O fantasma do poder moderador

Por mais que tentem ressuscitá-lo, nem o Supremo, nem o presidente —e muito menos as Forças Armadas — podem ser qualificados como poderes moderadores à luz da Constituição

A construção do Estado nos países europeus se deu em torno da figura o rei, que concentrava em sua pessoa a soberania monárquica. Nas repúblicas americanas, aquela tarefa foi mais difícil porque a lógica autoritária, que impunha concentrar o poder em torno do presidente na capital do país, era desmentida por constituições liberais que preconizavam sua dispersão em benefício do legislativo, do judiciário e das províncias. Agravava a tarefa sua insuficiente legitimidade em um mundo como o da América ibérica do século 19, no qual já não podia haver a legitimação tradicional do monarca absoluto, mas ainda não se desenvolvera a legitimidade puramente racional-legal do presidente. Dessa tensão decorreu a constante instabilidade política e constitucional do século 19 nas repúblicas vizinhas. O Brasil discrepou nesse contexto por ter construído seu Estado sob o regime de uma monarquia constitucional que, reconhecendo a soberania da nação, manteve como seu primeiro representante o herdeiro tradicional da Coroa. A conciliação tornou comparativamente menos traumática a transição para o Estado independente.

A doutrina do poder moderador amadureceu ao longo do processo revolucionário francês, marcado pela instabilidade, pela violência e pelo autoritarismo. Seu principal teórico foi o liberal suíço Benjamin Constant. Ele defendia que a estabilidade constitucional dependia da capacidade das instituições se adaptarem às flutuações e evoluções da opinião pública. Daí a necessidade de um poder neutro, preservador ou moderador. Constant atribuía a estabilidade da Inglaterra ao papel arbitral exercido pelo rei constitucional. Quando se entrechocassem ou se entrevassem, os poderes contariam com uma força exterior capaz de reconduzi-los aos seus lugares, na forma de um órgão imparcial de fiscalização que conferisse visibilidade reflexiva à soberania nacional. Este poder concentraria os mecanismos de freios e contrapesos que, na teoria de Montesquieu, eram empregados pelos próprios poderes uns contra os outros: o direito de veto, a dissolução da câmara baixa, a graça, a demissão e nomeação de ministros, etc. O príncipe precisava restringir-se ao papel de superintendente do sistema, figurando de chefe do Executivo, mas deixando a administração prática nas mãos de seus secretários de Estado. Era nessa divisão entre o Poder Executivo e o Moderador, entre o governo e a instância arbitral, que para Constant residia “a chave de toda a organização política”.

A Constituição do Império de 25 de março de 1824, redigida por Carneiro de Campos, recepcionou formalmente a doutrina de Constant. O exercício do Poder Moderador foi atribuído privativamente ao imperador, como “Chefe Supremo da Nação e seu Primeiro Representante”, para que velasse sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos Poderes (art. 98). Há quem diga que a transposição teria promovido uma “constitucionalização do absolutismo”. A questão é mais complexa. A Constituição não concedia ao imperador nada que outras constituições da época já não concedessem a seus monarcas debaixo da rubrica do Poder Executivo. A originalidade estava noutro lugar. Enquanto Constant qualificara a distinção entre o Poder Moderador e o Executivo “a chave de toda a organização política”, no art. 98 da Constituição “a chave” se tornava o próprio Poder Moderador, na qualidade de primeiro representante da soberania da nação. Embora efetuasse uma importação juridicamente fiel e inofensiva, Carneiro a compensava com uma doutrina que legitimava, se necessário, o governo pessoal da Coroa, indispensável à constituição de um novo Império.

Daí que surgiriam ao longo do tempo duas formas de interpretar o papel constitucional do Poder Moderador: ou como puro árbitro do sistema, à maneira de Constant (interpretação liberal), ou como árbitro e governante ao mesmo tempo, à maneira dos monarquianos (interpretação conservadora).

A dinâmica do Poder Moderador no reinado de dom Pedro II seguiu o parâmetro do governo parlamentar oitocentista de todas as monarquias europeias da época. Sua principal função era garantir a estabilidade do sistema representativo em um quadro de legitimidade precária, evitando o monopólio permanente dos postos governativos e administrativos por um único partido: “Não sou de nenhum dos partidos para que todos apoiem nossas instituições”, escrevia o imperador em seu diário. “Apenas os modero, como permitem as circunstâncias.” Enquanto isso, os partidos disputavam a interpretação da Constituição no debate político e jurídico, conforme suas respectivas ideologias e projetos políticos, para defender como deveria agir o Poder Moderador.

Liberais como Zacarias de Góis e Rui Barbosa queriam transformar o governo parlamentar em parlamentarista, fazendo depender as atribuições do Poder Moderador somente ao ministério, considerado expressão exclusiva da vontade da nação representada pela maioria da Câmara dos Deputados. O rei devia reinar, mas não governar. Já conservadores como o visconde do Uruguai e Brás Florentino se opunham a tal pretensão, por diversos motivos. Criticavam a política partidária como demagógica e irresponsável, movida apenas pelos interesses, opiniões e paixões. O parlamentarismo desejado pelos liberais não passava de subterfúgio para fazer depender o fiscal do fiscalizado e colocar a Coroa debaixo da absoluta dependência dos partidos. Era preciso que a Coroa continuasse sobranceira às facções, fazendo prevalecer o interesse nacional. O rei deveria reinar, governar e até administrar.

A experiência do Poder Moderador cristalizou no imaginário a suposição de que, em algum nível, o chefe do Estado ou alguma outra autoridade na cúpula do Estado deveria representar a unidade do corpo político e em nome dele preservar o equilíbrio constitucional, político e social da nação. Esse imaginário sobreviveu. Adentrou a República desde o seu primeiro dia, a despeito de jamais ter voltado a consagrar explicitamente um quarto poder. Entrou, como quisera originalmente Constant, na forma de uma doutrina. Herdeiros da interpretação constitucional de Zacarias, liberais como Rui Barbosa e Pedro Lessa reivindicariam para o Supremo Tribunal Federal o papel prático de poder moderador da ordem republicana, encarregado de zelar pela efetividade dos valores republicanos, liberais e democráticos plasmados na Constituição. À luz da interpretação conservadora do visconde do Uruguai, porém, militares como Juarez Távora e Gois Monteiro também reivindicaram para as Forças Armadas, responsáveis pelo advento do novo regime, o direito de tutelar e intervir sempre que lhes parecesse que o sistema político estivesse a colapsar debaixo da ação de forças subversivas para a segurança nacional.

Esse embate entre o judiciarismo de um projeto de república democrática e o militarismo de um projeto autoritário nacionalista, que se julgava superado depois de um século de República, reapareceu na atualidade com toda a sua dramaticidade.

Mais: reapareceu com o militarismo aliado ao resgate inédito por parte de um presidente da República de extrema-direita de uma concepção reacionária de poder moderador. Deflagrada a partir do controverso impeachment da Dilma Rousseff, a crise constitucional do regime democrático atingiu seu ápice quando o presidente Jair Bolsonaro e seu gabinete militar confrontaram o Supremo Tribunal. Ameaçando descumprir decisões judiciais a pretexto de que seriam expressivas de um “ativismo judiciário”, declararam que as Forças Armadas deteriam um “poder moderador” que os autorizaria a intervir politicamente para preservar a divisão e a harmonia entre os poderes. De acordo com o jurista conservador Ives Gandra Martins, essa doutrina militarista das Forças Armadas como “poder moderador” encontraria respaldo no artigo 142 da Constituição de 1988.

Ao rechaçar semelhante doutrina, o então presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, acabou opondo-lhe outra, de teor judiciarista, segundo a qual o artigo 102 afirmaria que “o guardião da Constituição é o Supremo Tribunal Federal. Não é mais possível Forças Armadas como poder moderador”. Essa querela pública em torno do poder moderador republicano reflete ideologicamente uma disputa em torno de quem deve articular a visibilidade da unidade soberana em uma ordem pluralista. Os militaristas favorecem uma versão autoritária dessa articulação, enquanto os judiciaristas se inclinam por uma versão liberal. É a experiência histórica do Poder Moderador que projeta ainda hoje sua longa sombra sobre o constitucionalismo brasileiro.

A verdade, porém, é que nem o Supremo, nem o presidente — e muito menos as Forças Armadas — podem ser objetivamente qualificados como poderes moderadores à luz da Constituição de 1988. A criação de um poder moderador político identificado com o chefe de Estado e capaz de arbitrar crises políticas, assessorado pelo Conselho da República, dependeria da separação entre chefias de Estado e de governo e, portanto, do abandono do sistema presidencial de governo por outro, parlamentar ou semipresidencial. Também a existência de um poder moderador jurídico exigiria que o Supremo deixasse de ser um órgão de cúpula do Judiciário para se tornar formalmente um tribunal constitucional de estilo europeu, acima dos três Poderes. Até que aquelas reformas aconteçam, as pretensões “moderadoras” de militaristas e judiciaristas continuarão onde estiveram desde 1891: no plano da pura retórica e da ideologia.


*Cientista político, editor da revista Insight Inteligência e professor do IESP-UERJ

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