O ‘incondicionalismo’ como método de escolha

O direito de nomear magistrados é uma prerrogativa tradicional dos reis, mesmo constitucionais. Na Constituição do Império (1824), cabia ao imperador nomear magistrados. A composição do Supremo Tribunal se fazia pelos desembargadores mais antigos dos Tribunais de Justiça (art. 163). Na República, quando o Supremo adquiriu a condição de guardião da Constituição, adotou-se na Constituição de 1891 um critério político. O presidente indicaria o nome, devendo o Senado verificar se o candidato dispunha de notório saber jurídico e reputação ilibada (art. 48 XII e 56). A fórmula, quase sem alteração, foi consagrada na Constituição de 1988 (84 XIV e 101).

A indicação do próximo ministro do Supremo Tribunal, na vaga do ministro Ricardo Lewandowski, tem dividido a opinião pública. Alguns acham que o presidente pode indicar quem bem entender para o cargo. Outros acham que ele deveria observar determinados critérios, digamos, republicanos ou impessoais.

O primeiro grupo é formado por aqueles a quem se pode chamar os incondicionalistas. Para eles, trata-se de um ato puramente discricionário: qualquer presidente tem sempre o direito de nomear quem quiser, seja quem for.

É o incondicionalismo de mão dupla. Há entre eles um consenso histórico de que basta o indicado ser bacharel em direito. Não importam suas ideias, seu passado, onde estudou, seu desempenho, nada. Basta contar com a preferência presidencial, cujo “dedo” merece sempre respeito.

Esse incondicionalismo é o principal responsável pelo fato de que, em 132 anos de vigência deste modelo de nomeação de ministros, o Senado só tenha reprovado dois candidatos ainda no século XIX — e, mesmo assim, só depois que o presidente do dia deixou o poder.
Ultimamente, depois do trauma da Lava Jato, os incondicionalistas passaram a exigir uma única “condição”: a de que o aspirante ao cargo seja “garantista”. No meio jurídico, a expressão “garantista”, que se opõe à de “punitivista”, designa juristas cujas interpretações legais privilegiam o direito de defesa dos réus. Para os políticos, porém, o “garantismo” tem outro significado: a “garantia” de que o ministro demonstrará sensibilidade aos seus interesses nas ações criminais nas quais eles, congressistas, figurarem como réus. Afinal, é o Supremo que processa e julga as ações em que estejam envolvidos. Os políticos querem a “garantia” de que não serão denunciados nem presos; que serão absolvidos; que suas ações serão suspensas ou prescreverão. Querem “juiz nosso”, como também “delegado nosso”. Fica subentendido de que, em contrapartida, também se oporão a propostas de impeachment dos ministros do Supremo, ou de reduzir o poder da Corte.

Mas há também, claro, outro tipo de incondicionalistas: aqueles para quem só o seu presidente do coração pode nomear quem bem entender. Quando o presidente é de um partido adversário, porém, querem colocar todos os obstáculos à sua nomeação. São os facciosos ou incondicionalistas de mão única. Podem ser de esquerda ou de direita. À esquerda, se opuseram à nomeação de Kassio Nunes Marques, alegando sua insuficiência jurídica e reputação, dizia-se, não tão ilibada. São os mesmos que agora entendem que Lula pode nomear seu advogado particular, Cristiano Zanin, sem qualquer constrangimento.

Os incondicionalistas de mão única andam no momento mais visíveis no processo de escolha do futuro procurador-geral da República, quando se manifestam a respeito da lista tríplice organizada pela associação dos procuradores, a partir de uma votação interna. Embora tenha criticado a nomeação de Augusto Aras por Jair Bolsonaro, que ignorou a lista, parte da esquerda hoje contraditoriamente defende o mesmíssimo direito para Lula. À direita, acontece a mesma coisa. Quando seu chefe amassou e jogou fora a lista para escolher Aras, o então ministro da Justiça, Sergio Moro, se encarregou de pegar o papel amassado e engoli-lo. Hoje, o atual senador quer que Lula escolha dentro da lista, ressuscitando até projeto que imponha essa obrigatoriedade.

Nessa disputa, os incondicionalistas de mão dupla têm indubitavelmente o mérito da coerência.

Do outro lado, contrastando com as duas espécies de incondicionalistas, estão aqueles para quem as indicações para o Supremo Tribunal não deveriam se resumir a um mero arranjo de interesses entre Executivo e Legislativo, que legitimasse um dedaço presidencial; que seria mais democrático ou republicano que a escolha viesse acompanhada de um debate público, no âmbito da sociedade civil e da academia, acerca dos currículos, ideias e méritos dos candidatos, levando em consideração inclusive quesitos de gênero ou raça. Que os candidatos, em suma, mereceriam ser sabatinados pela opinião pública.

Já houve mais espaço, no passado, para essa influência extra institucional na escolha dos ministros do Supremo e do procurador-geral da República nos governos anteriores do PT, antes da Lava Jato. Esta talvez tenha sido a época de ouro de ambas as instituições, do ponto de vista de sua autonomia. No todo, a experiência foi positiva. A soberba, porém, de alguns desses atores pôs a perder, com seu judiciarismo, a credibilidade do procedimento, voltando-se contra os outros dois poderes. A reação não se fez esperar: Legislativo e Executivo, temerosos das ambições lavajatistas, se coligaram desde o governo Temer para escolher ministros e procurador submissos ao poder político.

Esse processo encontrou seu auge no antijudiciarismo de Bolsonaro, que empregou seu poder para escolher ministros e PGR cúmplices do seu programa de autoritarismo com total impunidade ou complacência com o golpismo.

Muitos esperavam que o retorno do PT ao poder não só restabeleceria como até ampliasse a agenda republicana de consulta à sociedade civil. Juristas progressistas de alta competência não faltam à disposição de Lula. Querem um homem branco? Aí estão Oscar Vilhena, Lênio Streck, Daniel Sarmento, Ingo Sarlet. Um homem negro? Temos aí o Sílvio Almeida e o Fábio Esteves. Uma mulher branca? Simone Schreiber é a primeira que me vem à cabeça. Uma negra? Está aí a Adriana Cruz à disposição. Infelizmente, a experiência traumática da Lava Jato parece ter levado o PT a jogar fora a criança junto com a água da bacia: Lula só confia no seu advogado pessoal, Cristiano Zanin, que o tirou da prisão. E já disse que fará como Bolsonaro, atirando a lista tríplice no lixo.

Ainda é cedo para cravar que isso de fato acontecerá. No caso específico da Procuradoria-Geral da República, não é possível sequer saber se o objetivo de Lula não é persuadir a associação a arranjar-lhe candidatos palatáveis, de forma de salvar a lista tríplice. A escolha sistemática de Lula pelo primeiro colocado da lista era, verdade seja dita, um preciosismo. Nem por isso a ideia da lista deixa de ser uma forma harmoniosa de combinar autonomia funcional com confiança presidencial. É difícil crer que nenhum candidato preste numa lista tríplice de candidatos escolhidos entre todos os procuradores. Quem ataca o pretenso corporativismo dos procuradores esquece o corporativismo de todas as instituições e que ela foi benéfica para evitar o autoritarismo de Bolsonaro. Não há autonomia sem algum grau de corporativismo.

O argumento de que só o presidente eleito goza de legitimidade política é perigosamente populista, à direita e à esquerda. Esse incondicionalismo de mão única, segundo o qual o presidente do “nosso” partido pode decidir tudo sozinho, porque é um sábio, tem origem na tradição do absolutismo ilustrado inaugurada pelo marquês de Pombal. Foi aqui seguida à direita por José Bonifácio, Bernardo Pereira de Vasconcelos, Getúlio Vargas (I), por Ernesto Geisel — mas também à esquerda, com Getúlio Vargas (II), João Goulart, Leonel Brizola. Percebendo o Brasil como um país periférico, os ilustrados acreditam na necessidade de um Poder Executivo forte, desde que aconselhado por técnicos iluminados, capazes de peitar os “representantes do atraso” para modernizar o país. Nas últimas décadas, marcadas por uma direita reacionária, o espírito ilustrado se tornou privativo de certos setores da esquerda. São estes que acham que Lula deve aproveitar a volta ao poder para “passar o rodo” no Judiciário e no Ministério Público, dobrando-os à “agenda progressista”. Isso depois de Bolsonaro ter tentado dobrá-los à sua “agenda reacionária”. É o famoso “dois pesos e duas medidas”, típico dos incondicionalistas de mão única.

Nenhuma república é possível com esse tipo de raciocínio.

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