Edição de Sábado: A tibieza de Hugo Motta

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“Quem manda aqui é o presidente, respeitando o regimento. Eu não aceito desrespeito. Eu não aceito desrespeito. Eu não aceito desrespeito”, berrou triplamente o deputado Hugo Motta (à época no então PMDB, hoje no Republicanos). “Vossa excelência me respeite. Cabelo branco não é sinônimo de respeito!” Chamado de “moleque” pelo parlamentar Edmilson Rodrigues (PSOL), Motta retrucou, já com a voz falhando, no mais alto tom que sua garganta suportava. “Eu quero dizer a vossas excelências que não serei nenhum fantoche para me submeter à pressão de quem quer que seja. Um deputado aqui se levantou e me desrespeitou. Não tenho medo de grito e, da terra de que venho, homem não me grita.” Vem de João Pessoa, cria de uma família tradicional na política de Patos e do sertão da Paraíba.
No auge dos 25 anos, já em seu segundo mandato, e com as madeixas cuidadosamente penteadas com gel, sentava-se à cadeira de presidente da terceira CPI da Petrobras – as anteriores haviam ocorrido em 2009 e 2014 – instalada em plena efervescência da Operação Lava Jato, que investigava corrupção e contratos superfaturados na estatal. O bate-boca da sessão de 5 de março de 2015 foi motivado por uma decisão pouco republicana de Motta: sem ouvir o plenário ou o relator Luiz Sérgio (PT), decidiu criar quatro sub-relatorias e indicar de ofício os sub-relatores, diluindo a influência do petista número dois na comissão.
Os brados de que não seria um fantoche se chocaram com a realidade dos meses seguintes. Motta não precisou sequer ceder a pressões: já fora colocado para exercer exatamente a função que proclamava repudiar. Nenhum parlamentar citado nas investigações foi chamado a depor. O então presidente da Câmara, Eduardo Cunha (à época no PMDB), padrinho político de Motta e responsável por sua indicação ao cargo principal da CPI, compareceu por iniciativa própria. Foi adulado pelos colegas, disparou ataques contra o então procurador-geral Rodrigo Janot e negou a existência de contas na Suíça com dinheiro da Petrobras — tudo passou sem contestação. A comissão não avançou sobre os grandes nomes, não estendeu a investigação da Polícia Federal e do Ministério Público Federal, não jogou qualquer luz às acusações. Ao término dos trabalhos, apenas o ex-tesoureiro do PT, João Vaccari Neto, àquela altura já condenado, teve seu indiciamento solicitado. A promessa de firmeza se desfez.
De volta para o futuro
O episódio prenunciava o que viria quase uma década depois. Agora, ocupando a cadeira que já fora de Cunha, a de presidente da casa do povo, Motta continua a implorar por autoridade. Não à toa, repetidas vezes, ao longo desta última semana, foi definido por seus pares como “sem identidade”, “fraco” ou, entre os mais desbocados, “bundão”. Motta desfilou nos últimos dias um rosário de promessas, fez acordos que foram quebrados e promoveu manobras que burlam o regimento. Nesta última, inspirou-se no próprio padrinho. Na noite de terça-feira, pautou a PEC 3/21, conhecida entre parlamentares como PEC das Prerrogativas — e pela sociedade como PEC da Blindagem, da Impunidade, da Bandidagem, etc. O texto prevê que investigações e processos criminais contra deputados e senadores só podem ser abertos com aprovação do Congresso. Com 344 votos favoráveis e 133 contrários, o Centrão comemorou e se retirou. Mas, já com a Casa esvaziada, os parlamentares que permaneceram aprovaram o dispositivo que derrubava a exigência do voto secreto para essas votações.
Motta não podia deixar isso passar – prometera outro cenário. Na quinta-feira, copiando seu padrinho, autorizou uma emenda aglutinativa para recolocar o tema do voto secreto em votação. Com o Centrão novamente mobilizado, o voto secreto foi restabelecido: 314 votos favoráveis e 168 contrários. A tal emenda aglutinativa foi apresentada pelo relator Claudio Cajado (PP) e encabeçada pelo próprio Motta, segundo interlocutores. “Ele foi o grande artífice dessa manobra regimental, teve uma postura ativa nas negociações para anular a votação na qual o Centrão perdeu. Motta assumiu esse compromisso com alguns”, revelou um deputado, que prefere não se identificar.
Esse e mais uns tantos. O voto secreto era apenas um detalhe de um acordo mais amplo — costurado no início de agosto, quando parlamentares tomaram de assalto as mesas diretoras da Câmara e do Senado em protesto contra a prisão domiciliar do ex-presidente Jair Bolsonaro. De boca tampada por adesivos e mãos atadas por correntes, ocuparam o Senado por dois dias; na Câmara, foram quase três.
O ponto alto da crise ocorreu em 6 de agosto, quando Motta tentou abrir a sessão. Sua cadeira estava ocupada por Marcel Van Hattem (Novo), e, logo atrás, Luciano Zucco, Nikolas Ferreira e dezenas de deputados formavam um paredão humano para barrar o presidente da Casa. A cena virou anedota no plenário: conta-se que Zé Trovão (PL), com seus dois metros de altura, teria estendido o pé para fazê-lo tropeçar. A rebelião só terminou quando Motta apelou ao ex-presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL), que entrou em campo para negociar. Sua pequenez política ficava evidente. A oposição assentiu em liberar o plenário em troca da inclusão na pauta da PEC da Blindagem e de uma proposta de anistia aos golpistas. E assim se fez.
“Ele teve seu poder totalmente contestado e afrontado quando ocuparam a mesa, sentaram na cadeira dele e… precisou vir o Lira para intermediar. Agora, passou a atender à chantagem. Bem ou mal, cumpriu a promessa — a pauta da chantagem. Isso revela uma fraqueza enorme”, avaliou outro deputado. Motta chegou a ameaçar punições. A Corregedoria da Câmara recebeu queixas contra 14 parlamentares do PL, PP e Novo que participaram do motim, com prazo de 48 horas para decidir sobre os pedidos de suspensão e cassação. O prazo foi depois estendido para 45 dias. “E tudo indica que não vai dar em nada”, aposta o congressista.
Um nome fácil de controlar
Se um dia Motta foi catapultado por Eduardo Cunha, agora é Lira quem se impõe como seu verdadeiro patrono. Foi ele quem articulou a eleição do pupilo, que recebeu o endosso formal de quase a totalidade dos partidos da Casa e conquistou 444 votos – a segunda maior votação da história da presidência da Câmara dos Deputados, superando Ibsen Pinheiro (PMDB) e João Paulo Cunha (PT), que haviam obtido 434 votos em 1991 e 2003, respectivamente.
PSOL e Novo foram os únicos que não declararam apoio, lançando candidatos próprios: Marcel Van Hattem, que se sentou na sua cadeira de Motta, recebeu 31 votos; o Pastor Henrique Vieira (PSOL), 22. O quórum do jovem presidente superou até mesmo o de Lira em 2021, quando tentava sua primeira eleição. Na ocasião, Lira venceu Baleia Rossi (MDB) por 302 votos a 145. Sua projeção o levou a conquistar a reeleição com o recorde histórico de 464 votos.
Bem, Motta não ficou tão atrás. O resultado mostrava o êxito da engenharia de Lira, que filtrou candidatos até encontrar o escolhido, aquele que equilibrasse bem os pratinhos: de um lado, que soubesse conciliar as forças adversárias; de outro, que pudesse ser direcionado, para usarmos um eufemismo. A busca começou com um minucioso levantamento de nomes e seguiu entre conversas a portas fechadas. O único critério: ser alguém que evitasse que qualquer outra corrente ameaçasse o controle do Centrão.
Elmar Nascimento (União Brasil), Antonio Brito (PSD) e Marcos Pereira (Republicanos) estavam entre os principais nomes da disputa. Destes, o presidente do Republicanos foi o primeiro a retirar a candidatura para apoiar Motta, seu correligionário. Brito foi o segundo a desistir, quando Motta já havia conquistado apoio majoritário e o presidente do PSD, Gilberto Kassab, afirmou que era necessário “olhar para frente”. Elmar era o verdadeiro preferido de Lira, mas enfrentava enorme resistência do Planalto. Por isso, o consenso deu-se em torno do jovem parlamentar da Paraíba.
Apesar de não ser o plano A, Hugo Motta caía como uma luva para os planos dos caciques do Centrão. Era a garantia de que o comando do bloco permaneceria nas mãos de Lira. Acontece que já corre pelos corredores do Congresso a chateação de Lira com a inabilidade do sucessor.
O “disse-me-disse”
Logo após a manobra regimental, enquanto a base governista ainda digeria a aprovação da PEC da Blindagem, Motta pautou, na quarta-feira mesmo, a medida provisória que amplia a gratuidade da energia elétrica para famílias inscritas no Cadastro Único — uma pauta sensível ao governo Lula. Medidas provisórias têm prazo limitado: precisam ser apreciadas pelo Congresso em até 120 dias, sob risco de caducarem. Esta, publicada em maio, chegava perto do limite.
Apesar da orientação do PT para a bancada votar “não”, doze deputados da legenda decidiram apoiar a PEC. Segundo eles, Motta teria negociado, em troca, justamente a aprovação de pautas prioritárias do governo, como a própria tarifa social de energia elétrica e a isenção do Imposto de Renda para quem recebe até R$ 5 mil. A bancada petista nega. “Lula está mais bravo do que eu. Deixa eles se verem com o Lula”, resumiu o deputado Rogério Correia (PT).
Os governistas não tiveram nem tempo de respirar depois do pequeno sucesso de ver sua MP não caducar. Uma reunião de líderes, no fim da tarde, separou essa vitória de uma derrota acachapante. Ainda na sala com as lideranças, Motta avisou a imprensa por meio de um tuíte. “O Brasil precisa de pacificação e de um futuro construído em bases de diálogo e respeito. O país precisa andar. Temos na Casa visões distintas e interesses divergentes sobre os acontecimentos de 8 de janeiro de 2023. Cabe ao Plenário, soberano, decidir. Portanto, vamos hoje pautar a urgência de um projeto de lei do deputado Marcelo Crivella para discutir o tema”, escreveu. Já era tarde, passava das 20h. “Agora começou. É só o começo”, gritou o líder do PL, Sóstenes Cavalcante, ao passar a barreira de segurança entre o Salão Verde e o plenário Ulysses Guimarães, que se enchia.
No fim das contas, Motta havia prometido para a direita que pautaria a urgência da anistia caso votassem a PEC das Prerrogativas. Para a esquerda, prometeu colocar na mesa pautas do governo caso votassem a PEC das Prerrogativas. Tudo em nome do interesse-mór do Centrão, a PEC das Prerrogativas. Com pouco traquejo para tocar o acordo, acabou deixando parlamentares de todos os lados se sentindo traídos.
Anistia para quem?
Numa cena com os mesmos protagonistas daquele 6 de agosto, a oposição tomou a tribuna. Agora, as bocas estavam destampadas e os sorrisos, largos. Deputados disputavam o microfone, ansiosos para ver seus rostos estampados nas fotos da vitória. Sóstenes abraçou Motta, que sorria de orelha a orelha. Pela primeira vez em muito tempo, parecia se sentir respeitado por um pedaço do Parlamento. Sem ter que implorar aos berros. A urgência da proposta de anistia passou com folga: 311 votos favoráveis, 163 contrários e 7 abstenções. O projeto que prevê perdoar judicialmente os envolvidos nos atos de 8 de janeiro poderia, assim, escapar do trâmite das comissões e ir direto ao plenário.
Segundo o deputado Sanderson (PL), que acompanhou o ex-presidente Bolsonaro (PL) na quinta-feira diretamente de sua prisão domiciliar, ele assistiu à votação pela TV aberta e se surpreendeu com o quórum. Apesar de abatido — segundo o deputado, o presidente já perdeu 15 quilos, retirou parte da pele do braço direito por conta de um câncer e vomitado duas vezes durante o encontro de duas horas com Sanderson —, Bolsonaro teria se animado ao se deparar com o placar.
Pois, desta vez, foi a oposição que mal teve tempo de respirar. No dia seguinte, Motta indicou para a relatoria do projeto de anistia o deputado Paulinho da Força (Solidariedade), que considerou “impossível” uma anistia “ampla, geral e irrestrita”, como defendem os aliados do ex-presidente. “Durante a votação da urgência, Motta não estava sorrindo. Estava era rindo dos bolsonaristas”, resumiu um integrante do Centrão.
De acordo com alguns deputados, no fim das contas, o presidente da Casa estaria pura e simplesmente cumprindo ordens do Republicanos, buscando reduzir a pena de Bolsonaro para “acalmar a plateia”, sem conceder perdão, com a intenção de pavimentar a estrada a Tarcísio de Freitas na corrida à Presidência no próximo ano.
A visão mais generosa vem de Lafayette de Andrada, colega de partido e relator da PEC da Blindagem. Motta estaria “desatando muitos nós” porque é “uma pessoa de diálogo”. Para ele, votações explosivas como as da anistia e da blindagem apenas “mostram a cara da Câmara”. É.
Para Zé Trovão, um dos amotinados mais ferrenhos, ainda há esperança de que a relatoria seja “moderada” (leia-se: incluirá Jair Bolsonaro), mas o deputado critica o amadorismo do presidente da Câmara: “O Hugo poderia ser um pouco mais inteligente. Precisava ser mais sagaz. Às vezes, as pressões sobre ele atrapalham isso”.
Na posição diametralmente oposta, Taliria Petrone, líder do PSOL, acredita que pautar a urgência da anistia revela uma escolha antidemocrática, em nítido contraste com o discurso de posse em que Motta citou Ulysses Guimarães e seu compromisso com a democracia. Na ocasião, erguendo o exemplar da Constituição Cidadã, o paraibano repetiu o gesto e a frase de Ulysses: “Tenho ódio e nojo à ditadura”.
Depois de cerca de 200 dias na cadeira, sentou-se para negociar o perdão àqueles que tentaram rasgar a democracia e que, pela primeira vez, foram punidos por isso. Esquece, no entanto, que a autoridade que tanto busca não se compra com discursos, nem com gritos. E que a História, esta, não se curva. Nem perdoa.
La donna è nobile
No próximo dia 30 deste mês, a soprano gaúcha Gabriella Di Laccio vai receber da realeza britânica o título de MBE (Member of the Most Excellent Order of the British Empire, ou Membro da Ordem Mais Excelente do Império Britânico, em bom português). A honraria, criada em 1917, é uma das três principais concedidas pela monarquia britânica. A soprano a recebe por conta da sua trajetória musical, mas sobretudo pela sua atuação à frente da Donne Foundation, que criou simbolicamente em 8 de março de 2018 para dar visibilidade às mulheres compositoras.
Este reconhecimento é o ápice de um trabalho que já vinha crescendo globalmente. Em 2018, a BBC a nomeou uma das 100 mulheres mais inspiradoras e influentes do mundo. Gabriella chegou a Londres em 2001 para estudar no Royal College of Music, e por lá ficou, construindo sua carreira como uma cantora especializada nos repertórios barroco e clássico. Seu primeiro álbum solo, Bravura (2016), apresentava árias de virtuosismo do período Barroco. A ele se seguiram Ombre Amene (2017), com obras para voz e violão, e Affetti Barocchi (2018), explorando lamentos e árias italianas do século 17.
Uma mudança significativa ocorreu com Donne Barocche (2019), um álbum dedicado exclusivamente a compositoras barrocas, marcando a fusão explícita de sua arte com seu crescente ativismo. Seu lançamento mais recente, Letters to My Mother (2023), indica um movimento em direção a projetos mais pessoais e colaborativos, ao gravar as canções da compositora contemporânea Catarina Domenici.
A jornada rumo às mulheres se iniciou quando Gabriella encontrou uma versão da International Encyclopedia of Women Composers, livro publicado em 1984 por Aaron I. Cohen, que listava 6 mil compositoras mulheres atuando apenas no campo da música erudita. Foi o disparador para dar início à pesquisa que culminou na criação da Donne Foundation, que publica pesquisas rigorosas — uma delas mostra que apenas 7,5% do repertório executado por 111 orquestras em 2023-24 foi composto por mulheres, um número que expõe a desigualdade de forma irrefutável.
Mas o ativismo também serviu de alimento criativo. Em fevereiro de 2024, lançou a campanha Let HER Music Play, uma tentativa de quebrar o recorde mundial de concerto mais longo de música acústica já transmitido, com a regra de só tocar peças de compositoras ou de compositores não-binários. Durante 26 horas, 18 minutos e 57 segundos, 96 músicos apresentaram obras de mais de 140 compositores para um público online superior a 10 mil pessoas em 50 países.
A soprano veio ao Brasil para participar da segunda edição do evento Abram Alas: Ampliando Vozes, Transformando a Indústria, com curadoria da jornalista Camila Fresca, que acontece no Theatro Municipal de São Paulo até este sábado. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
As exigências do seu ativismo com a Fundação Donne entraram em conflito com sua identidade artística?
Para mim foi mesmo um despertar. É engraçado como, mesmo sendo mulher — e claro que eu sou feminista —, me questiono sobre o que é ser feminista na vida artística como cantora. Eu criei a Fundação Donne em 2018, era um projeto pessoal, e foi um momento em que realmente eu me dei conta da minha própria ignorância como mulher, artista, cantora, de não ter até então cantado obras de mulheres e não ter nem questionado. Foi uma grande vergonha, na verdade, que tenha acontecido meio tarde. E depois dessa vergonha veio a vontade de aprender mais, e a descoberta dessa riqueza. Nem pensei que seria algo assim tão grande como é hoje. Nem na importância não só na minha carreira, na minha vida pessoal, mas para a indústria também.
Como a International Encyclopedia of Women Composers ressoou em você?
A primeira coisa foi o susto. Nossa, eu perdi uma aula muito importante, né? Como é que eu chego a descobrir 6 mil mulheres compositoras, só na música clássica? É uma enciclopédia que termina em 1984, mas nem cobre jazz, não cobre música popular, é realmente dentro da música clássica. Mesmo tendo tanta paixão e respeito pela música e sabendo que mulheres existiram, eu meio que simplesmente aceitei que os gêneros musicais eram coisas dos homens e que as mulheres tiveram menos oportunidades. Então, foram as sete fases da minha ignorância (risos). Começou pela vergonha, depois eu fiquei super feliz e muito inspirada e querendo contar aquelas histórias para todo mundo. Minha mãe tinha que ter sabido dessas histórias, a escola onde eu estudei tinha de ter contado. Depois passou para um momento de raiva, sabe? Porque eu me dei conta de que eu não era a única ignorante na indústria, muita gente ainda era — e não por não querer saber, mas porque falta a exposição dessa música, falta o interesse das pessoas. Foram muitas emoções.
Estamos falando de 500 anos de história da música. Como é ir atrás desse material para poder executar?
Estamos falando além do Barroco. Uma das primeiras compositoras era pré-medieval, a Hildegard von Bingen era de 1100. Olha, aí vem a segunda parte do problema. Existe ainda muita música que não está publicada, que está em manuscritos em bibliotecas, que não tem partitura. Como sou especialista em música barroca, estou mais acostumada a ler manuscritos, porque faz parte da nossa vida, mas o músico que só toca, sei lá, a música romântica, está acostumado a ter a partitura editada. Complica, né? Pela falta de conhecimento de que a música dessas mulheres existiu, e é de altíssima qualidade, ela não é publicada profissionalmente, não é gravada, não é repetida nas rádios e aí a gente fica nesse ciclo. Não vou negar que é difícil encontrar a as partituras, mas hoje em dia é muito mais possível. Existem já centenas, milhares de obras da música mais histórica que estão publicadas e editadas.
Mas ainda há muito a resgatar, não? E como dar visibilidade a ela?
Para mim é uma decisão. Seja como público, performer, como alguém que está fazendo uma programação artística, você pode decidir ter uma programação mais diversa, que reflita a igualdade de gênero.
Que mudanças você vê como necessárias no ensino da música para abranger esse campo de forma mais ampliada?
Todos nós ainda precisamos de uma certa educação musical. A gente tem muita falta de conhecimento de repertório. Não vou dizer que todo mundo que está numa posição de poder simplesmente não está fazendo porque não quer. Fazer esse trabalho às vezes requer mais tempo. Você precisa ir atrás de repertório, escutar a música, saber se vai dar certo na sua série, se vai dar certo com essa orquestra, com esse público. Mas só dentro da Fundação Donne, por exemplo, eu estou em contato com musicólogos do mundo inteiro. Se qualquer diretor artístico chegar para mim, de qualquer lugar do mundo, e disser: “Gabriella, eu preciso de uma composição que fale sobre o meio-ambiente e uma compositora alemã desse período”, tu consegue, sabe? Parte da minha visita agora é para que o Brasil entenda que eu tenho essa fundação e ela tem de ser usada, no bom sentido, para que facilite o trabalho das pessoas. A nossa música de concerto precisa se reciclar, abrir as portas do palco para que o público novo venha também. Tem um público aí fora que nem se sente convidado, porque a gente está sempre tocando homens brancos europeus que já morreram. Gente, século 21, né?
Construções-fantasma pelo mundo
A inventividade humana pode produzir obras inimagináveis com projetos arquitetônicos arrojados e genialmente funcionais, aliando design, inovação e sofisticação. Mas quando tais projetos dão errado, ou por algum motivo precisam ser descontinuados, esses empreendimentos perdem seu elemento principal, as pessoas, tornando-se cidades-fantasma. Ao redor do mundo, temos vários desses exemplos, que provocam curiosidade e tensão em quem visita esses pontos quase inabitados.
Na Malásia, o equivalente a R$ 500 bilhões investidos não foi suficiente para evitar que uma praia ficasse deserta e os centros comerciais se fechassem em um local que foi concebido para ser “um paraíso para toda a humanidade”. Construída em 2016, a Forest City foi projetada para abrigar mais de um milhão de pessoas, com um apartamento médio custando US$ 1,14 milhão, bem acima dos US$ 141 mil cobrados por um imóvel na grande cidade mais próxima, Johor Bahru. Apenas 15% do projeto foi concluído, com poucas centenas de pessoas vivendo nos blocos residenciais atualmente. O fracasso do projeto se deve à pandemia, à crise imobiliária chinesa e restrições de vistos para compradores da China, mesmo país da construtora responsável, além de sua localização em área remota, que afastou potenciais interessados. Andar pela Forest City é como passear por um cenário deserto esperando a invasão de zumbis a qualquer momento.
Em Bangkok, na Tailândia, um edifício de 49 andares viralizou nas redes sociais após sobreviver a um terremoto de magnitude 7,7, que atingiu o Sudeste Asiático há pouco tempo. Mesmo com o abalo sísmico ocorrendo em Mianmar, a cerca de 1 mil quilômetros de distância, a Sathorn Unique Tower, abandonada por quase 30 anos, resistiu ao tremor. O complexo residencial e comercial de luxo começou a ser construído no início dos anos 1990, mas o projeto precisou ser suspenso em 1997, na metade das obras, entre outros motivos por conta de uma crise financeira que atingiu o país. Por sua aparência esquelética, a edificação ganhou o apelido de “torre fantasma”, atraindo turistas aventureiros.
Longe dali, na Inglaterra, um grupo de 150 pessoas vivia em Imber, na Planície de Salisbury, quando, em 1943, o governo solicitou que todos se mudassem para que fosse construída uma área de treinamento militar na região. A Segunda Guerra Mundial estava no auge, mas havia a promessa de que, findo o conflito, os moradores poderiam voltar para suas casas. Isso, porém, nunca aconteceu. Até hoje, a vila é ocupada pelo Ministério da Defesa, que usa as construções para treinamento de combate urbano. A Igreja de St. Giles é o único edifício intacto.
Uma Disney diferente
Um conjunto de torres azul-acinzentadas em formato de cone se estende ao longo da paisagem com suas sacadas brancas em uma cidade-fantasma no interior da Turquia. Projetado em 2014, Burj Al Babas é um complexo de 732 castelos espalhados em uma região perto de Mudurnu, no Noroeste turco, que recebeu um investimento de US$ 200 milhões. Seu nome é uma mistura de árabe e turco, brincando com o nome de fontes termais locais. O público-alvo do empreendimento de luxo era formado por compradores do Kuwait, Arábia Saudita e Bahrein, mas, por conta da recessão econômica no país, as obras tiveram de ser interrompidas em 2018, deixando uma dívida de US$ 27 milhões.
Ao olhar de longe as centenas de castelos no estilo medieval, facilmente dá para associá-los aos castelos da Disney, não fosse pela falta de pessoas ao redor das construções. O projeto era tocado pelos irmãos Yerdelen e Bulent Yilmaz, empreendedores do setor de construção de Istambul. A arquitetura foi inspirada em sua cidade-natal, imitando as torres de Galata e da Donzela. As casas foram negociadas por valores entre US$ 370 mil e US$ 500 mil cada, e cerca de 350 unidades foram vendidas. Mas reclamações de compradores quanto ao desvio da arquitetura tradicional e o temor de que o desenvolvimento pudesse prejudicar as florestas, além da queda nos preços do petróleo, contribuíram para a derrocada do projeto, que segue abandonado.
Fantasmas chineses
Em um país que não para de crescer, com tantas construções de grande porte, é normal que alguns empreendimentos possam ser cancelados na China. Mas alguns deles acabaram produzindo ambientes fantasmagóricos, como as State Guest Mansions (Mansões Estaduais de Hóspedes, em tradução livre), que poderiam facilmente ser locações para filmagens de alguns episódios da série The Walking Dead. Concebido para abrigar uma parcela da elite do país, o conjunto de casas palacianas com fortes traços da arquitetura neoclássica foi inaugurado em 2010, ao redor das colinas de Shenyang, a cerca de 640 quilômetros de Beijing. Dois anos depois, o empreendimento não avançou e ficou quase desértico, não fossem os rebanhos que vagueiam pelo local, acompanhados por poucos agricultores.
No Norte da China, em Tianjin, um arranha-céu de 117 andares, iniciado em 2008, ficou inacabado por anos devido à crise imobiliária e à falência de seu desenvolvedor. Projetado para ser o prédio mais alto do país, com 599 metros, atualmente o Goldin Finance 117 é mais conhecido por ser considerado o edifício desocupado mais alto do mundo. Sua estrutura imponente foi construída com megacolunas para se proteger de ventos fortes e terremotos. Um átrio em forma de diamante, com uma piscina e um mirante, coroaria o edifício. Na última década, exploradores urbanos têm visitado a torre desocupada para fazer escaladas que desafiam a morte em vídeos virais. Mas o edifício deve ganhar uma nova chance em breve, com planos de retomada das obras até 2027.
No Brasil
À beira do Rio Tapajós, em plena floresta amazônica, uma cidade foi escolhida por Henry Ford, no século 20, para receber uma de suas fábricas de carros fora dos Estados Unidos. Nascia a Fordlândia, concebida para produzir a borracha que seria usada para pneus e peças dos carros da companhia. Nessa época, as seringueiras paraenses produziam o melhor látex do mundo; e as árvores amazônicas, até 95% da borracha mundial. Com o mercado inglês e asiático ganhando protagonismo no comércio deste material, enquanto a produção no Pará entrava em declínio, a Fordlândia foi abandonada pelo neto de Ford, nos anos 1940, tornando a cidade fantasma. Casas, escolas e até um hospital ficaram à mercê do tempo.
Em Cococi, no Ceará, a cerca de 500 quilômetros de Fortaleza, o município tinha 90% de seu território dentro da fazenda da família Feitosa. Em seu auge, teve mais de 3.800 habitantes, com prefeito e vereadores. Antes distrito de outros municípios, tornou-se emancipada em 1957, mas voltou a fazer parte de Parambu em 1970. Os três prefeitos de sua curta história eram membros do clã Feitosa. Com a extinção da cidade, seus moradores foram embora aos poucos, deixando o local esvaziado. A cidade-fantasma só ganha vida uma vez por ano, quando ocorre a festa de Nossa Senhora de Conceição, padroeira de Parambu, que é celebrada na igreja histórica de Cococi.
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Política, astronomia, gastronomia... Os assinantes do Meio estão sempre atentos a todos os assuntos. Confira as notas mais clicadas da semana:
1. Poder360: Como votou cada deputado na aprovação da PEC da Blindagem.
2. g1: O mapa completo de votação na sessão da Câmara que aprovou a urgência para o projeto de anistia.
3. Guardian: O finalistas e vencedores do prêmio Fotógrafo de Astronomia 2025.
4. Fundação FHC: Download gratuito do livro O Brasil Diante das Turbulências Internacionais.
5. Panelinha: Okonomiyaki, a panqueca com repolho que vai trazer o Japão para sua mesa.