A esquerda, a direita e o futuro do Brasil

Os dois campos parecem muito cientes do que desejam — poder —, mas pouco conscientes da forma de construir uma agenda capaz de diminuir as divisões e permitir olhar o amanhã com alguma esperança
Este é um país dividido. Longe de ser uma reflexão suficientemente esclarecedora da realidade que nos cerca, tal assertiva se apresenta muito mais como um mantra que, repetido exaustivamente, tenta dar conta dos dilemas e mazelas que caracterizam esta era de incertezas. Todavia, no esforço de destrinchar a afirmativa inicial e contribuir para o debate público e o esclarecimento do leitor, me permito construir algumas ilações que possibilitam avançar nesta compreensão.
Inicialmente, parece importante ter em mente o fato de que o Brasil é um país marcado por um conjunto enorme de diferenças regionais. Da Mata Atlântica à Caatinga, da Floresta Amazônica até o Pampa e do Cerrado até o Pantanal, o que se percebe é a propagação de uma miríade de paisagens que efetivamente conformam a relação de cada um de nós brasileiros com o espaço que nos cerca. Descendo mais um degrau nesta reflexão, se faz impossível não estabelecer uma correlação direta entre o espaço — ou melhor, os espaços — e a construção de olhares e crenças dos indivíduos sobre a realidade.
Os espaços e a nossa interação com estes são fundamentais para construirmos nossa cognição, o que delimita como cada um de nós reage aos estímulos e aos atores com os quais os dividimos
E o que isto significa? Que a forma como cada um de nós interage dentro de nossas casas, com nossos vizinhos e em nossos bairros, tendencialmente cria um rol de preferências que nos permitem entender a realidade. Neste exato momento, você pode estar se perguntando: “Mas o que efetivamente a noção de espaço e ocupação deste tem a ver com o título do texto?”. Pois bem, de maneira efetiva, tudo. Afinal, os espaços e a nossa interação com estes são fundamentais para construirmos nossa cognição, o que delimita como cada um de nós reage aos estímulos e aos atores com os quais os dividimos.
Neste momento, peço sua permissão para fazer um recorte. Nele migramos da compreensão abstrata da realidade e do espaço per se para um evento em específico: a celebração do dia 1º de maio de 2024. Neste dia, em São Paulo, o Presidente da República participou de um ato convocado pela Central Única dos Trabalhadores (CUT) em comemoração ao Dia do Trabalhador. Naquele momento, Lula — político escolado e acostumado ao contato direto com as massas — teve uma das surpresas mais desagradáveis de seu mandato: o evento estava basicamente vazio. De forma clara, aproximadamente menos de duas mil pessoas compareceram à mobilização convocada por uma das centrais sindicais historicamente mais importantes do país, mesmo contando com a presença da principal figura institucional da nação, o presidente da República Federativa do Brasil.
A reação de Lula à situação desalentadora foi sucinta: “O ato está mal convocado. Não fizemos o esforço necessário para levar a quantidade de gente que precisa levar”. Combinadas, o fiasco do evento e a declaração marcada pela tônica de desapontamento acenderam um sinal de alerta ao governo. Porém, o acontecimento não levou a uma mudança significativa nos quadros responsáveis por sua organização, ou mesmo na própria forma como o Presidente passou a engajar com os cidadãos a partir daquele momento. Ao contrário, no 1º de maio deste ano, o resultado foi recolher-se ao Palácio do Planalto e gravar uma mensagem alusiva ao evento a ser veiculada pelos canais comunicacionais tradicionais.
Dado esse contexto, é possível se debruçar sobre um segundo exemplo, tão significativamente importante quanto o primeiro. Neste caso, ainda em São Paulo, mas especificamente no dia 29 de junho de 2025, são trocados os protagonistas políticos: no lugar de Lula, entra o ex-Presidente Jair Bolsonaro. Tal qual ocorrido com Lula no exemplo dado, Bolsonaro teve que lidar com um acometimento popular menor que o esperado. Em termos de mensuração, as estimativas em torno de 12 mil presentes contrastam efetivamente com os números angariados pelo ex-chefe do Executivo neste mesmo local, como, por exemplo, no 7 de setembro de 2022. E quais as razões para essa diferença? Da psicologia até a sociologia, teses múltiplas podem ser construídas para retratar este processo, porém, aqui se optará pelo retorno à reflexão sobre o espaço e a capacidade deste de exercer influência e conformar a cognição.
Em um exercício de coerência reflexiva, me utilizarei de Milton Santos para dar clareza ao argumento. Afinal, o maior dos geógrafos que este país já produziu sempre insistiu na tese de que o espaço geográfico é um verdadeiro campo de força cuja formação é desigual. E esta desigualdade se manifesta no modo como os espaços e as pessoas se desenvolvem de formas diferentes, com olhares, gostos e percepções distintas, permitindo a partir daqui um retorno à nossa tese definidora: este país está dividido.
Esta divisão, todavia, não é recente. Ela é fruto do nosso próprio DNA formador (peço aos biólogos que leem este texto que perdoem a liberdade poética), o qual, por característica histórica, temos dificuldade de aceitar e que foi muito bem definido pelo engenhoso dramaturgo Nelson Rodrigues como “Síndrome do Vira-Lata”. Tais diferenças — que se expressam no tamanho das casas em que vivemos, na quantidade de luz solar que temos a possibilidade de absorver, nas horas de lazer as que se têm acesso ou que são impossíveis de se ter — formam a miríade das cognições do brasileiro comum, e é a partir destas lentes que eles, efetivamente, escolhem aqueles que darão respostas aos seus anseios.
Na atual quadra histórica, a percepção mais abundante é a de que as respostas mais atraentes às incertezas parecem ser mais vocais à direita do espectro político. Seja por convicção, seja por pragmatismo eleitoral ou por mera decepção com as opções ideológicas concorrentes, ser de direita parece ter se tornado um fenômeno mais atrativo que a alternativa, fazendo com que não apenas Bolsonaro e seu clã político-familiar angariem poder, mas permitindo o surgimento de nomes com os mais diversos perfis dentro deste grupamento. E, fundamentalmente, este cenário traz a necessidade de pensar no que alimenta a crescente rejeição da atual ordem de coisas entre os eleitores.
O que se percebe é um crescimento de um sentimento de desalento, um enfado com a política, os políticos e quiçá com a própria ideia de intelectualidade
Das imperfeições do Sistema Único de Saúde (SUS), passando pela desproporcionalidade das responsabilidades entre os entes federativos no que concerne a outras agendas importantes — na qual se destaca o maior fracasso da Nova República, a segurança pública —, o que se percebe é um crescimento de um sentimento de desalento, um enfado com a política, os políticos e quiçá com a própria ideia de intelectualidade, que parece a cada dia ser mais e mais percebida como descolada das necessidades de um mundo real que é violento e desafiador em níveis altíssimos.
Em face de uma plataforma de direita que aparenta compreender as indignações populares já identificadas em obras como O Povo Contra a Democracia, de Yascha Mounk, e A Vingança do Poder, de Moisés Naím, cabe a pergunta: o que a esquerda tem a oferecer? Tendo como parâmetro o ocorrido em eleições recentes nos Estados Unidos e na Argentina, a resposta mais objetiva é: muito pouco. Afinal, a ideia de preservação do status quo — traduzida no axioma de defesa da democracia — parece ser vista por eleitores em vários lugares do mundo como uma reflexão diletante feita por uma elite cuja vida parece resolvida, ao mesmo tempo em que é indiferente aos sofrimentos daqueles que se sentem reféns de uma era de incertezas.
Tal dilema, que possui uma camada retórica, outra política e uma eleitoral, parece ser um desafio de difícil transposição para aqueles que se acostumaram a serem vistos como tradutores privilegiados da realidade. Agora, se na teoria o horizonte parece mais favorável à direita em termos eleitorais, qual é o dilema para este grupamento e para aqueles que nele depositem suas esperanças? Sinteticamente, o risco de que, tal qual na atual conjuntura, a narrativa eleitoral não se transforme em uma agenda que resolva problemas reais ou, ao menos, dê a expectativa de que haja interesse real em resolvê-los.
Afinal, a fórmula de engajamento e de transformação da eleição em um plebiscito sobre quem polariza mais pode dar sinais claros de esgotamento. O risco para Bolsonaro, assim como Lula no 1º de maio de 2024, é o despertar em uma situação em que o seu protagonismo tenha se esvanecido e a percepção de fragilidade seja visível aos adversários, ao ponto que estes se sintam livres e desinibidos para fustigá-lo continuamente. E se Lula hoje sofre com um Congresso que o vê como alvo fácil, as complicações jurídicas autoprovocadas nas quais Bolsonaro se colocou servem como um elemento significativo de assimilação do quão frágil é sua posição apesar da retórica comumente agressiva.
Ao país, por sua vez, faltam atores que sejam capazes de mobilizar atenções e interesses para além dos vídeos curtos de redes sociais e do engajamento superficial no debate sobre sites de apostas. De maneira efetiva, a direita e a esquerda parecem muito cientes daquilo que desejam — poder —, mas pouco conscientes da forma de construir uma agenda que seja efetivamente capaz de diminuir as divisões que nos afetam em termos de espaço, sociedade e capacidade de olhar o futuro com alguma esperança.