A Constituição e os ressentimentos dos Poderes

Nesta quinta-feira, a Constituição de 1988 urdida por Ulysses Guimarães soprará 35 velinhas. Trata-se de um feito, já que apenas duas constituições na história brasileira foram mais longevas: a do Império, que durou 65 anos; e a da Primeira República, que resistiu a 39. Todas as outras duraram menos: a de 1934, 3 anos; e a de 1946, 21 (as constituições autoritárias de 1937 e 1967 não contam). Tudo pesado, creio não ser excesso declarar que a Constituição de 1988 seja a definitiva do Brasil. Definitiva à maneira do verso de Vinicius: enquanto a democracia durar...

Houve quem lhe agourasse vida curta, devido à forma como foi feita, de baixo para cima, sem um anteprojeto; à sua desmesurada extensão, com 245 artigos; ao seu conteúdo demasiado minucioso sobre diversas esferas da vida; à sua ideologia progressista. Mas tais críticos esquecem que a Constituição teve um anteprojeto oficioso, elaborado pela Comissão Afonso Arinos; que a prolixidade é característica de todas as constituições modernas, como a portuguesa (que tem 296 artigos — 50 a mais que a nossa); que seu conteúdo minucioso nunca foi obstáculo à possibilidade de ser emendado (já foram 128 emendas).

Quanto ao seu caráter progressista, a Constituição revelou a capacidade de comportar governos de diferentes orientações ideológicas. Desde o conservadorismo liberal de Sarney e Temer, até a social-democracia de Lula e Dilma, passando pelo liberalismo democrático de Fernando Henrique. Ela resistiu aos trancos e barrancos à crise de representação política de 2015-2018 e, depois, ao governo de Jair Bolsonaro, que como vilão de filme B ressuscitou o autoritarismo contra o qual os constituintes a haviam planejado. Apesar das tentativas de subversão, a filhota de Arinos e Ulysses resistiu.

Não se trata somente de garantir a sobrevivência do texto da Constituição. Às vezes sua letra sobrevive, mas seu espírito é aniquilado. Foi o que aconteceu com a Carta de 1946, cujo texto sobreviveu por três anos ao golpe de 1964 de forma somente vegetativa.

O espírito da Constituição reside no conjunto de seus valores, distribuídos por seus princípios e normas, que são expressivos e garantidores do Estado de Direito democrático.

O elemento novo introduzido em 1988 que permitiu a sobrevivência da progressista Constituição foi a instituição pelos constituintes de um Judiciário fortalecido, encimado por um Supremo Tribunal encarregado de zelar pelo primado de seus princípios e regras. Foi principalmente pela atuação do STF na interpretação da Constituição conforme os parâmetros hermenêuticos de democracias mais avançadas que o Estado de Direito democrático nele previsto se tornou realidade. A coalizão de reacionários e neoliberais no poder com Bolsonaro golpeou a Constituição dia sim e outro também para colocar abaixo a democracia, no propósito deliberado de repetir nas condições atuais o precedente exitoso de destruição democrática de 1968. Foram os juízes do STF que encabeçaram depois a resistência à tentativa de subvertê-lo e, hoje, estruturam a repressão ao golpismo. Ao se tornar um obstáculo intransponível à sua agenda autoritária, seus juízes se tornaram os inimigos favoritos de dez em cada dez reacionários e neoliberais (estes, seus inimigos de sempre).

Hoje, o principal problema político do STF como guardião da Constituição reside no fato de ser visto como elemento impeditivo ou desestabilizador dos arranjos de governabilidade disputados pelo Executivo e pelo Legislativo. O presidencialismo de coalizão articulado por Fernando Henrique estabilizou a política republicana como forma de articulação entre os Poderes. A crise do consenso progressista e a degeneração daquele arranjo pela corrupção nos governos subsequentes, seguida pela erupção do judiciarismo disruptivo da Lava Jato, foi responsável pela crise política e constitucional da década passada, que culminou na catástrofe bolsonarista.

Bolsonaro passou, mas não surgiu ainda um novo modelo de governabilidade capaz de restabelecer uma rotina de equilíbrio entre os Poderes.

O atual Executivo se ressente do estado de sujeição a que ficou submetido ao Congresso desde 2015, quando Eduardo Cunha começou a sabotar o governo Dilma. Mas se ressente também do Judiciário, que deu livre curso e sanção ao lavajatismo na mesma época. Já o Legislativo, fortalecido e muito mais conservador, resiste às tentativas do Executivo de relançar o velho presidencialismo de coalizão, na qual os parlamentares figuravam como coadjuvantes. As maiorias da Câmara e do Senado sonham, ao contrário, com a continuação do parlamentarismo bastardo instituído nos últimos anos.

Executivo e Legislativo, por suas vezes, se ressentem da ascendente do Judiciário. Bolsonaro queria resolver o problema liquidando e aparelhando aquele poder. Já Lula se contenta em escolher ministros e procurador-geral da república de sua estrita confiança, para evitar a reiteração do lavajatismo. A frustração dos movimentos sociais identitários com a não nomeação de uma mulher negra parece um custo relativamente barato no primeiro ano de mandato. Já o Legislativo quer neutralizar o Judiciário, para obrigá-lo a abandonar a interpretação progressista da Constituição.

Do ponto de vista político, todo o problema constitucional hoje reside na incapacidade de estabelecer um novo modelo de governabilidade. Cada um dos três Poderes se orienta pela aspiração de dominar os demais, ou pelo menos de não se sujeitar à hegemonia de nenhum deles. Enquanto o novo consenso em torno do funcionamento dos Poderes não emergir, a república seguirá em sistema de equilíbrio instável pelo entrechoque dos três. A relativa paralisia daí resultante, gerando efeitos conservadores do status quo, será o preço a pagar pelos ressentimentos recíprocos da década passada, agravados pelo crescente dissenso ideológico.


*Cientista político, editor da revista Insight Inteligência e professor do IESP-UERJ

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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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