Geopolítica da vacina, o novo jogo mundial

John Kennedy gostava de repetir uma lenda urbana linguística segundo a qual o ideograma chinês para “crise” juntava as palavras “risco” e “oportunidade”. Mesmo não sendo verdade, essa milenar sabedoria inventada está sendo levada a cabo pelos próprios chineses, pelos indianos e pelos russos. Apesar de serem, respectivamente, primeiro, segundo e nono países mais populosos do planeta, estão vendendo — e, em alguns casos, doando — vacinas e insumos para outras nações, mesmo mal tendo começado a imunizar seus próprios habitantes. Isso, claro, não se dá pela candura dos corações de Xi Jinping, Narenda Modi e Vladmir Putin. A ideia por trás dessa ação tem nome: a geopolítica da vacina.

“A vacina é uma ótima ferramenta de política externa, de projeção de poder”, avalia Creomar de Souza, analista de risco da Consultoria Dharma e professor de cenários futuros da Fundação Dom Cabral. “O caso indiano, por exemplo, mostra uma estratégia muito bem estruturada. O país forneceu vacinas para praticamente todos os seus vizinhos e para nações com as quais quer estreitar suas relações, menos para o Paquistão, claro.”

Os paquistaneses enfrentam o que já é chamado de “tsunami de Covid-19” e não podem contar com a ajuda do vizinho, seu inimigo histórico. O Paquistão foi criado em 1947, com a libertação do subcontinente indiano do Império Britânico, para abrigar a população muçulmana, em contraponto à Índia hindu. As duas nações, que têm armas nucleares, vivem em pé de guerra desde então, especialmente em torno do controle da região fronteiriça da Cachemira. Logo, no que depender das vacinas do premiê nacionalista hindu Narendra Modi, o Paquistão vai morrer à míngua.

E a postura indiana já rende frutos diplomáticos, inclusive envolvendo o Brasil. A Índia lidera na Organização Mundial do Comércio (OMC) o bloco de países que defende a quebra de patentes das vacinas contra Covid-19, permitindo a fabricação de genéricos. Estados Unidos e União Europeia, onde estão grandes laboratórios, são contra. Por conta do alinhamento automático com Donald Trump, o Brasil também era e disse que vetaria a ideia. Até que Índia se tornou a fornecedora da vacina de Oxford/AstraZeneca, uma das duas já aprovadas pela Anvisa. Na última quinta-feira, durante reunião emergencial da OMC, o Itamaraty fez cara de paisagem na discussão entre os dois grupos.

A vacina de Oxford mostra, na avaliação de Creomar de Souza, mais um movimento inteligente da Índia e uma grande perda de oportunidade por parte do Brasil. “Graças a investimentos pesados do governo, a Índia se tornou a principal fornecedora da AstraZeneca”, diz o especialista. “O Brasil poderia ter exercido esse papel também. Temos bem uma meia dúzia de laboratórios de ponta públicos e privados que poderiam já estar produzindo vacinas e insumos em larga escala. Falando de um ponto de vista estritamente pragmático, poderíamos ser participantes ativos da geopolítica da vacina, projetando nosso poder diplomático na América Latina e na África. Em vez disso, nos tornamos dependentes de fornecedores externos.”

A batalha sanitária da Ucrânia

Assim como a Índia tem o Paquistão, a Rússia usa suas vacinas em seu conflito com a vizinha Ucrânia. Primeiramente, é preciso desfazer o mito de que a ciência russa não é confiável. Eles mandaram ao espaço o primeiro satélite, o primeiro ser vivo, o primeiro homem, a primeira mulher e a primeira estação espacial. Sua indústria químico-farmacêutica não faz só venenos mortíferos, mas remédios de qualidade. Estudos preliminares da fase 3 indicam que a Sputnik V, sua principal vacina, tem eficácia de 91,6% e de 100% em casos graves.

E onde entra a Ucrânia nessa história? Entra pelo cano. A antiga república soviética vive em pé de guerra com Moscou por conta do apoio de Putin a separatistas de origem russa no leste do país. E ainda engoliu, embora não oficialmente, a anexação pela Rússia da Península da Crimeia. O nível de hostilidade é tanto que o parlamento ucraniano aprovou no fim de janeiro uma lei proibindo a aplicação no país de qualquer vacina de origem russa. Acontece que a Ucrânia está no fim da fila para distribuição de imunizantes pela União Europeia, e sente as consequências disso. E, com a dificuldade de conseguir vacinas, a própria UE já olha a Rússia como possível fornecedora, o que conflita com a lei ucraniana. Para coroar, Putin disse esta semana que vai mandar vacinas, sim, para as áreas controladas por rebeldes pró-Rússia no leste ucraniano. Se a Crimeia foi tomada na bala, a Ucrânia pode ser dominada na seringa.

“A Rússia sempre teve um jeito bruto de fazer as coisas”, lembra Creomar de Souza. “Tanto que aprovou o uso e começou a vacinar a população quando a Sputnik V ainda estava em testes.” Antes mesmo de a eficácia ser divulgada esta semana, ela já estava sendo usada em países vizinhos do Brasil, como Argentina, Paraguai, Venezuela e Bolívia. Na América do Norte, o México também aprovou o uso da vacina russa. “Com a Sputnik, Putin rompeu o isolamento russo e criou lastros diplomáticos com a América Latina, por exemplo”, avalia o professor.

E a China, onde a pandemia começou, no fim de 2019, segue aumentando sua influência ao abastecer o Sudeste Asiático e o Oriente Médio com suas vacinas e exportar imunizantes e insumos para literalmente todo o mundo. Tanto a vacina de Oxford/AstraZeneca quando a da Pfizer/BioNTech, usada nos EUA e no Reino Unido, por exemplo, são feitas com componentes produzidos na China.

Que fim levou o Ocidente?

Por falar em Estados Unidos, Reino Unido e União Europeia, por que nenhum deles aparece no mapa da geopolítica da vacina? A resposta pode estar no que eles têm de mais forte, a democracia. “Em países plenamente democráticos, a pressão popular é muito forte. Criou-se um frenesi da vacinação, o que demanda um foco total no público interno”, explica o professor da Dom Cabral. “O governo americano botou muito dinheiro no desenvolvimento de vacinas, comprou a produção toda da Pfizer antes mesmo da aprovação. Mas para vacinar a sua população. Reino Unido e União Europeia estão na mesma posição, além de brigarem entre si. China, Rússia e Índia perceberam que esses grandes atores da política mundial não estavam no palco e ocuparam o espaço.”

Mas o grande drama da vacina, e um ponto chave de sua geopolítica, está na produção e distribuição global. A Cruz Vermelha denunciou como injusta a divisão das vacinas no mundo, ressaltando que 70% das imunizações registradas até agora aconteceram nos 50 países mais ricos, contra apenas 0,1% nos 50 mais pobres. O pior cenário é na África, no fim de praticamente todas as filas. A China prometeu vacinas para países do continente, mas até agora pouco fez. “Mas a questão é: quem tem a vacina para vender em primeiro lugar? A Europa comprou tudo”, reclama o ministro da Saúde do Quênia, Mutahi Kagwe.

O mundo tem hoje 7,8 bilhões de pessoas. Como a maioria das vacinas exige duas doses, estamos falando 15,6 bilhões de doses. Daí a estimativa de que, no melhor dos cenários, 25% da população chegarão a 2022 sem qualquer espécie de imunização.

“Isso é muito grave, pois o combate eficaz à doença depende da maior cobertura possível”, diz Creomar de Souza. “Não adianta imunizar os EUA inteiros e não imunizar a África, pois vão continuar surgindo novas variantes do vírus, novos surtos.”

O fluxo de vacinas é, na visão do especialista, o grande problema que o Brasil enfrenta. “Nesse jogo geopolítico não adianta ter preferência. Vamos precisar de vacinas de todos os lugares. O país tem uma excelente infraestrutura de aplicação, vacinamos milhões de pessoas contra H1-N1 em meses, mas precisamos das vacinas. Estamos falando de quase meio bilhão de doses. O Brasil não entendeu a dinâmica desse processo. A corrida por insumos começou lá no início do ano passado, nós demoramos a entrar. Nosso risco agora é vermos uma interrupção da vacinação por falta de imunizantes, quando poderíamos ter sido grandes produtores”, conclui Creomar.

Por Leonardo Pimentel

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