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Edição de sábado: A ilusão do contragolpe preventivo

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No último dia 3, o ministro Gilmar Mendes provocou revolta ao decidir que apenas a Procuradoria-Geral da República (PGR) pode pedir o impeachment de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). A decisão, tida como uma manobra autoritária de blindagem, acabou por não se sustentar diante da forte repercussão negativa. Uma semana depois, o magistrado voltou atrás, anulando os trechos que versavam sobre o tema.

Muitos progressistas, no entanto, já tinham se apressado em defendê-lo, argumentando que esses pedidos de impedimento constituem um mecanismo de intimidação usado pela direita antidemocrática para atingir Alexandre de Moraes e demais membros da Corte empenhados na defesa da democracia. De fato, como destacou o sociólogo Celso Rocha de Barros no Foro de Teresina, ainda que legal, esse parece ser mais um daqueles dispositivos de jogo duro institucional aos quais se referem Steven Levitsky e Daniel Ziblatt no aclamado Como as Democracias Morrem.

Mas houve quem foi além e recorreu à história para explicar a ação do STF.

Em publicação nas redes sociais, o deputado federal e líder do PT na Câmara Lindbergh Farias (RJ) comparou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) assinada por Gilmar ao famoso “contragolpe preventivo” do general Henrique Teixeira Lott, em 1955. Farias diz que “Lott reagiu a uma manobra golpista da UDN e de setores militares que, após a eleição de JK, tentaram impedir sua posse”. Para ele, o presidente interino Carlos Luz, que assumiu o poder diante do afastamento de Café Filho por motivos de saúde, “demonstrou conluio com os golpistas ao tentar trocar o comando do Exército”.

A reputação de legalista tem acompanhado Lott desde aqueles eventos, especialmente entre nacionalistas e trabalhistas. Mas, exatos 70 anos depois, é chegada a hora de uma avaliação mais rigorosa da atuação do general durante a grave crise que se abateu sobre a república brasileira desde os últimos momentos de Getúlio Vargas no poder.

Afinal, Lott ajudou a salvar ou a degradar a democracia brasileira?

Na madrugada de 5 de agosto, o jornalista Carlos Lacerda retornava de um comício no pátio do Colégio São José, no Rio de Janeiro, acompanhado de um segurança. Principal voz antivarguista do debate político brasileiro, vinculado à UDN, Lacerda já havia sido ameaçado de morte algumas vezes e, diante disso, começou a ser escoltado por um grupo de simpatizantes da Aeronáutica.

Quem fazia a guarda no dia era o major-aviador Rubens Florentino Vaz, que deixou Lacerda e o filho em frente à casa da família, na rua Tonelero, em Copacabana. Os dois desceram do carro e foram alvejados por alguém de tocaia. Atingido por dois tiros, Vaz já chegou ao hospital sem vida.

Um detalhe, no entanto, mudaria o rumo de toda história. O atirador fugiu num táxi que teve a placa anotada por um guarda municipal também atingido. À polícia, o motorista confessou integrar o plano e entregou Climério Euribes de Almeida, integrante da guarda pessoal de Getúlio.

Foi uma panaceia, naturalmente. Em poucos dias, a crise escalou e as pressões para a renúncia do presidente vinham de todos os lados, inclusive das Forças Armadas. Vários militares se sucederam em pronunciamentos cada vez mais contundentes. No dia 22, oficiais do Exército reafirmaram o conteúdo dos manifestos da Aeronáutica e da Marinha e aproveitaram para deixar o seu próprio recado:

“Os abaixo-assinados, oficiais-generais do Exército, conscientes de seus deveres e responsabilidades perante a Nação, honrando compromissos públicos e livremente assumidos, e solidarizando-se com o pensamento dos camaradas da Aeronáutica e da Marinha, declaram julgar, em consciência, como melhor caminho para tranquilizar o povo e manter unidas as Forças Armadas, a renúncia do atual presidente da República, processando-se a sua substituição de acordo com os preceitos constitucionais.”

Entre os signatários, estavam Canrobert Pereira da Costa, Juarez Távora, Alcides Etchegoyen, Peri Bevilácqua, Humberto Castelo Branco, Jair Dantas Ribeiro e ele, Henrique Teixeira Lott.

A solução encontrada por Vargas é sabidamente conhecida. No dia 24 de agosto, assumiu a presidência o vice Café Filho com o grande desafio de arrefecer os ânimos até as eleições legislativas previstas para outubro próximo e as presidenciais para o ano seguinte. A comoção popular pela morte de Getúlio era enorme. E as chances de vitória udenista, muito pequenas. Por isso, setores conservadores se articularam para a defesa de um controverso projeto de candidatura única para a presidência da República. A manobra, se bem-sucedida, resultaria no descarte da candidatura de Juscelino Kubitschek, do PSD, principal nome até então da disputa e que, a despeito das muitas diferenças, era visto como herdeiro político do petebista gaúcho.

Empossado ministro da Guerra por Café Filho, Lott assinou com a alta cúpula militar um manifesto entregue ao presidente com o pleito. Esse seria um “movimento altruístico de recomposição patriótica”, com “espírito de colaboração interpartidária”, que “permitia o problema da sucessão presidencial”. Juscelino e seu partido foram apresentados ao plano, mas resistiram — mesmo depois que o presidente leu, com comentários elogiosos, o manifesto em A Hora do Brasil.

Para desespero dos militares, não apenas a candidatura de JK à presidência foi confirmada como também a de João Goulart ao cargo de vice pelo PTB — e com endosso de Luís Carlos Prestes e os comunistas. Goulart também era de São Borja, como Vargas, e foi seu ministro do Trabalho, derrubado justamente pela forte pressão castrense contra sua proposta de aumento de 100% do salário-mínimo.

Na edição de 19 de abril de 1955, O Jornal noticiou que o general Lott vetava, “de maneira hábil e por meias-palavras”, a candidatura de Jango — como era conhecido o político gaúcho. Sua carta foi lida no plenário da Câmara pelo deputado Armando Falcão (PSD-CE). Numa ponderada introdução, o ministro da Guerra diz que os militares conservavam o “firme propósito de evitar que o Exército viesse a se imiscuir nos prélios partidários e de conseguir que se mantivesse, em seus atos e manifestações, dentro dos limites traçados pela nossa Constituição”. Mas, logo em seguida, vaticina que “a apresentação da candidatura do presidente do PTB [...] iria tornar mais difícil a realização de nossos propósitos”.

Mais perto do pleito eleitoral, em 16 de setembro, Lott lançou circular destinada a todos os comandos do Exército coibindo novos pronunciamentos políticos de militares. O ministro relembra, no documento, o artigo 13 do Regulamento Disciplinar da instituição, que considera como transgressões, por exemplo, “discutir, ou provocar discussões pela imprensa, a respeito de assuntos políticos ou militares” e “provocar, tomar parte ou aceitar discussões acerca de política partidária ou de religião, no interior do quartel, repartição ou estabelecimento, em agremiações políticas ou em público”.

Mas o próprio general entraria em cena mais uma vez contra Goulart justamente na manhã da eleição presidencial, em 3 de outubro. Nas semanas anteriores, escalava a crise política na Argentina, que ocupava parte significativa das manchetes dos jornais brasileiros. Parte da imprensa repercutiu acriticamente uma carta atribuída ao deputado argentino Antonio Jesús Brandi prometendo armas a Goulart para instituir aqui uma “República sindicalista”, uma espécie de ditadura de trabalhadores operários. Lott mandou abrir um inquérito policial-militar e, ainda a tempo de influenciar os eleitores, divulgou uma nota alarmista sobre o tema, amplamente difundida por emissoras de rádio.

Diante dos questionamentos, o ministro explicou no dia seguinte que “achou conveniente dar publicidade ao que soube” porque a opinião pública havia demonstrado “interesse em ser informada sobre sua possível veracidade”. O inquérito atestou logo depois que a carta era “incontestavelmente falsa”.

A despeito de todas as pressões, Juscelino e Jango acabaram eleitos. E ambos no voto popular. PSD e PTB integravam a mesma chapa, mas a Constituição de 1946 exigia que se votasse separadamente no presidente e no vice, o que mais tarde se revelaria um grande problema. Dessa vez, porém, o problema para a UDN e militares antigetulistas era a demonstração de força do nacionalismo trabalhista nas urnas.

Seja como for, como se todas essas intromissões de Lott não bastassem, é também bastante frágil a tese de que os golpes de novembro serviram para garantir a posse de JK. Se é verdade, por um lado, que a agitação golpista era uma realidade dentro dos quartéis e mesmo dentro do sistema político, é verdade também que o seu verdadeiro peso e iminência são até hoje objeto de controvérsia.

Ânimos exaltados

A eleição não arrefeceu todos os ânimos, pelo contrário. Inconformada com a derrota, a UDN requentou um projeto, bastante popular entre conservadores, para barrar candidatos eleitos sem maioria absoluta, o que seria, para muitos, a verdadeira raiz da crise. Juscelino havia recebido 3,07 milhões de votos, o equivalente a 35,68%. Nestes casos, argumentavam os defensores da agenda, a escolha do presidente deveria ficar a cargo do Congresso, de maneira indireta.

Segundo o ministro da Guerra, o brigadeiro Eduardo Gomes o havia pressionado para intimidar a Justiça Eleitoral em defesa da maioria absoluta. Para Afonso Arinos, líder da UDN, essa e outras iniciativas no Poder Judiciário não representavam golpe nenhum, mas apenas recursos legais como quaisquer outros. Ele próprio admitiria, sobre os correligionários mais exaltados, no entanto, que “não há dúvida que querem o ‘Golpe’”.

Uma ruptura institucional era abertamente encorajada pelo ministro da Marinha, o almirante Amorim do Vale, que dava corda para outro almirante golpista, o caricato Carlos Pena Boto. No campo civil, a atuação de Carlos Lacerda também dispensa maiores apresentações. Lacerda defendia em seu jornal, a Tribuna da Imprensa, um golpe de Estado nesses termos mesmo, sem rodeios, para ele um mecanismo “indispensável e saneador”.

A questão, no entanto, é por que foram depostos os presidentes Café Filho e Carlos Luz.

Como se sabe, Luz chegou à presidência graças ao afastamento do chefe do Executivo por motivos de saúde. Foi ele quem caiu primeiro, no dia 11 de novembro. Dois dias antes, Lott queria aproveitar uma reunião ministerial com o presidente interino para discutir o caso Mamede, que o afligia desde o início do mês.

O coronel Jurandir de Bizarria Mamede, notório indisciplinado do Exército, usou o velório do general Canrobert Pereira da Costa, que causou grande comoção entre os militares, para chamar de “mentira democrática” a “vitória da minoria” e proferir outros impropérios. No dia 3, o ministro da Guerra ligou para o Palácio do Catete a fim de exigir sua punição, mas recebeu a notícia de que, adoentado, Café Filho não poderia responder.

Exoneração devolvida

Lott recebeu do sucessor Carlos Luz um grande chá de cadeira, tido como humilhante até para alguns de seus desafetos. Houve até uma espécie de “lance-a-lance” de uma rádio que transmitia, em tempo real, a espera do general. Antes mesmo da reunião, o presidente já havia mandado publicar no Diário Oficial da União a exoneração de Lott, que ameaçou se demitir caso contrariado. E ele foi: Mamede seria poupado por decisão de Luz. Estava tudo certo. Durante a madrugada, no entanto, Lott tramou com o general Odílio Denis e mudou de ideia: o “exonerado” seria o presidente.

De manhã, militares comandados por Denis e Lott já haviam ocupado diversos prédios públicos do Rio de Janeiro. A “provocação aos brios do Exército”, como classificou Lott, não sairia impune. Neste documento, o resiliente ministro argumenta que a manobra representava um “retorno da situação aos quadros normais do regime constitucional vigente”. Com a ameaça de prisão, Carlos Luz fugiu para o Arsenal da Marinha. Os generais que ficaram no Catete foram presos.

No mesmo dia, Lott foi ao Congresso ameaçá-lo de fechamento, obteve a aprovação de um impeachment relâmpago sem nenhum esforço de fundamentação e entregou o cargo a Nereu Ramos, presidente do Senado. Carlos Luz, de volta à terra firme, fez pronunciamento na Câmara dos Deputados denunciando as ambiguidades da atuação de Lott como regulador de manifestações políticas dos militares, mas de nada adiantou.

Obstinado, Lott não se deu por satisfeito com a queda de Luz. Derrubou também Café Filho, que avisou que reassumiria após alta médica. Nenhum fato novo subsidiou a decisão do general, além da suspeita de envolvimento no suposto conluio. Apenas 10 dias separam os dois eventos. Logo depois, Lott pediu e o Congresso concedeu também, além do impedimento, a decretação de estado de sítio.

A imprensa já estava sob censura desde a deposição de Luz, com vetos totais ou parciais a veículos como a Tribuna da Imprensa, de Lacerda, o Jornal do Brasil e o Diário de Notícias.  Com Eduardo Gomes e Amorim do Vale, no início do mês, Lott também tinha assinado um pronunciamento pedindo para Café Filho o fechamento de jornais e revistas ligados ao PCB. O presidente negou, justamente com receio de uma escalada autoritária, a exemplo do que houve durante o Estado Novo.

Ainda em 1955, Lott disse que não teria deposto Café Filho se ele tivesse se manifestado claramente em favor da posse dos eleitos. Mas ele fez isso duas vezes. Perguntado sobre o tema pelo jornalista Carlos Castello Branco em agosto, disse que não precisava consultar os militares “para afirmar que cumprirá o dever”. Também disse aos Diários Associados que não admitiria outra forma de sucessão além da via eleitoral. Quase uma década depois, o já marechal Lott ajustaria o discurso, dizendo que o golpe era preparado, na verdade, “à revelia” do “dr. Café”, que “não concordava com aquilo”.

Arquitetos da mentira

Quem teve papel fundamental na consolidação dessa memória laudatória de Lott foi o Instituto Superior de Estudos Brasileiros, o ISEB. Durante a deposição de Café Filho, no dia 21, um deputado do PSD leu um estudo da organização (que ainda tinha outro nome, IBESP) sustentando que Carlos Luz tinha parte, sim, do golpe em curso, resultado de suas relações com “interesses ligados ao subdesenvolvimento”. Para Nelson Werneck Sodré, “a função do general Henrique Teixeira Lott, respeitado e obedecido pelo Exército, seria de suma importância. Ao opor-se frontalmente à quebra do regime, Lott estava prestando ao país o serviço de que ele mais necessitava”.

Só mais recentemente uma historiografia de teor mais crítico ao legado do militar tem aparecido com mais consistência nos debates. Méritos especialmente do historiador Carlos Fico em seu Utopia Autoritária Brasileira, grande obra de 2025, que conta essa história em detalhes e inspira a argumentação aqui desenvolvida.

Em lado oposto ao de Denis, o general Henrique Lott foi um importante aliado da Campanha da Legalidade, que garantiu — aí, sim, indiscutivelmente — a posse de Jango como presidente em 1961. Mas já era tarde demais. Os militares tinham chegado para ficar. Em 1964, a direita venceu. O argumento? Justamente o de que Goulart preparava um golpe com a esquerda. A ilusão de que um golpe pode nos salvar de outro é parte do que mantém acesa a chama do golpismo entre militares, como vimos em 2022.

Evidente que as manobras de Gilmar e Lott têm naturezas bem distintas. Uma é jurídica e a outra, militar — Café Filho e Carlos Luz foram apeados do poder pela força das armas. Mas a disposição de parcela tão expressiva do eleitorado e do sistema político em tolerar ou justificar saídas extraordinárias para crises institucionais deveria ser sinal de alerta.

Se é de “contragolpes preventivos” assim que precisamos para salvar a democracia, melhor já esperar pelo pior.


*Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná e professor no Instituto Federal do Paraná. É autor de uma tese sobre o revisionismo ideológico da ditadura militar brasileira.

Fim da barreira tecnológica?

Guilherme Meira, ou “Guil”, como é conhecido em seu canal com pouco mais de mil inscritos no YouTube, é um brasileiro, morador da Espanha, com vídeos em inglês sobre seu trabalho de desenvolvedor no code, ou seja, alguém que cria aplicativos, automações e sistemas sem precisar programar usando linguagens como o JavaScript ou Python. Guil vem publicando criações de aplicativos e desenvolvimento a partir do uso da inteligência artificial. Mas em um de seus vídeos, ele decidiu testar um desafio do desenvolvedor Greg Isenberg de criar um clone funcional do serviço de assinatura eletrônica DocuSign, usando apenas IA.

Em cerca de 35 minutos de gravação e poucas horas de trabalho ele usou o Lovable, chatbot de desenvolvimento de software; o ChatGPT e seu próprio ScopesFlow, ferramenta que gera um escopo estruturado a partir de uma descrição em linguagem natural, para gerar uma versão quase completa do aplicativo. O protótipo tinha autenticação, upload de documentos, painel do usuário e até uma interface com estética similar à da Apple. O experimento viralizou e, dias depois, a Spryngtime estava em funcionamento.

Logo em seguida, o novo site recebeu uma notificação extrajudicial do DocuSign, que exigia que o projeto fosse retirado do ar “imediatamente”. Mas, até agora, a Spryngtime segue funcionando.

Velocidade e facilidade

“Este episódio é a prova mais clara de que estamos vivenciando uma deflação brutal no custo e no tempo de desenvolvimento da camada de aplicação, validando o princípio de que a velocidade de execução é o principal preditor de sucesso para novas iniciativas”, aponta André Lichtenstein, fundador da Ainvest Capital, gestora que investe em startups e empresas de tecnologia. Ele lembra que o que antes exigia semanas de trabalho de equipes inteiras, hoje é feito em poucas horas com um único prompt. Lichtenstein ainda lista quatro consequências imediatas: o custo marginal de tentar tende a zero; o tempo de prototipagem e desenvolvimento é radicalmente reduzido; a fase inicial de concepção e prototipagem virou a commodity; e o gargalo do desenvolvimento não é mais a construção do código, mas sim a definição do escopo e o refinamento do prompt. “Estamos saindo de uma era de escassez de código para uma era de abundância”, completa.

Esse encurtamento brutal do ciclo de desenvolvimento e o surgimento de milhares de aplicativos criados com Lovable coloca em xeque o modelo das empresas de software vendidas como serviço (Software as a Service) que atingiram valuation acima de US$ 1 bilhão, chamadas de “unicórnios SaaS”. Para Kevin Gervasoni, contribuidor do TC Investimentos, um agente de IA custa cerca de US$ 1.000 por mês, ou US$ 1,89 por hora, contra um salário médio de US$ 36 mil por ano, ou US$ 17 a hora nos EUA, o que significa que a IA já é “cerca de 90% mais barata e eficiente que um funcionário para replicar certas tarefas – e esse custo tende a cair ainda mais”.

Mas copiar o produto não significa copiar o negócio. André Lichtenstein sintetiza que “é fácil clonar a casca, mas extremamente difícil e caro clonar o motor jurídico e a infraestrutura de confiança que se constrói ao longo de anos”. Para ele, a interface é a parte trivial. O valor do DocuSign, por exemplo, está na “criptografia certificada”, “cadeia de custódia”, “auditoria para tribunais” e conformidade com leis. Gervasoni concorda. “O maior desafio do negócio é obter validade jurídica nos países em que atua”, afirma. Nesse sentido, o resultado pode ser um paradoxo, em que o desenvolvimento da inteligência artificial pode desmontar a barreira tecnológica, mas reforçar a barreira regulatória.

Quais categorias estão mais ameaçadas?

Entre as categorias de software mais em risco, Kevin Gervasoni diz que a vulnerabilidade é máxima onde a lógica é repetitiva e previsível. Então, CRMs (sistemas de gestão de relacionamento com clientes), ferramentas de produtividade, aplicativos de backoffice (sistemas internos de suporte operacional), além de SaaS muito nichados, como sistemas para clínicas pequenas, academias ou oficinas se enquadrariam, pois todos esses produtos seguem uma mesma estrutura básica de tabelas com dados, regras previsíveis e telas padrão para o usuário, o que facilita sua reprodução por IA.

A possível explosão de novos softwares criados por pessoas sem formação técnica também pode mudar o mercado. Lichtenstein prevê “explosão e verticalização extrema”, com milhares de microapps ocupando a cauda longa. Neste caso, cauda longa significa um mercado em que, além dos grandes produtos dominantes, existe uma quantidade enorme de produtos nichados, cada um com pouca demanda individual, mas que, somados, representam um volume significativo. Mas ele alerta que “pessoas não técnicas conseguirão criar (com prompts), mas travarão na hora de escalar, integrar sistemas legados ou corrigir bugs estruturais, já que a programação confere o controle necessário sobre as ferramentas”, e isso deve gerar um oceano de “sistemas zumbis”, protótipos que funcionam até a primeira atualização quebrar tudo. Outro problema é a escala do uso. Um protótipo pode funcionar bem dentro de um universo restrito de testadores, mas, uma vez que a ferramenta é disseminada para um número maior de usuários, a chance de falhas cresce exponencialmente.

Inovação ou replicação acelerada?

Um aspecto que une filosofia e economia é se estamos, de fato, avançando para algo novo ou apenas multiplicando versões mais rápidas do que já existe? Lichtenstein argumenta que estamos na “copy phase”, ou seja, a capacidade de desenvolvimento está sendo usada para refazer o passado de forma mais barata. “O próprio exemplo do clone de DocuSign, motivado por um desafio para copiar algo que já existe, prova o ponto”. Para o especialista, a inovação virá quando a IA trabalhar de forma ativa, visando pesquisar, criticar, revisar e compor soluções inéditas. Já Gervasoni vê espaço para transformação profunda e cita o exemplo do Google. “Uma ferramenta que tinha um monopólio enorme está sendo disruptada por um chatbot”. E acredita que, como na bolha da internet, os grandes produtos surgirão depois. “Acredito que estamos vivendo uma bolha de IA: muito investimento em infraestrutura e poucos produtos realmente incríveis, como os próprios chatbots”, diz.

A democratização do desenvolvimento traz também riscos regulatórios, porque aumenta os riscos de phishing, softwares inseguros e interfaces clonadas para enganar usuários. André Lichtenstein defende que os governos adotem novas certificações, trilhas claras de responsabilidade e avisos explícitos de que determinado software foi gerado por IA e não possui validação regulatória. Já Kevin entende que historicamente, “nenhum governo é capaz de impedir a tecnologia” e os Estados serão forçados a se adaptar, como ainda se adaptam à internet.

Ponte para a igualdade

“Cresci nos Estados Unidos, uma nação estruturada por colonialismo, escravidão racial e suas consequências, com traumas coletivos e históricos mais que suficientes. Cresci também em uma comunidade da diáspora nigeriana, povoada por muitos que tinham o genocídio em sua memória viva. Em nível nacional e comunitário, tenho visto traços de personalidade, peculiaridades de hábitos e ações que suspeito terem nascido dessas partes sombrias da história”, escreve o filósofo americano Olúfémi O. Táíwò na conclusão de seu livro mais recente Captura lançado no Brasil pela editora Zahar. Para Táíwò, esses traumas não podem ser vistos como educativos, mas como blocos para a construção da consciência. Ou, como diz mais à frente. “Essas experiências se colocam entre mim e outras pessoas não como um muro, mas como uma ponte.”

A questão central do livro é que o sequestro das políticas de identidade pelas elites — monetárias, intelectuais e inclusive de grupos minoritários — leva a uma despolitização que serve à manutenção das desigualdades. E constrói seu argumento usando exemplos que vão das lutas de independência africanas à pedagogia de Paulo Freire, passando pela organização de grupos como o coletivo de feministas negras lésbicas Combahee River — que cunhou o termo “políticas de identidade” em 1977 —, para balizar a transformação que quer ver no mundo.

Antes de Captura, Táíwò havia escrito Reconsidering Reparations (Reconsiderando Reparações), no qual também as entende como parte do projeto de construção de um mundo igualitário. “Devemos encarar as reparações não apenas como um pedido de desculpas ou como um curativo, mas como uma tentativa de tornar o mundo mais igual e justo para todos que vivem nele e tentar fazer o tipo de transferências que contribuirão para esse projeto, em vez de apenas pedir desculpas pelo fato de que a estrutura do mundo é ruim”, me disse um uma conversa por vídeo na qual tratamos de dar contorno às suas ideias a respeito das políticas de identidade. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

O livro é muito crítico ao capitalismo e à sua capacidade de promover igualdade. Qual é o efeito do estado atual do capitalismo na política?

É aumentar a coordenação ou, pelo menos, as possibilidades de coordenação das elites em diferentes partes do mundo. Há uma crescente solidariedade entre movimentos de direita na Argentina, Brasil, Estados Unidos, Hungria. Eles conseguem se coordenar, não apenas porque conseguem se comunicar, o que, claro, conseguiam muito antes. Mas eles conseguem sufocar concorrentes e usar sua imensa riqueza em eleições, ataques militares e todos esses tipos de dinâmicas institucionais através dessas fronteiras que estão cada vez mais sensíveis ao indivíduo. Mas muitas elites políticas, particularmente nos Estados Unidos, estão misturando os assuntos de Estado com suas próprias fortunas pessoais. E, ao combinar isso com esse tipo de solidariedade transfronteiriça entre elites de direita em diferentes países, torna-se cada vez mais difícil para os movimentos de esquerda em qualquer lugar competir com uma rede tão densa de plutocratas. E vamos precisar de um tipo de solidariedade igualmente internacionalista de pessoas que representam a grande maioria do mundo se quisermos ter alguma chance de combater isso e preservar a democracia.

A política de hoje, alimentada pelas mídias sociais, pode ser um obstáculo para o tipo de conversa que costumávamos ter nas democracias?

Sim, isso é algo que me preocupa particularmente, especialmente com o aumento do conteúdo de vídeo de formato curto, como Instagram e TikTok, que realmente encorajam e incentivam visões de mundo muito planas. É difícil comunicar nuances nesses formatos. E me preocupo que isso superalimente a versão da política de identidade à qual me oponho: aquela simplista como um substituto para a política de coalizão, uma maneira fácil de rotular pessoas de diferentes categorias demográficas como inimigas. Mas você pode pensar nisso como uma espécie de corrida armamentista. A corrida é sobre quem usará essas novas tecnologias de captura de atenção e obtenção de influência primeiro. Será a direita? Serão as pessoas que querem colocar grupos de identidade uns contra os outros, ou serão as pessoas que entendem como a opressão de um tipo de pessoa está conectada à opressão de um tipo diferente de pessoa? Eu espero que seja o último.

Acredita que a esquerda consiga superar a mentalidade de cancelamento que hoje rege a política, sobretudo no mundo digital?

Acho que sim. E vejo essa tendência de colocar identidades umas contra as outras como relacionada ao problema mais amplo da captura da elite. Porque, sabe, eu não quero dizer que não existam ressentimentos reais entre grupos marginalizados de pessoas. Mas eu acho que quem está investido no que eu chamaria de política construtiva, gente que faz parte de sindicatos ou de movimentos que estão tentando conquistar ganhos materiais na esfera política, possui um entendimento de que, em última análise, são necessárias alianças compatíveis com a vitória. Quando você está envolvido na política material, há um tipo de disciplina que é exigida que está ausente entre os grupos marginalizados de elite mais privilegiados. Eles podem estar dispostos a buscar ressentimentos e vinganças pessoais sob o pretexto de solidariedade com um determinado grupo marginalizado porque não estão lutando por nenhum ganho material específico ou porque estão bem o suficiente para que sua capacidade de sustentar sua vida não dependa da vitória. Se tivermos uma esquerda menos dominada pela elite, por falta de um termo melhor, será mais fácil cultivar o tipo de disciplina que manterá as coalizões.

Como você definiria o mecanismo da captura pela elite?

Em última análise, é o mesmo tipo de insight do ditado “os ricos ficam mais ricos, os pobres ficam mais pobres”. Existem todas essas maneiras pelas quais ter vantagens hoje se relaciona com como o mundo será amanhã. E isso é verdade para qualquer tipo de vantagem social. Seja apenas dinheiro ou conexões políticas. Então, se descobrimos que as pessoas negras, queer ou gays mais favorecidas estão desproporcionalmente no comando dos movimentos e instituições que são organizados para o poder negro ou direitos LGBTQ, não devemos nos surpreender. Não estamos olhando para uma falha especial da política de identidade. Estamos olhando apenas para o comportamento normal de sistemas sociais que são organizados de forma desigual. E a maneira de combatê-lo não é abandonar nenhum estilo particular de política, mas sim lutar pela igualdade.

Um dos conceitos do livro é que, para alcançar seus objetivos políticos, você precisa ser capaz de “ler a sala”. Como isso funciona?

Uma das coisas que quero rebater no livro é essa tendência ao moralismo que, de certa forma, desenvolvemos na esquerda. Devemos, claro, ter princípios políticos e ser guiados por eles. Mas isso é ser capaz de identificar o que seria necessário para realmente cumpri-los. E aqui eu acho importante olhar para os sucessos e fracassos do século 20, especialmente para a onda de movimentos de independência nacional, para começar a pensar em nossas versões do século 21. Não acho que alguém em meados do século 20 pensasse que alcançar a independência nacional fosse algum tipo de panaceia, que tudo ficaria perfeito. As pessoas pensavam que era um passo necessário no caminho em direção a uma economia global mais justa e melhor, um conjunto de políticas globais com menos apartheid formal. O histórico de sucesso é misto, mas eu diria que, no geral, foi uma vitória em progresso. E o fato de ter sido misto, de não ter sido uma vitória total e ininterrupta, é algo que devemos estudar. Porque não era uma questão de princípios insuficientes, era uma questão de poder insuficiente. E temos que pensar em como construir o poder necessário para os princípios que queremos promulgar em nosso tempo.

“Todo brasileiro tem orgulho da Fernanda Montenegro. Ela é uma espécie de instituição.” A frase de Ricardo Rangel, diretor de Fernanda Montenegro: a Luz e o Mistério, resume bem o mais novo filme do Meio. Contamos a história de uma artista cuja vida e obra se confundem com a própria trajetória cultural do país, com a própria Fernanda revisitando suas memórias. Já está no streaming do Meio. Aproveite o fim de semana e viva essa história com a gente.

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