Lula e o judiciarismo de coalizão

Diante de um Congresso hostil e indócil, que praticamente inviabiliza a governabilidade, o presidente busca numa ponta da Praça dos Três Poderes o que não tem na outra

A cada vez que se indica ou se pretende indicar um ministro do Supremo Tribunal Federal, repete-se o monótono ritual da opinião pública de avaliar se os eventuais candidatos preenchem o critério de notório saber estabelecido desde a Constituição de 1891. Sim, embora as duas constituições tenham quase um século de distância, o requisito foi repetido sempre nos mesmos termos. Há um século era mais fácil verificar sua presença ou ausência. O Brasil tinha 14 milhões de habitantes. Os bacharéis em direito saíam de apenas duas faculdades, a de São Paulo e do Recife. Todo mundo se conhecia. O positivismo jurídico da época supunha uma distinção mais clara entre direito e política como exercício de atividades diferentes, aquele vinculado à lei, este discricionário. Mas eram as mesmas pessoas que exerciam o direito e o poder. Quase todos os políticos eram bacharéis.

Os ministros do STF indicados pelo presidente da República saíam da magistratura, das grandes bancas de advocacia, do Ministério Público, dos docentes das faculdades, mas também da política. Foram ministros do STF da Primeira República ex-senadores como Manuel Murtinho (GO), João Barbalho (PE) e Amaro Cavalcanti (RN); ex-governadores como Anfilófio de Carvalho (AL) e Alberto Torres (RJ); e ex-ministros da Justiça, como também haviam sido Amaro Cavalcanti e Alberto Torres, mas também Epitácio Pessoa. Este último, depois que deixou o Supremo, virou senador (PB), e depois presidente da República. Havia também professores de direito puro sangue, como Pedro Lessa (SP), e outros, que cumulavam cargos de deputados, como Herculano de Freitas (SP). Ter carreira política não era exceção: era regra. Não impedia que os nomeados fossem considerados como dotados de notório saber. Exceto quando não eram bacharéis em direito: médicos como Barata Ribeiro, ou militares. Casos únicos na história em que o Senado recusou os indicados. Houve também o caso de Pedro Mibieli, que não recebeu o voto de Rui Barbosa, senador, por não preencher o requisito de reputação ilibada.

Hoje, tempo em que a comunidade jurídica aumentou barbaramente, é bem mais difícil saber o que seja notório saber jurídico. Há quem entenda que a notoriedade dependa de graus acadêmicos, ou de destaque na profissão. Na prática, o Senado adotou desde sempre um critério governista: qualquer bacharel indicado pelo presidente possui presunção de notório. Para tanto contribui também o lobby dos advogados e magistrados sem doutorado, o que não é mau, porque reduz a quantidade de teses plagiadas e compradas, que abundam nessa seara. Ultimamente, acrescentou uma exigência: que seja garantista, ou seja, que garanta vida boa para os congressistas enroscados com a Justiça.

Não é de se esperar ingenuamente que o número de indicações de juristas com experiência política se reduza hoje, quando o STF se tornou o tribunal mais poderoso do mundo.

Para tanto contribuiu tanto a fé que nele foi depositada pelos constituintes de 1987-1988 quanto o estranho desenho constitucional que lhe conferiram, levando-o a acumular três funções diferentes: funções jurisdicionais de corte constitucional europeia (controle concentrado de constitucionalidade), de suprema corte americana (controle incidental de constitucionalidade e corte recursal de última instância) e de tribunal penal de toda a aristocracia política do país. Na prática ele exerce ainda uma quarta função, via Conselho Nacional de Justiça, que é a de servir de corregedoria da magistratura do país inteiro. Tribunal de poderes imensos, que bancou na década passada uma revolução judiciarista que dizimou a política brasileira a título de livrá-la da corrupção, concorrendo para provocar uma crise de legitimidade institucional que ajudou a eleger Bolsonaro como presidente. Tribunal que, na sequência, ameaçado de ser devorado pelas feras que ajudou a soltar, desfez tudo o que fizera para resistir ao “golpismo nosso de cada dia” do populismo reacionário e teve seu edifício invadido por uma horda de fascistóides golpistas.

Por trás das queixas por nomeações técnicas para o STF, está a fantasia de que seria possível perpetuar o perfil das nomeações menos politicamente interessadas feitas pelo próprio PT antes da “revolução judiciarista” que fez do tribunal o protagonista da vida brasileira com ministros de perfil liberal democrata ou republicano como Joaquim Barbosa, Luís Roberto Barroso e Cármen Lúcia. Mesma lógica que orientava a obediência às listas tríplices oferecidas pela associação de procuradores federais para a escolha do procurador-geral da República. Essas nomeações só eram possíveis na medida em que os presidentes da república e seus assessores jurídicos não tinham percepção da centralidade adquirida pela Corte e pelo MPF, apostavam em perfis de professores progressistas como forma de aperfeiçoamento institucional. Foi a única época do STF e da PGR em que isso aconteceu.

Agora, porém, esse parêntese histórico desapareceu. A experiência dos últimos dez anos demonstrou a absoluta centralidade política da Corte para o funcionamento e equilíbrio sistêmico. Ao mesmo tempo, emergiu um problema magno e inédito, que consiste em como enquadrar o STF em um novo modelo de governabilidade. Modelos de governabilidade podem ser definidos como conjuntos de convenções e padrões de comportamento institucional capaz de conferir previsibilidade e estabilidade ao sistema político, dentro dos parâmetros oferecidos pela Constituição. Quando um regime de governabilidade entra em crise, a instabilidade confere a tônica da política, como se percebe do Brasil da república de 1946 e nos últimos dez anos. Na história brasileira, houve três famosos modelos de governabilidade: o regressista ou saquarema, que organizou o Brasil independente no império; a política dos governadores, depois complementada pela do café com leite, que estabilizou a república velha; e o presidencialismo de coalizão que deu uma rotina à república de 1988. Nenhum deles incluía o STF, que não tinha relevância política. Ao contrário: a Corte tinha um histórico de não ter decisões acatadas quando “desobedecia” ao governo, com direito a aposentadoria compulsória dos ministros decretada pelas ditaduras.

Lula se vê às voltas com esse desafio duplo. Não só o parlamentarismo bastardo e orçamentívero do Congresso inviabiliza um presidencialismo de coalizão nos antigos termos como nenhum eventual modelo novo poderá ter êxito sem inserir o hoje poderoso STF na equação.

Aqui não há espaço para uma restauração, ou seja, os estilos dos governos passados de Lula I e II não servem para a conduta do presente. Tem sido a necessidade prática de buscar alternativas a um congresso hostil ou indócil que tem levado Lula a tentar costurar com os ministros Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes uma espécie de judiciarismo de coalizão, que lhe dê desta ponta da Praça dos Três Poderes um apoio e uma boa vontade que lhe têm faltado na outra. Daí o pacote que inclui a indicação de Flávio Dino para o STF, nome de relevância política, e a de Paulo Gonet para a PGR, abençoada pelos dois juízes protagonistas em luta pela preservação das prerrogativas do STF contra as investidas daquele mesmo congresso. O perfil político de Dino, ex-governador, ex-senador e ex-magistrado, ao contrário do que diz muita gente desavisada ou ignorante, se enquadra aliás nas melhores tradições de notório saber jurídico do STF. Certamente muito mais do que o de Cristiano Zanin, cuja indicação parece se ter dado também como fruto do capricho de humilhar Sergio Moro.

Nesse contexto crítico de busca pelo Executivo de uma governabilidade perdida, os liberais democratas e a esquerda identitária, feminista e negra, podem chiar à vontade. Se Lula tiver um candidato negro ou uma candidata mulher de sua alta confiança e com cacife para se encaixar no jogo do judiciarismo de coalizão, tanto melhor. Se não tiver, paciência. Terão de se satisfazer com cargos menores em ministérios e na defensoria pública. Questão de prioridade. O tempo das nomeações inocentes terminou.

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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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