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Edição de Sábado: Nada será como antes

Foto: Yan Boechat

O antigo blindado americano sacoleja como se não tivesse amortecedores enquanto cruza uma pequena ravina nas vastas planícies do deserto sírio. Dentro dele, quatro soldados das forças especiais do YPG, a milícia curda apoiada pela coalizão internacional liderada pelos Estados Unidos, estão atentos, ainda que pareçam tranquilos. Têm os rostos cobertos por balaclavas e o corpo protegido por coletes à prova de bala capazes de resistir aos disparos de rifles automáticos, como os quase onipresentes AK-47.

A tensão cresce quando nos aproximamos de uma típica vila síria nessa extensa região de deserto entre os rios Tigres e Eufrates, já quase na fronteira com o Iraque. O soldado responsável pela metralhadora .50 instalada no topo do Humvee se agita. Move a torre da esquerda para a direita, da direita para a esquerda, sempre acompanhando algum movimento que pareça suspeito. Os soldados dentro do velho blindado agora estão com os olhos diligentes nas pequenas janelas, tentando identificar alguma ameaça. Ao sairmos do vilarejo, um deles me diz: “Eles estão aqui, só estão esperando o momento de nos atacar”.

O vento frio, forte e carregado de umidade que sopra do Norte todo outono ainda não havia chegado quando saí em patrulha com os curdos. É um dia de sol alto, quente e duro, desses que fazem o deserto se parecer ainda mais ameaçador, mais inóspito. Por mais de três horas cruzamos vilas, estradas de chão, pequenas cidades em uma área em que o Estado Islâmico segue presente e ativo.

Patrulhas como essa têm sido alvos cada vez mais constantes das células do grupo terrorista. Neste ano de 2024, os ataques cresceram mais de 100% em comparação a 2023. “As coisas estão mudando, a guerra vai voltar”, me dizia Haval Guevara, o nome de guerra do comandante curdo que lidera a patrulha e que, duas semanas antes, havia perdido dois homens para um ataque surpresa do Estado Islâmico bem perto de onde estamos.

A tensão de Guevara e de outros comandantes militares que encontrei na Síria na minha última viagem ao país me surpreendeu. Havia anos não via tanta preocupação, tanto cuidado e tanto controle em Rojava, a grande área entre os bíblicos rios Eufrates e Tigre que os curdos passaram a controlar após derrotar o Estado Islâmico, com o apoio da coalizão. Em conversas informais regadas a chá preto e café árabe, muitos diziam-se apreensivos com a fraqueza do regime de Bashar al-Assad. “Aleppo vai ser atacada em breve, o Estado Islâmico vai se reorganizar, estamos diante de um momento em que tudo vai novamente mudar na Síria”, me dizia um oficial da inteligência curda, sem esconder o medo.

Mudança repentina

Tudo mudou. Talvez de forma mais rápida, mais brutal e inesperada do que qualquer um pudesse imaginar. Nesta última semana, rebeldes liderados por um antigo líder da al-Qaeda — e ex-aliado do Estado Islâmico — iniciaram uma ofensiva avassaladora sobre as áreas mais nobres controladas pelo regime de Assad. Em quatro dias, tomaram Aleppo. Essa é a segunda maior cidade síria, que ao longo dos últimos 13 anos de guerra civil jamais havia sido totalmente controlada por forças rebeldes.

Avançaram sem muita dificuldade sobre Hama, a quarta maior cidade do país. A conquista foi tão rápida que as forças do regime sírio foram incapazes, sequer, de retirar os aviões militares que estavam aguardando ordens de ataque na base aérea da cidade. Tanques, canhões, munição, tudo ficou para trás numa retirada aparentemente caótica das forças oficiais sírias. No momento em que escrevo este texto, os rebeldes estão nas portas de Homs, a terceira maior cidade da Síria e o mais importante entroncamento logístico do país, única conexão entre Damasco e os portos do Mar Mediterrâneo, porta de entrada de armas, equipamentos e apoio fundamentais para a sobrevivência do regime. Pelo ritmo do avanço dos rebeldes, no momento em que você lê esse texto a batalha por Homs já pode ter terminado.

Ao Sul de Damasco, outras fações rebeldes tentam controlar a cidade de Daara, berço dos protestos que tomaram o país durante a Primavera Árabe e que, de uma forma ou de outra, deram início à guerra civil em 2011. Lá, como em Hama e Aleppo, as informações que chegam, ainda confusas, ainda imprecisas, são de que as linhas de defesa do regime estão colapsando. A Oeste, na imensidão de deserto entre a cidade histórica de Palmira e Der Azzor, já perto da fronteira com o Iraque, o Estado Islâmico ressurgiu. O grupo anunciou que agora, depois de cinco anos, controla oficialmente um território.

Os curdos, por sua vez, decidiram avançar sobre áreas abandonadas pelo regime para tentar evitar a expansão territorial do Estado Islâmico ao Sul de Rojava. Ao mesmo tempo, estão sendo atacados por forças rebeldes apoiadas pela Turquia, que considera o YPG, o exército curdo, um grupo terrorista. É uma situação caótica, com dezenas de grupos, de interesses diversos, lutando para ocupar os vácuos de poder que surgiram. O caos voltou a reinar na Síria após oito anos de uma estabilidade frágil e, como se vê agora, falsa.

Nessa última década e meia, a Síria serviu como palco para vários atores do cenário geopolítico confrontarem-se, quase sempre de maneira indireta. De um lado estiveram Estados Unidos, Turquia, Israel e os países do Golfo apoiando, de forma quase sempre implícita, uma miríade de grupos rebeldes que tentavam derrubar Assad do poder. Do outro, Rússia, Irã, e em alguma medida o Iraque, vieram em socorro do ditador sírio nos momentos mais críticos da guerra civil. Diferentes países do chamado Sul global, Brasil incluso, prestaram também apoio não militar a Assad.

Após cinco anos de batalhas ferozes, centenas de milhares de mortos, a emergência do maior e mais cruel grupo terrorista da história contemporânea e seis milhões de refugiados, a guerra civil arrefeceu. Rússia e Irã, utilizando o Hezbollah, mostravam aos inimigos de Assad que não poupariam esforços para manter o líder sírio no poder. Ao mesmo tempo, os rebeldes que se opunham ao ditador passaram a abandonar as características seculares do início da Primavera Árabe e começaram a assumir características cada vez mais extremistas.

Logo, a maior parte da oposição a Assad era liderada por grupos jihadistas como a al-Qaeda, a Jabhat Al Nursa e o Estado Islâmico, todos designados como terroristas pelos Estados Unidos e a União Europeia. Com tantos massacres, tantas barbáries, tanta brutalidade, o apoio ocidental minguou e em 2017 a maior parte dos rebeldes fugiu para Idlib, a única província que não retornara ao controle de Assad por conta do apoio explícito da Turquia, que assumiu informalmente o controle da região com suas tropas.

Desde então, a guerra civil síria parecia fadada a um final sem grandes emoções. Assad consolidara o poder nas partes mais importante do país, mantinha um — temporário — acordo de cavalheiros com os curdos ao Leste e aguardava o momento em que Rússia e Turquia chegariam a termos para que Idlib voltasse ao regime. Internamente, nas áreas sob seu controle, mantinha a oposição reduzida ao medo com as tradicionais táticas de coerção de um governo ditatorial. Seguia a contar com o poderio militar russo e os milhares de combatentes experientes do Hezbollah para intimidar qualquer tentativa de expansão dos rebeldes, agora concentrados em uma pequena província do Norte. Do Irã vinham dinheiro, armas, influência e apoio militar estratégico. Mas então veio o ataque do Hamas a Israel, no dia 7 de outubro de 2023. E tudo começou a mudar.

A longa guerra entre Israel e Hamas e a consequente destruição de Gaza, com dezenas de milhares de civis mortos, enviou ondas de impacto por todo o Oriente Médio. Nenhum local foi tão afetado quanto o Líbano e nenhum grupo teve seu status quo tão ameaçado quanto o Hezbollah, aliado de primeira hora do Hamas nos combates que sucederam o ataque que deixou cerca de 1,2 mil israelenses mortos. Ao longo do último ano, Hezbollah e Israel entraram em uma escalada de confrontos que culminou em uma guerra aberta a partir de outubro. O grupo xiita financiado pelo Irã, que estabeleceu um estado paralelo no Líbano nas últimas quatro décadas, sofreu a maior derrota da sua história. O Irã, por sua vez, foi incapaz de socorrer seu aliado e se mostrou profundamente vulnerável aos ataques israelenses. Ao final de um ano de guerra, Israel e Estados Unidos reafirmaram sua força no Oriente Médio e enfraqueceram, como nunca, seus principais inimigos na região: o Irã, o Hezbollah e, por tabela, o regime de Assad, na Síria.

Os insurgentes

Qamishli é uma cidade que parece estar permanentemente à espera de que algo trágico e abrupto aconteça. Capital do proto-estado curdo que se estabeleceu no Leste da Síria após o início da guerra civil, há quase 15 anos, é estranhamente movimentada. Carros, pessoas, coisas, tudo aglomerado em pequenas ruelas poeirentas e sujas. O som permanente de imensos geradores de eletricidade a diesel faz com que as conversas sejam sempre dois tons acima do normal. É preciso gritar para ser ouvido em Qamishli. Há um cheiro de óleo queimado que impregna o ar, as roupas, a comida.

Apesar de controlada com mão de ferro pelo exército curdo, Qamishli guarda uma das maiores bases do regime de Assad dentro de Rojava. Em partes da cidade, as bandeiras tricolores da República Árabe Síria seguem a tremular no alto de prédios públicos. Soldados do regime comandam pontos de controle, uma base aérea e partes da cidade antiga. Nessas áreas, é ainda possível ver estátuas do pai de Assad, o ex-ditador sírio Hafez al-Assad. “Não nos metemos com eles e eles não se metem com a gente, tem sido assim nos últimos anos”, me conta Jamal Bali, um tradutor curdo de Kobani, com quem trabalhei por quase duas semanas em outubro. “Já tivemos problemas, algumas discussões entre soldados do regime e o YPG, mas agora eles estão fracos demais para sequer parar um carro na rua. Perigosamente fracos com o fim do Hezbollah.”

Jamal, como muitos dos curdos com quem estive em Rojava em outubro, estava temeroso de que grupos rebeldes jihadistas, que perseguiram os curdos de forma brutal e implacável nos primeiros cinco anos de guerra, se sentissem fortes o bastante para enfrentar o regime e reiniciar os combates. “Eles vão primeiro atacar Aleppo, o regime não tem mais o Hezbollah, depois seremos nós”, me dizia um ex-comandante do YPG que lutou contra o Estado Islâmico na defesa de Kobani, uma das principais cidades de Rojava, atacada duramente em 2014. Mas, naquele momento, nenhum deles parecia imaginar que em uma semana os rebeldes avançariam de forma tão rápida e que o regime se mostraria tão frágil na tentativa de frear esse avanço.

Em Idlib, o experiente líder jihadista Abu Mohammad al-Julani já devia estar sentindo o gosto de sangue no ar. Ex-líder da  al-Qaeda no Iraque e na Síria, ex-aliado do Estado Islâmico e fundador da Jabhat Al-Nursa, uma espécie de braço do ISIS na Síria, Julani é o homem que lidera a miríade de grupos rebeldes que avançam em direção a Damasco.

Julani, um sírio nascido na Arábia Saudita, iniciou a vida como combatente lutando contra os Estados Unidos, no Iraque, como integrante da al-Qaeda. Foi preso pelas forças americanas e passou por diferentes prisões, como Abu Ghraib e Camp Bucca, centros de detenções famosos por abrigar futuros líderes terroristas. Por eles passaram tipos como Abu Bakr al-Baghdadi, fundador do Estado Islâmico, e Abu Musab al-Zarqawi, o líder da al-Qaeda no Iraque que foi considerado radical e violento demais por Osama Bin Laden. Fora da prisão, Julani seguiu lutando no Iraque com a al-Qaeda e, com o início da guerra civil na Síria, migrou para o país com o grupo. Depois, criou a al-Nursa, primeiro como braço do Estado Islâmico e, depois, como competidor do grupo em diferentes regiões do país.

Em 2017, já em Idlib, Julani iniciou um processo de transformação de sua imagem, depois de perceber que a brutalidade do Estado Islâmico e de grupos dos quais fizera parte colocara o mundo ocidental contra eles. Passou a adotar um discurso menos radical e criou um novo grupo rebelde, chamado Hay’at Tarhir al-Sham (algo como Frente de Libertação do Levante). O HTS ainda defendia que a Sharia, a lei islâmica, deveria substituir a Constituição síria, mas prometia tolerância a outros grupos islâmicos e às minorias religiosas, como os cristãos. Naquele momento, o governo americano havia colocado um prêmio de US$ 10 milhões por sua cabeça. Julani segue designado como terrorista pelos Estados Unidos, mas há alguns anos a CIA o retirou da lista de alvos a serem assassinados, como foram Abu Bakr al-Baghdadi e outros comandantes do Estado Islâmico.

Além de se tornar mais palatável ao Ocidente, Julani iniciou um movimento de aproximação política com outros grupos rebeldes e líderes tribais sunitas, historicamente contrários aos Assad, esses Alawitas, uma espécie de braço mais liberal do xiismo. Com o início da guerra entre Israel e Hezbollah, Julani iniciou preparações para uma possível janela de oportunidade. Nos últimos seis meses, informações passaram a circular de que os grupos rebeldes de Idlib estavam realizando treinamentos conjuntos, adequando táticas para operar de maneira coordenada e recebendo armas e dinheiro de agentes internacionais interessados em enfraquecer o Irã, o Hezbollah e Assad.

Exatamente no dia em que o Hezbollah capitulou e aceitou um cessar-fogo com Israel, Julani iniciou o ataque às áreas controladas pelo regime na província de Aleppo. Em dois dias estava nas portas da cidade de Aleppo. Ao mesmo tempo, a aviação americana bombardeava comboios de milícias xiitas que saiam do Iraque numa tentativa desesperada do Irã para apoiar Assad. Caças israelenses iniciaram uma campanha de ataque contra depósitos de armas e munições das forças sírias em áreas estratégicas ao sul de Aleppo. A Rússia, vocalmente contrária à insistência de Bashar al-Assad em não se distanciar do Irã e buscar um acordo de longo prazo com a Turquia, até fez ataques contra os rebeldes, mas nada de grande monta. Enquanto Aleppo caía, fragatas e submarinos russos deixavam o Porto de Tartus, a maior base militar de Moscou fora da Rússia. O futuro imediato da Síria nesta sexta-feira, 6 de dezembro, é tão incerto quanto as raras nuvens que encontrei no céu que cobre a antiga Mesopotâmia há quase um mês. Mas a única certeza é de que tudo mudou e nada será como antes.

A tradição crítica do cinema brasileiro

Esqueça as poses e flashes no tapete vermelho estendido até a rua. Não espere selfies com celebridades de vestidos ou smokings cortados e estruturados por estilistas famosos. O Festival de Brasília do Cinema Brasileiro tem vibração bem diferente do mimetismo da entrega do Oscar americano, que inspira alguns festivais mais comerciais Brasil afora. Em sua 57ª edição, o festival continua o ponto de encontro para quem ama, faz, discute, estuda ou, simplesmente, curte cinema. E curte muito. É um festival mais “cinemudo”, como classifica a soteropolitana Mariana Jaspe, diretora de Quem é essa Mulher?, curta-metragem exibido fora da mostra competitiva deste ano e que embarca na pesquisa da historiadora Mayara Santos sobre Maria Odília Teixeira, a primeira médica negra brasileira. “O Festival de Brasília tem um público de cinema, um público com um olhar mais afetuoso para o cinema e muito aberto para todos os tipos de filmes”.

A direção de Mariana Jaspe levou o Kikito em 2023 no Festival de Gramado com o curta “Deixa”, também premiado pelo júri do Festival de Havana, em Cuba. Em 2022, ela participou do Festival de Brasília como jurada e agora traz seu curta, feito com baixíssimo orçamento e filmagens realizadas no Bahia em apenas 16 diárias da equipe. “Eu percebo é que é um público ávido por cinema mesmo, que assiste tudo que está passando. E que tem esse olhar aberto para o novo, para o popular, para o experimental”, disse em conversa com o Meio.

Cinemão

A premiação ocorrerá neste sábado no Cine Brasília, um cinemão na entrequadra 306/307 Sul, projetado por Oscar Niemeyer dentro do plano de Lúcio Costa. O prédio é um espetáculo à parte. O espaço foi inaugurado um dia depois da fundação da cidade, em 22 de abril de 1960 e abrigou desde então o que de mais relevante se produziu no Cinema Novo, no Cinema Marginal e de contestação no cinema brasileiro. Foi palco de artistas como Leila Diniz, Othon Bastos, Norma Bengell, Antônio Pitanga, Grande Otelo, Jardel Filho, Dina Sfat, entre muitos outros. Milton Gonçalves recebeu ali o prêmio de melhor ator, em 1975, na pele de Madame Satã, em A Rainha Diaba, de Antonio Carlos Fontoura. E tudo começou em 1965, quando Paulo Emílio Salles Gomes, a convite de Darcy Ribeiro, se mudou para a capital federal com o objetivo de fundar o curso de cinema na Universidade de Brasília. E o Cine Brasília tornou-se casa da Semana do Cinema Brasileiro, que daria origem ao festival. A Hora e a Vez de Augusto Matraga, de Roberto Santos, venceu a disputa no nesse primeiro ano, Leonardo Villar e Fernanda Montenegro ganharam os Candangos.

Política

O Festival de Brasília teve seu nascimento e tem sua longevidade atrelada à política, não por perseguir esse caráter, mas por abrigar a produção mais crítica. Não que a política seja a cara do festival, mas a proximidade com o centro do poder sempre perpassou os temas e, em alguns momentos críticos, durante a ditadura militar, a censura o bloqueou. “É o festival que teve uma relação com a política mais dramática, visto que já foi interditado, invadido pela ditadura militar. Isso já denota o quanto ele tem de político”, explica Affonso Uchôa, que em 2017 levou 5 prêmios no festival com o longa Arábia. “Acho que o mais político é o fato de que o festival nunca perdeu o espírito do começo, que é buscar o cinema mais inventivo, mais questionador, mais criativo feito no Brasil”, destacou. “Cinema é político”, justifica Mariana Jaspe. “E os filmes que vêm para cá têm um viés político mais acentuado”, compara.

E nesse pensar político do cinema, o festival trata da função da cultura no processo de construção democrática. Uma das palestras deste ano foi a da ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF) e presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). “A vida é mutante. A cultura também é. É nessa cultura que se extrai o caldo do que é justo para um povo”, disse a ministra se dirigindo a uma plateia lotada de cineastas, estudiosos do cinema, com a presença de parlamentares que fizeram uma pequena pausa nas atividades do Congresso para marcar presença no festival. “A cultura é essencial para a democracia. A cultura no sentido mais amplo, que se projeta na tela, nos livros, na música, na poesia, na dança”, apontou. “É por isso que ditadores não gostam da cultura”, disse Cármen Lúcia, numa clara menção à ditadura militar que censurou e interrompeu o festival entre 1972 e 1974.

A edição deste ano homenageia a atriz Zezé Motta e, na noite da abertura, exibiu o filme Xica da Silva, de Cacá Diegues, que rendeu a ela o Candango de melhor atriz em 1976. Também homenageia Vladmir Carvalho, um dos fundadores do curso de cinema da UnB. Figura icônica do festival, Carvalho morreu em outubro deste ano. A sala de exibição do Cine Brasília ganhou seu nome. Neste ano, a curadoria é de Eduardo Valente. Para a jornalista e documentarista Flávia Guerra, responsável pela curadoria no ano passado, o que marca a seleção feita por Valente é o emaranhado de filmes que se comunicam e que trazem os grandes temas do Brasil hoje em dia. “Eu gosto muito da concepção de que o festival é uma grande teia. Um filme sempre se comunica com o outro e por aí vai. E o que une essa teia neste ano é o bom cinema que retrata o Brasil contemporâneo e suas grandes questões. Não são filmes diretamente políticos mas passa por questões que são ligados à política. Tudo é política quando há um censo crítico sobre as principais questões do Brasil”. Ela cita como exemplo, o longa-metragem mineiro Yõg ãtak: Meu Pai, Kaiowá, dirigido por Sueli Maxakali, Isael Maxakali, Roberto Romero e Luisa Lanna, Enquanto o Céu Não me Espera, de Christiane Garcia, e Salomé, um exemplar da cena queer pernambucana, três que estão hoje na disputa dos Candangos.

As plataformas na mira do mundo

Nas últimas duas décadas, as plataformas digitais se tornaram uma parte integrante da vida moderna. Mas foi a partir da popularização do Facebook, aliado à disseminação dos smartphones e à rede de internet 4G que essas plataformas entraram de vez no cotidiano das pessoas. Com um ambiente desregulamentado e crescendo sem o escrutínio mais atento da sociedade sobre o papel dessas novas mídias na organização da vida pública, essas empresas de tecnologia se tornaram gigantes globais, enquanto passavam longe de qualquer responsabilização pelo que ocorria em seus domínios virtuais ou indagações sobre questões de monopólio.

Mas o paraíso virtual dessas big techs entrou na mira de governos do mundo todo quando o Facebook viu todos os holofotes (e dedos) apontados para si, quando um escândalo tomou as manchetes dos jornais, em 2018, envolvendo seu nome. As informações de mais de 50 milhões de pessoas tinham sido utilizadas sem consentimento pela Cambridge Analytica, uma empresa de análise de dados que trabalhou com o time responsável pela campanha de Donald Trump nas eleições americanas de 2016, além de ter sido contratada pelo grupo que promovia o Brexit na União Europeia. A empresa comprou informações pessoais de usuários do Facebook e usou para influenciar as escolhas dos eleitores nas urnas.

Desde então, governos de diferentes continentes começaram a questionar o papel das redes sociais, não só na democracia, mas também sobre os direitos fundamentais, as sociedades e a economia. Foi quando a União Europeia agiu para tentar responder às desproporções deixadas pela falta de regulamentação dessas empresas tecnológicas, lançando nos últimos anos uma legislação que tem servido de base para outros países. Entre eles, estão a Lei de Serviços Digitais (DSA) e a Lei dos Mercados Digitais (DMA).

Governos em ação

Em julho de 2020, o mundo presenciou cenas de um momento raro ainda hoje, quando alguns dos CEOs mais poderosos do mundo foram ao Capitólio para responder aos parlamentares se usam seu poder de alcance para beneficiar a si mesmos e atrapalhar a concorrência. Em uma audiência de seis horas, os líderes de Amazon, Apple, Facebook e Google foram duramente criticados por republicanos e democratas por usarem seus poderes para sufocar concorrentes e acumular dados, clientes e altos lucros. Eles foram confrontados por legisladores do principal subcomitê antitruste da Câmara munidos de 1,3 milhão de documentos, centenas de horas de entrevistas e, em alguns casos, de mensagens antes privadas dos chefes de elite do Vale do Silício.

Claro que os gigantes não ficariam parados diante da movimentação do Estado para interferir nos planos dessas grandes corporações, acostumadas a nadar de braçada sem nenhuma regulamentação específica. Com medo dos projetos que começavam a ganhar forma entre legisladores, esses figurões enviaram ao Capitólio executivos, lobistas e mais de uma dúzia de think tanks e grupos de defesa pagos para argumentarem que haveria consequências terríveis para a indústria e para o país se esses textos se tornarem lei.

No começo deste ano, vimos mais um episódio da luta entre big techs versus legisladores, mas dessa vez com um tom mais contundente e emocional. Os CEOs da Meta, TikTok, Snap, Discord e X testemunharam perante o Comitê Judiciário do Senado, que contou com a presença de pais que tiveram seus filhos prejudicados e até mortos por causa das redes sociais. Evan Spiegel, CEO da Snap, e Mark Zuckerberg, CEO da Meta, chegaram a pedir desculpas às famílias presentes. “Sinto muito por tudo que vocês passaram”, disse Zuckerberg. “Ninguém deveria passar pelas coisas que suas famílias sofreram e é por isso que investimos tanto e continuaremos fazendo esforços em toda a indústria para garantir que ninguém tenha que passar pelas coisas que suas famílias tiveram que sofrer.” Antes de detalhar as medidas que o Snapchat tem feito para proteger os jovens, Spiegel disse que “sinto muito que não tenhamos conseguido evitar essas tragédias”.

Para além dos depoimentos e documentos, a Lei de Serviços Digitais (DSA) da União Europeia, em aplicação desde fevereiro deste ano, atua como uma rigorosa regulamentação às plataformas, ao impor regras sobre moderação de conteúdo e publicidade online no bloco. Entre os principais pontos da lei estão questões sobre comércio e troca de bens ilegais, serviços e conteúdo online e sistemas algorítmicos que amplificam a disseminação da desinformação. A ideia é dar às pessoas mais controle sobre seus dados e o que elas veem online. Isso inclui proteger os usuários de conteúdos prejudiciais (como relacionados à saúde física e mental) e ilegais.

Já a Lei dos Mercados Digitais (DMA) estabelece um conjunto de regras rígidas para preservar uma competição de mercado mais justa entre as gigantes do setor digital, que atuam como “controladores de acesso”, os chamados “gatekeepers”, que têm um impacto significativo no mercado interno ao se tornar um importante meio para permitir que empresas menores cheguem aos utilizadores finais. É o caso de Microsoft, Amazon, Google, Apple, ByteDance e a própria Meta. O objetivo é impulsionar a inovação, o crescimento e a competitividade e dar às startups e empresas menores a oportunidade de competir com igualdade com as maiores do setor.

Restrição de idade

Governos ao redor do mundo também começaram a se movimentar em torno de alguma restrição de idade para auxiliar na saúde mental e no progresso escolar de crianças e adolescentes. Um ponto importante nesse sentido foi a lei aprovada na Austrália no final de novembro, que obriga gigantes como Meta, Google e TikTok a impedirem menores de 16 anos de fazerem login nas plataformas, com pena de multas de até US$ 32 milhões em caso de descumprimento.

A Irlanda lançou um Código de Segurança Online que será adotado no país para plataformas de vídeo, incluindo TikTok, YouTube, Instagram e Facebook, que passam a ser obrigadas a ter termos e condições que proíbam uploads ou compartilhamentos de diferentes tipos de conteúdo nocivo aos jovens, como cyberbullying, promoção de automutilação e distúrbios alimentares, além de proibir conteúdo que incite ódio ou violência e material de abuso sexual infantil. Com o objetivo de combater o aumento de pornografias deep fakes, a Coreia do Sul anunciou um pacote de medidas para endurecer a punição de infratores e impor maiores regulamentações às plataformas.

Nos Estados Unidos, a governadora do estado de Nova York, Kathy Hochul, sancionou, em julho, duas leis que exigem que as plataformas precisem do consentimento dos pais para que menores de 18 anos usem aplicativos com “feeds viciantes” e limita a coleta de informações dos usuários pelos provedores de aplicativos.

Por aqui, um projeto de lei que proíbe o uso de celulares em escolas de São Paulo foi sancionado ontem pelo governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, enquanto um outro projeto em nível nacional começa a tramitar no Congresso, após passar pela Comissão de Educação da Câmara dos Deputados. Já a França está testando a proibição de celulares nas escolas para alunos de até 15 anos, podendo ser implementada em todo o país a partir de janeiro, caso seja considerada bem-sucedida. O experimento abrange cerca de 200 escolas secundárias, que recolhem os aparelhos dos alunos logo na recepção.

Nesta semana a atenção dos leitores do Meio foi para assuntos um pouco menos densos do que a trama golpista que dominou os cliques nas últimas edições. Confira os mais clicados da semana:

1. g1: As primeiras imagens da Catedral de Notredame restaurada após o incêndio de 2019.

2. g1: As fotos finalistas do concurso Close-up Photographer of the Year, que premia as melhores imagens de perto da vida selvagem.

3. g1: O que são emendas parlamentares e o que o ministro do STF Flávio Dino decidiu ao liberar o retorno dos pagamentos?

4. Guardian: Os medos do ambientalista Paul Watson que está preso e pode ser deportado para a Japão para ser julgado pelas suas ações contra baleeiros.

5. Meio: Mariliz Pereira Jorge defende que o caso da moça do avião, que não cedeu o lugar a uma criança birrenta, acaba só servindo para transformar pessoas comuns em celebridades irrelevantes.

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