, e isso não passou despercebido aos assinantes do Meio. Confira as notas mais clicadas esta semana:
1. Estadão: Brasil ganha 20 leões, incluindo um Grand Prix, no primeiro dia do Cannes Lions, um dos mais importantes festivais de publicidade do mundo.
2. Meio: Ponto de Partida - Pedro Doria relata o que é viver sob o regime dos aiatolás, especialmente para mulheres e a comunidade LGBTQIA+.
3. Panelinha: Amendoim doce, uma delícia que não pode faltar nas festas juninas.
4. YouTube: Vale a Pena Perguntar, série da Fundação FHC, discute o papel dos BRICS em um mundo globalizado.
5. Meio: De Tédio a Gente Não Morre - Mariliz Pereira Jorge indaga: Você apoiaria o Irã se fosse mulher?