‘O debate plural morreu’

O filósofo Pablo Ortellado examina, à luz do conflito entre Israel e Palestina, como a polarização, as guerras culturais e a lógica do engajamento exterminaram as nuances da política

A máxima de que guerras matam a verdade é incontestável e gasta ao ponto de se tornar um daqueles clichês inescapáveis sempre que se conflagra um novo conflito. Mas há uma outra vítima imaterial na trágica guerra entre Israel e Hamas e que já vinha moribunda há pelo menos uma década: a pluralidade. A adesão automática a um dos lados do confronto é o esperado de cada um. Se você é da esquerda, é pró-Palestina — e qualquer questionamento ao terrorismo do Hamas pode lhe custar popularidade e aceitação pelos pares ideológicos. Na direita, o apoio a Israel também é exigido incondicionalmente. E a lógica do engajamento, um tanto narcísica e ampliada pelos mecanismos das redes sociais, leva o sujeito a se entregar a essa visão de verdade única e impermeável.

Esse é o resultado de um processo mais longo, o da polarização política, cujo motor são as guerras culturais. Um dos maiores pesquisadores do assunto no Brasil é o filósofo Pablo Ortellado, professor de Gestão em Políticas Públicas da Universidade de São Paulo e colunista do Globo. “A polarização acerca do conflito entre Israel e Palestina é diferente. Está mais forte até do que em torno do aborto, que é altamente polarizante”, analisa. Uma das razões para isso é a leitura clara da esquerda de que há um opressor e um oprimido e isso escusaria qualquer reação do lado mais fraco. Conforme essa percepção de que o outro é ilegítimo vai se consolidando, a interlocução se inviabiliza. Ortellado enxerga uma saída. Ela passa pelo fomento à pluralidade dentro de cada campo ideológico. Confira os principais trechos da entrevista.

Você estuda o processo de polarização e das guerras culturais. O que é particular da polarização em torno da guerra entre Israel e Hamas?
Dessa vez é diferente pelo tamanho da reação que gerou — e isso obviamente tem a ver com o processo de polarização política. Se pegarmos as ondas das intifadas, não foi assim. A esquerda abraçou a causa palestina agora, mesmo com o primeiro movimento tendo sido tão fora das regras, numa ação obviamente terrorista orientada para alvos civis, e tão extremamente violenta e cruel. Quando pensamos nas imagens da primeira intifada, por exemplo, vem aquela memória das crianças e dos jovens atirando pedras em tanques. É muito diferente, inclusive simbolicamente, do que se viu no dia 7 de outubro, com motoqueiros invadindo Israel e metralhando pessoas a esmo. E foi muito diferente a reação também, que não aconteceu só em pequenos círculos de esquerda, mas foi abraçada por todo o campo. O processo de polarização política começa nos anos 2010, e cada país tem um gatilho que o dispara. A pergunta é por que esse episódio deflagrou um antagonismo maior do que a guerra da Ucrânia ou outros debates públicos relevantes. E eu acho que isso se deve ao fato de a relação Israel x Palestina ser lida pela esquerda como uma situação claramente opressora e colonial. Na leitura da esquerda, ela é uma série de opressões sobrepostas, que justificaria qualquer tipo de reação. E o fato de esse ato de suposta reação ter sido extremamente brutal deflagrou uma resposta violenta de quem se chocou com isso. Não apenas da direita, mas também de pessoas pouco politizadas, de quem está fora da polarização. Isso levou a um debate muito quente, pouquíssimo matizado. Essa polarização em torno do conflito é mais forte do que lulistas x bolsonaristas, do que a maioria dos debates de costumes que opõem conservadores e progressistas. Me parece mais forte até do que no debate em torno do aborto, que é altamente polarizante.

Isso passa pela conotação religiosa do conflito?
Tem esse elemento de que Israel nesse momento está sob Netanyahu, que é da extrema direita. Mas, por outro lado, os palestinos que atacaram não são a população civil palestina reagindo a tanques com pedras. O que aconteceu foi o Hamas, um grupo religioso teocrático, que internamente não abre nenhum espaço para a liberação feminina, etc. Então, tem esse elemento paradoxal de que o oprimido é um sujeito religioso altamente intolerante. Isso gera uma certa perplexidade em quem analisa essa situação. Tudo se escusa porque o que está movendo é o direito do oprimido. Essa é uma dinâmica que temos visto na polarização quando se fala da esquerda. Ações muito pouco razoáveis, um pouco abusivas, de atores políticos que são entendidos como oprimidos são escusadas nessa lógica. É o que o Wilson Gomes chama de “ética da inscrição”. Se você está inscrito no campo dos oprimidos, certas liberdades de ação lhe são conferidas e, por princípio, certas formas de agir são escusadas porque, por natureza, sua ação é uma reação e ela é, portanto, antiopressiva, liberatória.

Aqui entra a divisão moral entre a esquerda e a direita, certo? Quando isso contamina de vez a política?
A resposta simples é não sei, ninguém sabe. Mas a forma como eu entendo a origem disso é assim: o final dos anos 1980 e começo dos 1990 foi um momento de grande indistinção na política. Isso se deve ao fato de o orçamento público, em todos os lugares do mundo, estar muito engessado. Cada sistema — o de saúde, o educacional, o previdenciário —, com sua dinâmica própria, vai crescendo e mordendo cada vez mais os recursos. É o natural de sistemas que vão maturando. À medida que isso ocorre, a parte do orçamento público de uso discricionário, com o qual se pode fazer política para cá ou para lá, fica menor. Quando isso acontece, esquerda e direita ficam muito semelhantes. Foi o que vimos nos anos 1990 com o governo Fernando Henrique Cardoso; com Tony Blair, na Inglaterra; com Bill Clinton, nos Estados Unidos, etc. Tornou-se completamente indistinto um cara de esquerda e um de direita, eles fazem mais ou menos o mesmo tipo de governo na prática. Só muda um pouco de coloração. Isso gera uma crise no sistema. A participação dos eleitores começa a cair, mesmo onde o voto é obrigatório. As pessoas vão consumindo menos jornais, filiando-se menos a partidos políticos, a confiança nos partidos cai.

E como o debate moral se infiltra?
O sistema político reage a essa crise, que é de legitimidade, absorvendo da sociedade civil uma disputa que estava havendo entre progressistas e conservadores em torno dos costumes. Essa disputa não estava acontecendo tanto nos partidos políticos, estava na sociedade, e tem a ver com os novos movimentos sociais dos anos 1970: o movimento negro, o feminista e o gay, que era como se chamava o LGBTQIA+. Esses três movimentos estavam mais preocupados em mudar as relações entre homens e mulheres, entre pessoas heteronormativas e homoafetivas, entre brancos e negros. A ideia era mais mudar as relações interpessoais do que as leis, que mudariam por consequência. Os movimentos conseguem grandes avanços nos anos 1980, e nos 1990 esses avanços estão consolidados. Os conservadores acordam com uma geração de atraso, 20 anos depois. A reação são as guerras culturais: os conservadores, que eram maioria e não precisavam se organizar politicamente porque, digamos assim, havia um status quo conservador, acreditam que estão ficando minoritários na sociedade e que o progressismo tinha tomado as instituições de reprodução de valor. Estamos falando de universidades, meios de comunicação, artes, ONGs. Eles, então, pegam o último bastião das instituições de reprodução de valor, que são as igrejas, e fazem uma trincheira lá, de onde deflagram as guerras culturais. O sistema político percebe e captura isso para dentro da política partidária, institucional, e esse processo que era de indistinção, onde esquerda e direita eram praticamente a mesma coisa, se torna um processo de hiper diferenciação. Isto é a polarização política. Para reagir à sua crise de legitimidade por ser indistinta, a política se torna super diferenciada. Era um processo que estava acontecendo na sociedade civil e agora também acontece no sistema partidário, ele se combinam e se potencializam. A polarização política tem vários elementos, mas o motor são as guerras culturais.

Existe política hoje sem guerra cultural?
Existe, mas ela não é relevante. Por que a guerra cultural é inflamatória e útil para consertar a mazela do sistema político? Porque ela é moral, é basicamente uma disputa em torno de valores e visões morais de mundo, entre progressistas e conservadores. Nesses assuntos, basicamente, o que se entende é que o campo adversário é mau. Não é complexo. Não é uma disputa política na qual se considera o outro lado equivocado politicamente, que vai causar danos aos trabalhadores, como se fazia antigamente. São pessoas más, fascistas, que estão promovendo racismo, a opressão das mulheres. Ou, na mão contrária, pessoas más que estão promovendo a destruição da família. Ela não admite pontos intermediários. Na política que era disputa entre liberalismo e socialismo, eles estão lá. Existem os que querem privatizar a Sabesp e os que querem que ela seja controlada pelo Estado — e uma gama de soluções intermediárias. Posso pegar a Sabesp e vender ações mantendo o controle estatal, por exemplo. Posso privatizar, mas ter uma agência reguladora forte. No aborto, as soluções intermediárias até existem, mas não são aceitáveis pelas partes. A política se transforma num conflito entre bem e mal, em que a única solução é a extração do outro.

Com a polarização, o outro não tem legitimidade e tem de ser retirado do jogo político. Uma democracia plena não existe com essa pessoa porque ela está além do razoável, do aceitável.

Você fez pesquisa de campo na Argentina. Como Javier Milei se encaixa nesse fenômeno?
A ascensão do Milei é o processo de maturação da polarização da Argentina, que é anterior à brasileira. Lá, a polarização era entre o peronismo de esquerda e o antiperonismo. O Milei é um foguete que está renovando o campo antiperonista. O que ele faz com o macrismo é análogo ao que o bolsonaroismo fez com o PSDB. Com uma diferença: o elemento econômico, que tem muita centralidade para Milei, ao passo que aqui as guerras culturais e o conservadorismo moral eram centrais no bolsonarismo. Mas a pesquisa que fizemos lá mostrou altíssima adesão entre a militância mileísta ao conservadorismo moral. Então, embora o centro da campanha seja a economia, com uma promessa de mudança, na periferia desse pacote estão os elementos das guerras culturais, muito bem marcados. Milei está falando, ainda que nas bordas, que vai rever a legalização do aborto, acabar com a educação sexual nas escolas, rever a as estimativas de mortos na ditadura, defender posse de armas para cidadãos de bem. Isso ainda não está tão impregnado na população geral argentina, pelo que mostram algumas pesquisas. Mas, se de fato o paralelo entre Brasil e Argentina for verdadeiro, é uma questão de tempo.

A polarização também produz alianças inesperadas, como de nacionalistas à esquerda e à direita contra privatizações. Ou da extrema direita religiosa pró-Israel com supremacistas brancos.
Sim, mas esses são movimentos marginais. O jogo é muito preto no branco e esse é justamente o problema. Se você é de esquerda tem de ser pró-Palestina, e se você é de direita é pró-Israel e ponto. Isso não era assim historicamente. Não era tão claro. Havia uma esquerda israelense, e críticas da esquerda a certas correntes do movimento de libertação da Palestina. Havia um debate mais plural, que morreu. Ele foi assimilado por uma lógica moral. É difícil encontrar nuance no debate público, porque ela não gera entusiasmo militante. A dinâmica das redes valoriza o engajamento, que gera compartilhamento, que, por sua vez, gera super exposição. As vozes que geram engajamento são ampliadas. As que não geram desaparecem no debate público e ele se torna polarizado.

Foram as redes sociais que mataram a pluralidade?
Este é um processo que não é causado pelas mídias sociais, mas que é consolidado, talvez até ampliado por elas, por esse papel que o compartilhamento tem. Tem muita pesquisa mostrando que compartilhamento está associado com emoções fortes, em particular com a indignação. Conteúdos que geram reflexão não fazem a pessoa apertar o botão de compartilhar. Há também uma linguagem narcisista, porque isso se combinou com outras tendências culturais contemporâneas, na qual a linguagem da política é uma linguagem de exibição das suas virtudes morais. Na verdade, a nuance não é boa porque compromete sua reputação. Você não quer discutir, mas, sim, exibir as suas qualidades morais e conseguir validação social para elas. Quando você coloca em questão uma coisa que é consenso na sua comunidade, perde um pedaço dessa validação moral. São muitos os desestímulos, numa cultura narcisista onde as pessoas ficam se exibindo nas redes, para pensar, discutir. Você perde popularidade, e essa é a moeda do jogo.

O caminho para diminuir a polarização é assumir a discussão moral como parte da política ou tirá-la do debate?
O desafio é reconhecer a legitimidade do adversário e tornar mais plurais e mais contraditórias as posições dentro de cada campo. Essa é a saída. É preciso reconhecer que o outro lado está de boa-fé e faz parte do jogo político. Vamos supor que eu considere que os bolsonaristas são ilegítimos, porque são fascistas. O que eu vou fazer com isso? Caçar o direito de eles se organizarem politicamente? Proibir de estarem nas redes? Prender? Matar? O que eu tiro dessa ideia de exclusão, de ilegitimidade de um campo político tão grande? Ainda que consideremos que sejam “apenas” 15% dos brasileiros. Isso são 30 milhões de pessoas. Não existe solução para o problema democrático brasileiro, e de todos os países, que não passe por reconhecer a legitimidade do outro. É preciso construir um processo de resgate da democracia, porque o que é ela que está em crise, é a ideia de convívio e de pluralidade. Isso não significa caminhar para o centro.

É preciso ter mais formas de ser de direita e mais formas de ser de esquerda, que embaralhem um pouco esse jogo, e que todas elas reconheçam um certo conjunto de regras e se autocontenham pra nunca sair dessas regras democráticas.

O que cada campo ideológico pode fazer?
Do ponto de vista da esquerda, é preciso reconhecer que o bolsonarismo nasce de preocupações legítimas sobre o papel da família, sobre as mudanças rápidas nos costumes. Quando reconhecemos a natureza dessas preocupações, reconhecemos sua legitimidade. Também é preciso um processo de autocrítica na esquerda, em que um monte de pressupostos assumidos automaticamente por conta das dinâmicas da polarização precisam ser questionados. Não existe essa unicidade, essa tomada de posição automática. Dá para fazer isso com o Hamas, com o Lula, com os movimentos sociais. À medida que se faz isso, vai se tentando gerar um pouco de diversidade e pluralidade dentro do seu campo. A responsabilidade de quem atua no campo da esquerda é basicamente criticar a esquerda. Não porque você quer promover a direita. É para a esquerda ser mais saudável. Assim como os atores da direita precisam criticar a direita.

Parte do bolsonarismo se mostrou disposta a jogar fora das regras. Um aumento da racionalidade na esquerda poderia retroalimentar a racionalidade nessa parte da direita?
Eu não chamaria de racionalidade. Talvez de razoabilidade. E, sim, tem que começar de algum jeito. Não há mais diálogo entre os campos políticos. É impossível colocar bolsonaristas e pessoas de esquerda para conversar. Posso dizer que tentei muito. Isso tem de partir de alguém dentro do debate político. Não dá para combinar esse jogo com os dois lados, porque não existe mais diálogo entre eles. Então, você tem que começar. Você convida o outro campo, por uma espécie de generosidade na qual você, enquanto um membro atuante do seu campo político, aponta o que acha que está errado do seu lado. Apoiar o Hamas está fora do jogo político, isso aqui não é aceitável. E convida o outro lado a dar passos semelhantes. Isso não é dar passos ao centro, é uma autocontenção que vai permitir que o debate no seu campo político seja mais saudável, plural. Não que o centro não seja legítimo. Mas a solução não é necessariamente o centro. É o processo de autocontenção em que se respeitam as regras do jogo e se promove a pluralidade no seu campo, estimulando o outro campo pelo exemplo.

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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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