Milei, a aposta arriscada da Argentina

Os argentinos costumam ser muito criativos quando inventam gritos de guerra e cânticos políticos ou futebolísticos, nos quais os dois temas quase sempre se misturam. Há quase um ano, na Copa do Mundo que a Argentina acabou vencendo, tivemos “Muchachos — Ahora Nos Volvimos a Ilusionar”, a música que soou incansavelmente por dias, semanas, meses. E ela mencionava já na primeira estrofe uma vingança pelos “garotos das Malvinas”, referindo-se aos soldados mortos no conflito em que a Argentina foi derrotada em 1982 pelos britânicos.

Foi cantando letras escatológicas, hostis à classe política, mas também irônicas e preconceituosas — como também são muitos dos cânticos de torcidas de times locais — que uma multidão de jovens esperou horas na fila e depois dentro do Movistar Arena pela chegada de seu líder, o economista e deputado Javier Milei. O espaço de shows fica no bairro da Chacarita, em Buenos Aires, e tem capacidade para 20 mil pessoas.

Entre os hits da campanha do líder ultraliberal de extrema direita estavam: “Ohhh, Que se vayan todos, que no quede, uno solo” (que usa o jargão da crise de 2001, referindo-se aos políticos “tradicionais”). Também: “Pongan huevos, huevos liberales. Pongan huevos, huevos sin cesar” (em tradução livre, “colocar ovos” significa ter coragem, neste caso, ter coragem para votar na mudança que o candidato propõe). Ou ainda: “Tiene miedo, la casta tiene miedo” e o efusivo “primera vuelta la puta que te parió” (“primeiro turno, puta que pariu”, reforçando a nova narrativa de Milei, que é a de já se anunciar vencedor sem necessitar de segundo turno).

Segundo a lei argentina, para ser eleito no primeiro turno, ou seja, neste domingo, um candidato deve ter 45% dos votos, ou 40% desde que a diferença para o segundo colocado seja de 10 pontos percentuais. Não é o que apontam as pesquisas, mas elas merecem uma explicação à parte. O tabuleiro político argentino claramente mudou muito da eleição de 2019 para cá. A grande novidade é que um país antes acostumado a uma polarização histórica entre duas opções, peronistas vs. anti-peronistas (que já foi no passado a União Cívica Radical, hoje predomina o Juntos por el Cambio, partido encabeçado por Mauricio Macri), agora convive com uma terceira força, que parece ter vindo para ficar, e que se opõe às duas correntes tradicionais. Trata-se do La Libertad Avança, o recém-criado partido de Milei.

“Essa mudança ajudou a desestruturar o modo de realizar pesquisas na Argentina, e se insere num contexto mundial em que tem sido muito difícil para os institutos identificarem a ascensão de movimentos de extrema direita“, diz Federico Merke, professor de relações internacionais na Universidad del Salvador. É um fato, já ocorreu na Hungria, nos EUA, mesmo no Brasil. E agora parece ser o caso da Argentina.

No dia em que conversamos, Merke disse que havia almoçado com colegas professores na universidade, e que o clima era de pouca esperança, de desânimo. ”É muito difícil torcer para que a realidade seja diferente, que Milei não saia vencedor, vamos votar em alguém que pareça estar com mais chance de derrotá-lo, mas só isso já é sofrido. Para nós, que trabalhamos com educação, é desesperador", contou.

No escuro

De fato, no projeto de Milei de redução de ministérios, está a condensação das pastas de Saúde, Educação e Trabalho num ministério do Capital Humano. A redução faz parte do “plano motosserra”, ou seja, a eliminação de centenas de cargos públicos. Quem quiser ter uma ideia de como seria essa proposta, é fácil encontrar no TikTok do candidato o vídeo em que ele vai arrancando post-its de um quadro com o nome dos ministérios e gritando: “ministério da mulher, fora!”, “ministério da educação, ou seja, doutrinação, fora!”, e assim por diante. Muitos pais colocaram seus filhos para imitar Milei fazendo isso — esses vídeos também se popularizaram na rede.

Os institutos de pesquisa mais tradicionais do país, Poliarquía, Management & Fit e mesmo os mais novos, como o Opinaia, vêm divulgando menos resultados em relação a eleições passadas. A AtlasIntel é uma exceção, e tem dado uma vitória apertada de Massa sobre Milei no primeiro turno e, num segundo turno, de Milei. Há outros tipos de pesquisas, muitas nanicas, algumas vinculadas a empresários ligados a políticos, outras diretamente a partidos e muitas com metodologias atrasadas, como, por exemplo, a de fazer a pesquisa telefonando apenas para números fixos. Um total desse balaio de sondagens soma 18 pesquisas desde as primárias. O que se pode concluir num agregado delas é que Milei está adiante, com Massa pisando em seus pés, ambos com cerca de 30%.

Já Patricia Bullrich apareceria com 26%, mas sem contar sua atuação no segundo debate, no qual sua performance foi bastante melhor. A candidata vem abraçando algumas bandeiras de Milei, como a luta contra o narcotráfico, e isso a tem ajudado a se recuperar. No fim da lista, vêm os candidatos mais “fringe”, a socialista Myriam Bregman e o cordobês Juan Schiaretti, com menos de 5% das intenções de voto. “A questão neste primeiro turno, em primeiro lugar, é se vamos ou não a um segundo. Neste caso, se o segundo turno for Massa x Milei, considero muito mais fácil que Milei ganhe. Se for Milei x Bullrich, pode ocorrer qualquer coisa. Neste ano, as pesquisas que tivemos não nos ajudaram a prever nada", diz o economista e consultor Marcelo Elizondo, professor de pós-graduação no Tecnológico de Buenos Aires.

Mas, afinal, como a Argentina chegou tão perto de dar um salto ao vazio, numa aposta arriscada que pode quebrar sua democracia e fazer deteriorar ainda mais as instituições?

Isolados e desolados

As explicações são complexas, claro. Entre os fatores que parecem ter contado mais está, obviamente, a economia. A inflação anual está em três dígitos. Há uma regra estabelecida desde o governo Macri que determina que um cidadão não pode comprar mais de US$ 200 para fins de poupança pelo câmbio oficial, em que US$ 1 vale 365,50 pesos (os argentinos poupam mais em dólar, em casa, do que em investimentos bancários). E, no blue (paralelo), comprado de forma ilegal, em cuevas ou com cambistas, o argentino precisa de quase 1 mil pesos para comprar US$ 1. O dólar oficial é usado em importações de insumos para a indústria nacional e outras atividades reguladas pelo governo. Os comerciantes, por sua vez, ajustam seus preços pelo blue, pressionando a inflação. É difícil imaginar que uma família de classe média regular consiga chegar ao fim do mês pagando suas contas em dia.

Depois, conta muito o fato de o kirchnerismo e o breve interregno do Juntos por el Cambio, com Mauricio Macri, não terem conseguido lidar com essa escalada inflacionária, com os escândalos de corrupção e com os casos de violência. Aqui, um aparte: argentinos têm a segurança como uma das principais preocupações. Mas é preciso analisar o contexto. A taxa de homicídios no país, de cerca de 5 mortos por 100 mil habitantes, não chega nem perto dos de países da América Central ou do México. Ou do Brasil, que é de 23,4.

Outro fator de peso é o apoio dos jovens, muitos nascidos pouco antes de se iniciar o primeiro período kirchnerista, o de Néstor Kirchner, ou que pelo menos cresceram durante esse período e conhecem poucas opções. Com uma estratégia de redes sociais poderosa, a equipe de Milei teve sucesso ao agregar esses jovens insatisfeitos e desejosos de algo de fato novo e diferente. Em uma entrevista dada ao famoso programa de celebridades argentino comandado pela veterana Mirtha Legrand, o próprio Milei afirmou que a “quarentena cavernícola”, imposta pelo governo do desgastado presidente Alberto Fernández, contribuiu muito para o aumento de sua popularidade nas redes. Milei começou a receber vários apoios de jovens anti-K revoltados por ter de ficar em casa, e que foram seduzidos, segundo o candidato, pela mensagem de liberdade. De fato, os primeiros atos de Milei foram em praças e parques, no começo da flexibilização das medidas de cuidado, e os jovens foram o principal público desses encontros.

Além de tudo isso, há uma afinidade com uma tendência política internacional de extrema direita que avança em vários países, cada um com a particularidade de sua cultura e história política.

Dólar na mão é vendaval

Na figura de Milei, se mistura um anedotário de suas excentricidades ao perigo real que ele representa para a democracia argentina e para a deterioração das instituições no país. O anedotário? Milei diz que recebe conselhos políticos de seu cão, Conan, já morto, de modo mediúnico e que ele clonou o cachorro amado para gerar seus 5 “netos”. Também reforça que não penteia o cabelo desde os 13 anos e que quem o modela é a “mão livre do mercado”. É seguidor dos fundadores de Liberland, um território nos Bálcãs em que há um experimento ultraliberal, não há Estado, o mercado regula os preços, a moeda pode ser qualquer uma. Milei usa bandeiras de Liberland em público e mesmo o uniforme do capitão Ancap, uma espécie de super-herói ultraliberal. Milei também canta e faz covers, tanto de cantores folclóricos argentinos como dos Rolling Stones.

Os meios internacionais têm gostado de reforçar o lado anedótico de Milei. Mas por trás disso está um plano delirante de governo. Milei quer dolarizar o país, o que a maioria dos economistas diz que é um despropósito. “É uma medida extrema, e posso entender que se busquem medidas extremas devido ao estado da nossa economia. É possível fazê-lo, na teoria, mas, na prática, seria muito difícil na Argentina de hoje, com a inflação que temos, com reservas negativas do Banco Central. Ou seja, para dolarizar teríamos de ter dólares, e não temos nada. Ao contrário, devemos”, conclui o professor Elizondo.

Depois, está o “plano motosserra”, que prevê um corte enorme de gastos, além dos ministérios. Milei pretende fechar meios de comunicação do Estado, privatizar várias empresas estatais e universidades. Também se mostra favorável à venda de órgãos, uma possível venda de crianças e a revogação da lei do aborto. Não por razões religiosas, mas porque, segundo ele, no ultraliberalismo todos devem ter toda a liberdade, e um procedimento como esse acabaria atentando contra a liberdade — dos fetos. “Ele conversa com uma Argentina muito visceral e raivosa, que existe, que despreza o conhecimento e a cultura. É um agitador extremista”, diz Federico Finchelstein, historiador argentino que dá aulas na New School for Social Research.

E, elemento fundamental, esses jovens que cresceram no kirchnerismo praticamente só conviveram com esse modelo a vida toda e votam com raiva, desesperançados com a política, preocupados com seu futuro. A bronca desses argentinos se estende ao Banco Central e aos pesos, daí as ideias agora popularizadas por Milei de que os pesos são “excremento”, e que o Banco Central deve ser substituído por um sistema em que os bancos se regulem sozinhos.

Na plateia do Movistar Arena, a maioria dos apoiadores era da faixa que compõe sua principal base de apoio, jovens entre 16 e 30 anos, a maioria rapazes, segundo dados da Giaccobe & Associados. No meio deles, havia também meninas com as faixas e camisetas afirmando que eram libertárias antifeminismo. Um grupo de rapazes venezuelanos levava uma bandeira de seu país. Yairo Robles, 22, disse: “Saí da Venezuela andando, tomei vários ônibus, estou aqui com minha família há 4 anos. O horror que eu vivi lá não quero para a Argentina, país que me acolheu”.

“Eu nasci e cresci no kirchnerismo, depois veio Macri, que não fez nada, e agora estamos presos no kirchnerismo de novo. Eu até curtia as pautas progressistas, fui a atos pró-aborto com minhas amigas quando esteve em votação. Agora não quero mais saber desse blablablá identitário. Estou preocupado com meu futuro, quero meu salário em dólares e a aposentadoria dos meus pais também", diz Max Correa, 20, que veio de La Matanza, o departamento da área metropolitana de Buenos Aires até hoje mais vinculado ao peronismo e o mais populoso, com 1 milhão de habitantes. Também se trata de uma das localidades mais pobres da área metropolitana da capital argentina.

Sem passado, sem futuro

Outro fator que explica essa fascinação dos jovens com Milei tem a ver com o passar do tempo e o desconhecimento da história, acrescenta Merke. “Os jovens de hoje não são capazes de dar uma opinião crítica e informada sobre quem foi Perón, porque já se vão 40 anos de sua morte e só são reproduzidas hoje frases feitas e de propaganda, em geral negativas, sobre ele. É um efeito das redes sociais também. Essa nova geração está cansada do termo ‘direitos humanos’, porque a extrema direita foi muito eficaz em relacionar esse assunto com o ‘comunismo’.”

Milei, e mais enfaticamente sua vice, Victoria Villarroel, são favoráveis a anistiar repressores, e interromper a verba que é concedida às Mães e Avós da Praça de Maio, que seguem trabalhando e encontrando desaparecidos até hoje. Villarroel tem uma fundação que se dedica a reivindicar reparação financeira a famílias vítimas dos montoneros e do ERP (Exército Revolucionário do Povo). A Argentina, como signatária do Estatuto de Roma, reconhece como crimes de lesa humanidade, ou seja, que não podem prescrever, apenas aqueles praticados por Estados. Os crimes cometidos pelas guerrilhas, ou seja, por civis, já prescreveram.

O governo brasileiro não esconde que se preocupa com uma provável eleição de Milei na Argentina. Há algumas semanas, recebeu o candidato governista, Sergio Massa, em Brasília, e pediu que ele “lutasse até o fim para derrotar Milei”. Lula tem uma amizade pessoal com Fernández, que chegou a visitá-lo na prisão de Curitiba. Fernández também esteve no Brasil algumas vezes neste ano. A pauta, no caso, estava mais centrada no pedido ao Brasil para que intercedesse a favor da Argentina nos fóruns internacionais, buscando um alívio para que o FMI fosse menos duro na cobrança da dívida que o país tem com o Fundo.

Uma eventual eleição de Milei, segundo ele mesmo já anunciou, significa a saída da Argentina do Mercosul e do Acordo de Paris. Ou seja, isolaria a Argentina e colocaria em risco o acordo Mercosul-União Europeia, hoje no limbo por conta das exigências extras que o bloco europeu fez ao do Cone Sul no quesito ambiental. Milei já disse que o aquecimento global, neste momento, é apenas o pico de um ciclo, que vai passar sem a necessidade de políticas públicas.

Quanto às muitas comparações que se fazem entre Jair Bolsonaro e Milei, é certo que ambos têm muitas semelhanças, mas talvez o mesmo número também de diferenças. Bolsonaro tem formação precária, Milei é um economista com dois mestrados e livros publicados. Bolsonaro tem um vínculo forte com os militares e com religiosos, Milei, não. Bolsonaro defende a “família”, Milei não vê sua necessidade, inclusive brigou com os pais e nunca se casou.

Obviamente, são ambos de extrema direita, defendem a venda livre de armas, são autoritários e populistas. Se aqui teremos uma espécie de efeito Orloff (eu sou você amanhã, lembram do comercial?), ainda se está por ver. Para Federico Merke, “há muito mais capacidade de dano ao país e à democracia em Milei do que o Brasil teve com Bolsonaro. No Brasil, há mais freios ao presidente, há mais independência de poderes. Na Argentina, essas coisas são mais difíceis, a centralização do poder do Executivo é maior”.

Indagada sobre se a saída do país do acordo não travaria os tratados de livre-comércio que a Argentina tanto quer fazer, por fora do Mercosul, Diana Mondino, escolhida por Milei para ser sua ministra das Relações Exteriores, disse: “Queremos comercializar com todos os países, e não vamos nos ater na política desses blocos que colocam todas as regras. Qualquer país pode escolher se quer mais comércio ou se quer preservar o ambiente. Nós queremos a Argentina mais aberta ao mundo possível”.

O risco-Milei, no mínimo, obriga os demais partidos a fazer uma autocrítica e significará que uma terceira força terá de ser absorvida na lógica do Congresso, embora ela deva ser minoritária. Como em outros países da América Latina neste momento, a relação de Milei com o Congresso promete ser difícil. Ele mesmo já aventou, por exemplo, que reformas importantes como a dolarização sejam levadas a referendo, sem passar pelo parlamento. Aí o empecilho será constitucional, porque a lei argentina não permite isso. O que quer que passe no domingo, a candidatura de Milei já mudou a política argentina.


*Sylvia Colombo é historiadora, jornalista especializada em América Latina, colunista da ‘Folha’ e vive em Buenos Aires. É autora de ‘O Ano da Cólera’

Seca na Amazônia: 2030 é hoje

A água a quase 40ºC está matando os botos. O Rio Negro está seco como não se via há 121 anos. A indústria e a logística locais estão paralisadas. A população, em perigo. Poderia ser roteiro de filme de fim do mundo, mas é só 2023 sendo 2023 — possivelmente o ano mais quente da história, certamente antecipando todas as previsões mais pessimistas da comunidade científica sobre o que aconteceria com o planeta se não nos mobilizássemos para salvá-lo. Uma dessas cientistas a soar o alarme é Patricia Pinho. Ela é coautora do relatório do Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas da ONU, aquele que estabeleceu o aumento de 1,5ºC na temperatura da Terra como o limite para as catástrofes causadas por eventos extremos.

Patricia, diretora do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), é categórica em afirmar que a ciência já consegue atribuir, com alta confiabilidade, os eventos extremos à ação do homem. “Mesmo a intensificação da magnitude e da frequência do El Niño”, pontua. Especialista em ecologia humana, ela aponta como os efeitos socioeconômicos da mudança climática atingem a todos. Mas, especialmente, às populações invisíveis. “Estamos todos sob a mesma tempestade, mas com barcos muito diferentes.” Confira os principais trechos da entrevista.

O que está acontecendo na Amazônia?
O que estamos observando é algo sobre o qual a comunidade científica já vem se debruçando e trazendo como evidência dos efeitos perversos da mudança do uso da terra: o desmatamento, a degradação da floresta e os impactos das altas emissões de gases de efeito estufa e consequente aumento da temperatura global. Temos agentes do âmbito nacional, estruturas políticas, institucionais, de governança e de desenvolvimento econômico que são pautados na ideia de remover a floresta para geração de renda e suposto crescimento econômico, em detrimento de uma floresta diversa, rica e habitada por povos e comunidades tradicionais, povos originários. Quando olhamos no âmbito das altas emissões, o IPCC, que é o Painel Intergovernamental para as Mudanças Climáticas, do qual eu faço parte, cita a Amazônia e o Ártico como a primeira das cinco razões para se preocupar com a mudança climática. Primeiro, pelo papel que eles exercem na regulação climática ecossistêmica, sobretudo no caso da Amazônia. Mas também pela vulnerabilidade desses ecossistemas às alterações da temperatura. O que se vê na Amazônia hoje é justamente uma antecipação do que a comunidade científica estava esperando a partir de 2030 ou 2040 se não houvesse um esforço global para reduzir emissões de gás de efeito estufa e sem estratégias de comando e controle para outro tipo de desenvolvimento econômico. Já se esperava que a Amazônia se tornasse essa região mais inclinada a sofrer grandes secas — assim como grandes inundações e queimadas, todos os extremos.

Já é possível afirmar com certeza que isso é causado pela ação humana?
A ciência da atribuição tem hoje alta confiabilidade de que essa perturbação, assim como as ondas de calor na América do Sul, é 100 vezes mais possível de ter ocorrido pela ação humana. É inequívoco o que a ciência diz sobre a contribuição histórica da emissão antropogênica na desestabilização do sistema terrestre, no envelope climático. O próprio El Niño, sua intensificação tanto na magnitude quanto na frequência, também é uma questão ampliada pela desestabilização do sistema terrestre. Por isso, é tão importante o que foi prescrito no Acordo de Paris, a intenção global de se limitar ou reduzir as emissões para que se consiga evitar perdas e danos tanto nos sistemas naturais como nos socioeconômicos. Em algumas regiões, sobretudo no Sul global, a capacidade de resposta é diminuída perante a crise climática. Nesse contexto, 1,5ºC, embora muitas discussões existam sobre esse ser um um número arbitrário, é um limite entre vida e morte para alguns ecossistemas, para pessoas, para regiões. Por exemplo, com 1,5ºC de aumento na temperatura global, temos alta confiabilidade de que 90% dos recifes de corais vão ser extintos. Já vimos que 2023 foi um ano extremamente quente, antecipando a chegada do que se esperava a partir de 2030.

O que se sabe sobre as consequências dessa seca histórica na Amazônia? 
Publiquei um artigo com o professor David Lapola, da Unicamp, considerando o efeito cascata dos impactos que as grandes secas provocam na Amazônia, projetando para 2030. Embora haja grandes incertezas nos modelos climáticos, a grande certeza é que os riscos, os custos econômicos e sociais, sobretudo na área da saúde, com doenças respiratórias, parasitárias, custo de internação, tudo isso vai aumentar, enquanto vão se perder serviços ecossistêmicos. Uma métrica mercadológica, por assim dizer, é o quanto se perderia de navegabilidade do Rio Negro. Projetamos que seria perdida em cerca de 10% a 30%. E isso aconteceu agora, em 2023. Há custos econômicos associados com esses eventos extremos. Para a Amazônia, com regiões remotas cujo acesso se dá no nível do rio, a mudança climática é ditada pelo regime hidrológico. Quando se perde o volume desses rios, a população fica ilhada, não tem condições de acesso a alimentos que venham de fora, o exercício da roça fica rompido, não há condições de irrigação. O déficit hídrico é gigante, porque a população não tem poço artesiano. Eles tomam aquela água barrenta. O pescado, algo super valioso para eles, transforma-se numa situação de vulnerabilidade pela alta mortandade dos peixes, já que a água não tem oxigênio. Muitos ficam sem acesso à energia, porque a maioria das comunidades e mesmo de municípios da Amazônia opera com gerador a diesel. As pessoas perdem o que pouco mantimento que ainda resta. E todo o acesso à saúde, que é sobretudo via barco, fica bloqueado.

Ou seja, a mudança climática atinge da grande indústria ao ribeirinho.
Costumo dizer que a seca é muito perversa, porque atinge diretamente a segurança alimentar de pessoas invisíveis. A mudança climática afeta todos, estamos embaixo da mesma tempestade. Mas navegamos com condições e barcos diferentes. Alguns vão muito antes porque têm menos capacidade de resposta, mas todos estão sofrendo as consequências. O Brasil esperou a crise chegar para poder mediar risco. E alguns riscos não vão ser tratados. A Floresta Amazônica não é substituível. Não é possível emular o que acontece ali com a ação humana. O papel da bomba biológica, ecológica e climática que é a biodiversidade da Amazônia, que é o relacionamento intrínseco da floresta e da cultura indígena, isso não se substitui. E isso tem de entrar nessa conta. Quando falamos de redução de riscos e vulnerabilidades e de implementar para ontem uma agenda de adaptação, é disso que se trata.

Um breve guia para entender a guerra entre Israel e Hamas

A guerra entre Israel e o Hamas reacendeu paixões e opiniões sobre direitos e a história de cada lado. Nas redes sociais, uma quantidade fenomenal de “especialistas” em Oriente Médio brotou do dia para a noite desde o trágico 7 de outubro. Leitor premium do Meio não cai nessa — prefere consultar os verdadeiros experts. Aqui está uma curadoria com alguns caminhos para você se informar muito bem sobre o que está acontecendo por lá e sobre como evitar entrar no ciclo de desinformação sobre o assunto.

Livros: A Economist e o Financial Times fizeram seleções de livros que explicam, de diferentes perspectivas e em variados momentos da História, os contextos dos países do Oriente Médio e do conflito entre eles. Para compreender o período entre 1914 e 1922, Paz e Guerra no Oriente Médio (Amazon), de David Fromkin, relata a queda do Império Otomano e a visão imperial do Ocidente na divisão do mundo árabe. Sem tradução em português, Enemies and Neighbours: Arabs and Jews in Palestine and Israel, 1917-2017 (Amazon), de Ian Black, cobre 100 anos de conflitos entre os vizinhos. Já em The Iron Cage: The Story of the Palestinian Struggle for Statehood (Amazon), também sem tradução, Rashid Kalid explora por que os palestinos fracassaram em construir seu próprio Estado. A Guerra do Yom Kipur é descrita, em detalhes, em Eighteen Days in October: The Yom Kippur War and How It Created the Modern Middle East (Amazon), de Uri Kaufmann. O professor Colin Shindler, de Cambridge, analisa o fortalecimento da direita israelense em The Rise of the Israeli Right: From Odessa to Hebron (Amazon). Notas sobre Gaza (Amazon), de Joe Sacco, é um livro em quadrinhos que narra o massacre israelense de 111 palestinos em Rafah, em 1956. E De Amor e Trevas (Amazon), de Amós Oz, é uma obra de memórias da infância do autor, com um tom crítico sobre como Israel conduziu sua relação com palestinos.

Mapas: Tendo 1918 como ponto de partida, a BBC Brasil apresentou, em vídeo e texto, oito mapas que buscam esclarecer as origens e o desenvolvimento do conflito na região e trouxe ainda uma explicação visual da situação em Gaza. A cobertura do Washington Post vem atualizando seus mapas conforme a guerra se desenrola, mostrando áreas de Gaza bombardeadas e cidades evacuadas ao Sul do Líbano. E o USA Today acrescenta imagens de satélite ao compilado de informações visuais sobre os confrontos.

Artigos: O Globo traz uma cronologia da criação de fronteiras e da noção de Estado nacional no Oriente Médio. O Guardian se dedicou a analisar a diplomacia de Joe Biden, Rishi Sunak, Olaf Scholz e Emmanuel Macron até aqui, apontando, entre os acertos, a disposição de Biden em reconhecer os erros dos EUA no pós-11 de Setembro; e nos erros a falta de perspectiva sobre como Israel vai lidar com o pós-guerra. A Foreign Affairs entra exatamente nesse ponto: “A aniquilação do Hamas será sangrenta, mas poderá proporcionar uma oportunidade fugaz para provocar uma nova situação em Gaza, melhor do que a que veio antes. Se terá valido a pena o sofrimento humano será debatido depois da guerra. Mas se Israel derrotar o Hamas, os Estados Unidos deverão trabalhar com potências regionais e internacionais para encontrar uma forma de transferir o controle de Gaza para a administração temporária das Nações Unidas”.

Cuidado com a desinformação: As redes sociais foram inundadas por notícias falsas e desinformação. O podcast O Assunto, do g1, falou com David Nemer, antropólogo da tecnologia e professor da Universidade da Virgínia (EUA), sobre os efeitos nefastos dessas mentiras, que estão provocando ondas de ódio contra judeus e palestinos. O Aos Fatos mostra como a rede X, de Elon Musk, tem favorecido perfis que já espalharam desinformação sobre a guerra. E o Vox lembra o método STIF, na sigla em inglês, para você aplicar se não quer espalhar conteúdo falso: “Pare, investigue a fonte, encontre a melhor cobertura e rastreie reivindicações, citações e mídia até o conteúdo original”.

E, para fechar, eis os links mais clicados pelos leitores essa semana:

1. X: A aterradora entrevista de médicos rodeados de corpos em Gaza. (Atenção: imagens fortes).

2. Congresso em Foco: Como cada parlamentar votou no relatório final da CPMI do 8 de Janeiro.

3. Panelinha: Bisteca grelhada com páprica e sálvia.

4. Cambly: Dois eBooks para ajudar o leitor do Meio a se preparar para entrevistas de emprego em inglês.

5. g1: Guia do Ministério da Justiça para ajudar pais a monitorar menores de idade na internet

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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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