Desejo de reparação
No centro da disputa do marco temporal, e de outras que envolvem grupos reivindicando acerto por violências passadas, está quem merece ser compensado e de que maneira. A filosofia de Locke já apontava caminhos para isso
O Supremo Tribunal Federal (STF) retoma hoje o julgamento do marco temporal da demarcação das terras indígenas. O placar está 4 a 2 contra a tese jurídica do marco temporal. Num breve e simplificado resumo, no julgamento de 2009 sobre a demarcação da reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima, assentou-se no Supremo que um dos critérios para definir se determinado território deve ser devolvido a um povo indígena era se esse povo ocupava tal território ou o disputava na data da promulgação da Constituição, dia 5 de outubro de 1988.
A própria Constituição não coloca essa condição. Em seu artigo 231, ela diz que “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. No parágrafo primeiro desse artigo, os constituintes se aprofundaram na definição: “São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.
Mas o Supremo entendeu, não de forma unânime, em 2009, pela tese proposta por Carlos Alberto Menezes Direito, que se um povo indígena não ocupava o território na data da Constituição — e não o vinha ocupando permanentemente até ali ou sequer o disputava naquele momento — não seria o caso de promover desocupações e devolver essas terras aos povos originários. Essa interpretação foi seguida pelo Supremo desde então. Até que, na ação atual, voltou à pauta numa ação do governo de Santa Catarina, num caso sobre a Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, demarcada em 2003 e disputada pelo povo Xokleng e agricultores. De um lado, o governo catarinense argumenta que a terra não estava ocupada em 1988 pelos indígenas. De outro, os Xokleng alegam que só não a ocupavam porque de lá haviam sido expulsos. O que o Supremo decidir servirá de parâmetro em mais de 80 casos parecidos e 300 processos pendentes de demarcação, segundo a Agência Câmara.
Embora o ministro Edson Fachin, relator do caso, tenha feito um voto contrário ao marco temporal e sido seguido até aqui por Cristiano Zanin, Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes, este último propôs um tipo de compensação aos não-indígenas que ocupem essas terras “de boa-fé” e venham a ser despejados.
Nisso, Alexandre foi acompanhado tanto por Zanin quanto por Barroso, com diferenças sobre as benfeitorias no território a serem indenizadas. O voto de Alexandre, na verdade, propõe dois tipos possíveis de compensação. A indenização ao não-indígena “que, de boa-fé, na cadeia dominial, adquiriu [tal território], deve ser completa, à terra nua e a todas as benfeitorias, porque não havia como saber 100, 130, 160 anos depois. A culpa, a omissão, o lapso foi do Poder Público, e o Poder Público tem que arcar com isso para garantir a paz social”. Ativistas indígenas apontam que a “cadeia dominial” dos brancos nasce de uma usurpação: sua expulsão de suas terras de origem desde sempre. E que esse tipo de remuneração vai sair tão cara para a União que simplesmente inviabiliza as demarcações. A segunda compensação proposta por Alexandre seria ao povo indígena com um território equivalente, no caso de a terra reivindicada já ter se tornado uma cidade e sua devolução, impraticável — “desde que a comunidade indígena aceite determinada área, por guardar semelhanças com o seu modo de vida e sua tradição”. E defendeu que essa seria uma forma de mitigar o que é, lamentavelmente, uma falha global: “Não há, no mundo, um modelo de reparação e reconhecimento dos direitos fundamentais das comunidades originárias”.
O que está no centro da disputa é como reparar grupos e indivíduos vítimas de violências passadas e que tipo de compensação é adequado para essas vítimas e seus descendentes. Quem reivindica essa correção costuma usar o termo “reparação histórica”. Privados de seus direitos pelo Estado e por entes privados, esses grupos entendem que a reparação lhes é devida e estão dispostos a cobrá-la de ambos os agressores. Também está na mesa qual seria a compensação para os herdeiros de quem se beneficiou das violências, ainda que involuntariamente ou “de boa-fé”. Quem defende que descendentes não devem seguir pagando por erros de antepassados, ou que seus antepassados foram beneficiados porque aquelas eram a lei e a política vigentes no momento da violência, considera que a correção é injusta — ou, no mínimo, passível de recompensa.
É o que permeia a discussão da reparação histórica aos indígenas, aos descendentes de escravos e quilombolas. À população negra, em geral. Às mulheres. Todas questões urgentes e, frequentemente, divisivas.
O que pode parecer travestido de luta identitária está, na realidade, coberto de questionamentos filosóficos fundamentais para uma sociedade definir o que é Justiça. Não por acaso um dos formuladores do princípio de reparação foi o filósofo inglês John Locke, ainda no século XVII.
No Segundo Tratado sobre o Governo Civil, obra de 1689 que influenciou grandemente a Declaração de Independência dos Estados Unidos, Locke trata dos direitos provenientes da Lei Natural, que seria o equilíbrio entre os homens racionais, rompido pelas guerras e pelo crime. E quando se debruça sobre como coibir as violações desses direitos, propõe punições de um lado, e reparações de outro. Os magistrados podem impor (ou não) punições. Mas a reparação é algo entre ofensor e ofendido. Ele escreve que a reparação que um crime causa a “uma ou outra pessoa” deve dar a “satisfação devida a qualquer homem privado pelos danos que recebeu”. Filósofos contemporâneos que defendem uma visão lockeana da reparação entendem que essa abertura do “uma ou outra pessoa” implica que a vítima a buscar reparação pode ser alguém prejudicado pelo infrator, ainda que não diretamente — um filho que teve o pai assassinado, por exemplo.
Eles vão além. Argumentam que só a compensação pode simplesmente não entregar uma reparação, porque Locke entendia que a reparação é necessariamente decorrente de um crime. E pessoas podem ser compensadas sem que uma infração tenha sido cometida. No caso de alguns seguros, por exemplo, é direito do segurado ser recompensado pelo que perdeu, sem que tenha perdido um bem por roubo. Além disso, uma reparação pode vir de uma compensação imaterial. Pode ser feita com a derrubada de símbolos. Com um pedido de desculpa. Desde que o ofendido assim o aceite.
No geral, uma reparação inclui, sim, uma compensação. E ambos os movimentos alimentam a conciliação e a paz social — aquela que Alexandre lembra ser preceito de nossa Constituição.
Uma das formas que aqueles cobrados a reparar, especialmente os entes privados quando se trata de uma violência endossada pelas leis do momento, encontram de contestar essa noção é a de questionar a herança dessa dívida ética. A corrente filosófica que propõe Locke como baliza dessa disputa aponta que ele mesmo, na defesa que faz da propriedade como direito natural, relativiza esse direito quando há necessidade de uma reparação. Nessa linha, ele teria proposto que o agredido tem direito a reparações vindas de propriedades daqueles que o agrediram, desde que parte dessas propriedades fossem reservadas “às esposas e aos filhos” do agressor. Aos herdeiros. Respeitando a Lei Natural, Locke teria feito a ressalva: o direito à reparação não pode se sobrepor ao direito de sobrevivência dos herdeiros. Sobrevivência. Sua preocupação seria a de que herdeiros morressem de fome se a reparação fosse completa, não a de que os herdeiros herdassem pouco. E, por aproximação, o direito à reparação também não deveria ser herdado?
Alexandre de Moraes não exagera quando aponta a dificuldade de se equacionar um modelo de reparação. Nações vêm contestando nações; grupos de cidadãos cobram seus Estados e outros grupos. Não há régua precisa para medir como reparar violências históricas e suas consequências. Isso não quer dizer que elas não tenham acontecido e não pressuponham esse acerto. O Brasil já reconheceu que deve aos indígenas — o próprio voto dos ministros diz isso. É hora de decidir como compensá-los.