Os protestos contra Israel, Netanyahu e o antissemitismo

A experiência política diz que se deve prestar atenção em grandes ondas de protestos de jovens como os que acontecem nos Estados Unidos e ao redor do mundo

 

Uma nova onda de protestos estudantis se espalhou pelas universidades americanas. Iniciada em 18 de abril, na Universidade Columbia, em Nova York, aproxima-se da marca de 60 instituições envolvidas e mais de 2000 prisões realizadas. A repressão policial dentro dos campi tem sido violenta e sem concessões. Na era dos vídeos que se espalham de smartphone a smartphone em velocidade, alcance, intensidade e capilaridade sem precedentes, o mundo inteiro assiste a tudo.

Manifestações dessa dimensão costumam ter pautas difusas e, pelo menos até que uma hegemonia clara se estabeleça, um pouco de tudo, inclusive violência estudantil, discursos de ódio e alguma anarquia. Mas o cerne dos movimentos é claro para todo mundo. Protesta-se contra o apoio incondicional dos governos americanos a Israel, que já fazem parte dos automatismos políticos do país, contra as políticas do governo de Netanyahu que provocaram deliberadamente uma tragédia humanitária na Faixa de Gaza e contra investimentos americanos naquele país que estariam ajudando a financiar as sangrentas operações militares em curso.

A experiência política diz que se deve prestar atenção em grandes ondas de protestos de jovens. O acontecido por aqui em 2013 e 2014 deixou sequelas de que até hoje o sistema político não se recuperou. No caso de protestos em campi das universidades americanas, das manifestações contra a guerra do Vietnã nos anos 1960 às manifestações Black Lives Matter há poucos anos, é sempre prudente prestar atenção no que eles querem dizer e acompanhar os seus efeitos. Não apenas porque quando 50 universidades americanas entram em convulsão isso costuma influenciar enormemente estudantes do mundo inteiro, mas também porque protestos dessa natureza costumam refletir mudanças de sensibilidade e estabelecer um novo patamar nos acordos sociais e políticos. Ou, alternativamente, fixar um novo desacordo social. Os exemplos dos protestos contra a guerra ou o BLM corroboram a hipótese

Além do mais, não é só nas universidades americanas que coisas fora da ordem estão acontecendo como resultado da guerra entre Israel e Hamas e suas consequências sobre os civis palestinos. Por quase um semestre, nas universidades alemãs, reconhecidos santuários da liberdade de pensamento, palestras têm sido canceladas, exposições proibidas e a repressão policial não tem faltado. Algo inédito na vida universitária de um país em que o historicamente justificável viés pró-Israel tem estranhamente levado ao mais completo veto até mesmo às críticas às políticas de Netanyahu, às denúncias dos massacres em Gaza e, por fim, à mera presença física de bandeiras, professores e artistas palestinos ou pró-Palestina no espaço universitário.

É um fenômeno que se vem replicando em toda parte na Europa. Uma espécie de tolerância zero foi decretada contra qualquer manifestação que pareça ser pró-Palestina ou que pretenda repudiar a extrema violência com que foram tratados os palestinos durante as brutais campanhas de reação e retaliação do governo de Israel depois do ataque terrorista do Hamas do dia 7 de outubro do ano passado. Entende-se a atenção para evitar o antissemitismo, sempre latente, numa Europa que carrega consigo o remorso pelo Holocausto. Compreende-se o cuidado para evitar que a islamofobia, cada vez mais forte e mais perigosa na Europa, importe para o território europeu o conflito sangrento que se passa com seus vizinhos asiáticos do Mediterrâneo. Mas permitir que se proteste o quanto se queira pela brutalidade russa na Ucrânia, mas não pelo banho de sangue israelense na Faixa de Gaza, cria uma grave dissonância cognitiva e moral nos esclarecidos europeus que cedo ou tarde vai explodir de alguma forma.

Uma espécie de tolerância zero foi decretada contra qualquer manifestação que pareça ser pró-Palestina depois do ataque terrorista do Hamas.

Repressão, além disso, é sempre uma barragem provisória em sociedades que continuam a ser democráticas. Nos campi americanos é quase certo que não há melhor combustível para protestos de jovens do que uma boa repressão policial e as velhas reprovações de autoridades e políticos tradicionais. Aconteceu nos protestos que se espalharam pelo mundo a partir da Primavera Árabe de 2011, aconteceu durante as convulsões sociais do Black Lives Matter e acontecerá de novo. Prisões, banimentos, proibições e outras formas de intervenção violenta terão o efeito de multiplicar os eventos de protesto e de aumentar o número de manifestantes, se a política de resolver problemas políticos com polícia não for abandonada.

Efeitos dos protestos universitários já se fazem notar. Os americanos em geral são mais pró-Israel que pró-Palestina, numa proporção de 31% a 16%, mas uma pesquisa recente da Pew Research mostrou que na faixa de pessoas entre 18 e 29 anos, os mais jovens, as coisas já estão invertidas. O lado pró-Palestina está ganhando de 33 a 14%.

Alguma surpresa com isso? Há exatos sete meses, uma geração inteira recebe e consome vídeos, em redes sociais ou no jornalismo de televisão, retratando os horrores praticados pelo exército israelense contra a população civil de Gaza. Imaginem o impacto disso sobre os garotos na universidade, muitos dos quais provavelmente não tinham, no semestre passado, uma posição consolidada sobre o conflito entre israelenses e palestinos no Estado de Israel. Não importa se, no meio da enxurrada de vídeos por meio dos quais essas pessoas foram educadas politicamente sobre a situação palestina depois da guerra de retaliação de Netanyahu, exista mais propaganda do que informação. Não importa se foi o Hamas quem provocou esta situação e se as pessoas continuam desaprovando, com veemente indignação, os eventos do 7 de outubro. O que esses garotos e boa parte da população mundial têm fixado na própria mente são centenas de cenas de horrores provocados pelas chuvas de mísseis e pelos soldados israelenses nas cidades da Faixa de Gaza.

É tarde demais para apagar essas memórias e o que elas suscitam no nível dos sentimentos – fúria com Netanyahu, desprezo pelos israelenses, compaixão pelos palestinos – e das convicções. Quando há uma tragédia evitável, como guerras, o nosso mais natural instinto é identificar um culpado. Depois disso, identificar o que se possa fazer contra ele, além de desprezá-lo. É o que está acontecendo com essa parte da sociedade, jovens universitários, mais disponíveis ao engajamento em causas e com maiores crenças em sua capacidade de mudar o mundo.

Duas semanas atrás, vi um vídeo do premiê de Israel lamentando indignado a onda de manifestações nos campi americanos e deplorando o antissemitismo que as motiva. Eu entendo toda condenação a qualquer tipo de racismo, inclusive ao antissemitismo e à islamofobia que prosperam neste momento. Mas ver Netanyahu falar do antissemitismo dos jovens americanos como se as carnificinas que ele promove na Faixa de Gaza também não fossem um dos maiores promotores de sentimentos anti-israelenses no mundo hoje me parece inacreditável.

E quando falo de sentimentos anti-israelenses, me refiro a todos os elementos de um gradiente que pode ir da mera revolta contra o que o governo de Israel está fazendo contra os civis palestinos na Faixa de Gaza, passar pelo ódio a Israel como Estado e, enfim, chegar ao antissemitismo em sentido próprio. Muitas pessoas param no primeiro degrau, outras chegam ao segundo, mas, como é de se esperar, muitas outras pessoas fazem um caminho sem volta da indignação moral contra o que Bibi Netanyahu e a extrema-direita israelense têm feito com os palestinos de Gaza e da Cisjordânia ao ódio contra todos os israelenses e todos os judeus.

Isso é exorbitar, certamente. Mas, realisticamente falando, é esperável que tal coisa aconteça. É impossível imaginar que meninos que, por mais de um semestre, foram inundados por vídeos de carnificinas na Faixa de Gaza comandadas pelo governo de Netanyahu não sejam hoje mais propensos a odiar os israelenses e, infelizmente, os judeus, do que eram sete meses atrás.

Acreditar que o antissemitismo existe no mundo em um estoque estável e finito, e que os estudantes que protestam no mundo inteiro apenas ativaram um racismo antijudáico que já possuíam, independentemente do que acontece no mundo, é uma forma de pensar equivocada.

Acreditar que o antissemitismo existe no mundo em um estoque estável e finito, e que os estudantes apenas ativaram um racismo antijudáico é uma forma de pensar equivocada.

Primeiro, porque parece ignorar uma evidência sociológica básica sobre preconceitos sociais: raiva e ódio podem ser criados, alimentados e reproduzidos, inclusive por acontecimentos. Podem aparecer, crescer, diminuir, desaparecer, depende de quantos estão empenhados em cada uma dessas tarefas.

Ao sustentar ideia tão elementar, fui acusado de “antissemitismo básico”. De fato, há um dogma que diz que acusar os judeus de provocar o antissemitismo é típico do próprio antissemitismo; o culpado pelo antissemitismo é o próprio racista. De fato, acusar a vítima de causar a violência que sofreu é certamente mais um modo de “revitimizá-la”; é cognitiva e moralmente errado. Essa premissa, contudo, não deve nos levar ao ponto de achar que algumas pessoas já nascem odiando outros grupos, que o racismo é natural e não um produto social. Uma ideia absurda. Além disso, tem muita gente corrente rápido demais às acusações de antissemitismo simplesmente para não ouvir os argumentos que o outro lado tem e que são críticos à conduta do governo e do exército de Israel em Gaza.

Insisto, portanto, na tese. Netanyahu é hoje visto no mundo como um dos grandes “açougueiros” ou perpetradores de massacres da história e, como tal, é um dos maiores propagadores de antissemitismo. Muitas pessoas simplesmente não sabem ou não querem distinguir entre Netanyahu e o Estado de Israel e entre os israelenses e os judeus do mundo. E isso estimular toda a gama de sentimentos hostis que já comentei. Não é que eu queria que seja assim, são os fatos. Ou as pessoas pensam que se Bolsonaro tivesse invadido a Venezuela, ou deixado queimar a Amazônia ou morrer os Ianomâmis de fome e doença, e, além disso, o tivéssemos reeleito por mais uns dois mandatos, o racismo geográfico contra brasileiros não teria crescido assustadoramente no mundo?

Em segundo lugar, o raciocínio segundo o qual os novos antissemitas não foram provocados é uma tese ruim porque não implicam Bibi Netanyahu nem o morticínio na Faixa Gaza nos protestos na fúria e em toda a gama de sentimentos anti-Israel e antijudáico. Parece-me que excluir as responsabilidades do carniceiro Bibi Netanyahu e os horrores perpetrados pelo exército israelense na Faixa de Gaza no incremento do ódio a Israel e no estímulo ao antissemitismo é completamente injustificável.

Isso não significa aprovar nem uma ou coisa nem outra, apenas reconhecer que um semestre de exposição a vídeos de matanças e destruição é capaz de gerar convicções e criar sentimentos que, depois de sedimentados, tornam-se estáveis e difíceis de serem modificados. Uma geração inteira está mudando seus sentimentos sobre o Estado de Israel. E, o que é pior, uma parte dessa geração está mais próxima do antissemitismo do que jamais esteve. E Netanyahu tem uma grande responsabilidade nisso.


*Wilson Gomes é doutor em filosofia, professor titular da Universidade Federal da Bahia e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada".

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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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