Um integralista não corre, voa
O domingo, 7 de outubro, em 1934, amanheceu com um céu azul de primavera em São Paulo. Nas semanas anteriores, panfletos diversos circularam pela capital convocando sindicalistas, anarquistas, socialistas, comunistas, gente que se identificasse como de esquerda num geral para ocupar a Praça da Sé. “As organizações convidam toda a população a responderem com uma potente manifestação antifascista”, dizia um. “Ao proletariado e a todo o povo oprimido”, começava outro. Mas, com temor do embate que poderia se dar, o governo paulista negou à esquerda licença para se manifestar naquele dia. Porque o movimento não surgiu do nada — para aquele dia 7 estava sendo convocada, também, outra passeata. Ou, melhor: uma marcha. Igualmente, na Praça da Sé. A Ação Integralista Brasileira, movimento fascista liderado pelo escritor Plínio Salgado, queria dar uma demonstração de força. Queria mostrar ao Brasil o tamanho da AIB. E pessoas já vinham chegando de trem desde a sexta-feira de todo o país. Seria uma marcha em rito militar, com estandartes e banda marcial, todos devidamente uniformizados, a camisa verde escura, calça preta, braçadeira com a letra grega Sigma em azul no mesmo lugar em que os nazistas punham sua suástica. Enfileirados na praça, ouviriam de um palanque os discursos de seus líderes. Miguel Reale, o jurista feito ideólogo. Gustavo Barroso, o historiador e ex-presidente da Academia Brasileira de Letras feito chefe da milícia armada. E, claro, Plínio. O Chefe Nacional. O führer. O duce.
Não é diferente da passeata que o presidente Jair Bolsonaro planeja organizar em 7 de setembro. Um grande movimento para demonstrar força, dar número. A escolha de mobilizar PMs de todo o país e os recados de Zap incitando os participantes a irem armados são indícios fortes do mesmo padrão que se repete. Segundo os jornalistas Malu Gaspar e Johanns Eller, a busca por compra de fardas e lojas militares na web disparou neste último mês. No imaginário bolsonarista, o tom militaresco é o mesmo.
Mas também no discurso há padrões repetidos. Plínio Salgado via decadência no Brasil urbano e industrial e exaltava seu oposto — o Brasil agrário do interior. Seu ideal de brasileiro era o descendente do bandeirante: o caboclo forte, que se metia no mato e o dominava, andava a cavalo e não fugia de briga. Como todo movimento fascista, estava ali o predomínio de uma cultura masculinizada e violenta. É imaginar o tipo sertanejo ou o caminhoneiro para quem o atual presidente sempre aponta. O lema da Ação Integralista Brasileira era “Deus, Pátria e Família” — a mesma política que se produz a partir do encontro entre autoritarismo, cristianismo moralista, obsessão pela bandeira nacional e uma ideia rígida do conceito de família.
A partir da Praça da Sé, Plínio desejava colocar em marcha o projeto fascista no Brasil. Tanto Benito Mussolini, em 1924, quanto Adolf Hitler, em 1933, haviam chegado ao poder usando aquele mesmo recurso. Com suas milícias ocupando as ruas de forma ostensiva, uniformizada, impondo medo a quem não fosse do grupo, sempre demonstrando força. No rito dos movimentos fascistas esta ocupação sistemática das ruas era o método pelo qual os extremistas se impunham na cultura política.
Há, porém, uma diferença entre o Brasil de 1934 e o de 2021. Os extremistas, naquele tempo, eram grupos relevantes em ambos os lados.
Na nomenclatura da ciência política, o que diferencia o extremista do radical é sua visão da democracia. O radical está disposto a fazer uso de métodos agressivos, até quebrar a lei e assim se expor a uma prisão. Quebrar vidraças, incendiar estátuas. Mas o que ele deseja é transformar a sociedade o mais rápido possível, sem romper com o regime democrático. O extremista, não. O extremista quer romper o regime. Em 1934 havia uma extrema-direita fascista na AIB. Assim como havia uma extrema-esquerda comunista e, outra, anarquista. Ambos eram também movimentos com o objetivo de promover uma revolução e substituir o regime democrático por outro sistema. Hoje, Jair Bolsonaro representa uma extrema-direita com discurso e ideias de país quase iguais às dos integralistas. Mas, embora existam até movimentos radicais nas esquerdas, a extrema-esquerda é irrelevante na vida política atual e não tem um único deputado federal a representando na Câmara. A extrema-esquerda não tem voto, no Brasil. A extrema-direita, tem.
O país em 1934 tinha uma cultura oligárquica ainda mais forte do que a atual. Tinha comunistas e fascistas em plena atividade e financiados de um lado pela União Soviética e, pelo outro, por Itália e Alemanha. No governo, Getúlio Vargas ia ficando cada vez mais confortável em sua cadeira de presidente e pouco afeito à ideia de deixar o governo por um processo eleitoral. O que faltava no tempo era uma presença grande de democratas no cenário político. O mundo todo vivia um período de autoritarismo em ascensão.
Pois mesmo sem licença para fazer uma manifestação no mesmo dia, a extrema-esquerda decidiu agir. Não foi simples — os grupos eram extremistas e um não reconhecia no outro legitimidade. Anarquistas consideram os comunistas autoritários, entre os comunistas stalinistas e trotskistas viviam em conflito aberto, um acusando a heterodoxia do outro, e de sua parte os socialistas tentavam contemporizar sem nunca ter sucesso. Só que, naquele início de outubro, todos escolheram ouvir o conde Francesco Frolla.
Conde mesmo, com título hereditário que muitos amigos usavam para se referir a ele. Tinha 48 anos, vinha de uma família nobre de Turim, fez-se socialista muito jovem. Havia sido companheiro de Mussolini no Partido Socialista Italiano antes da Primeira Guerra e, como deputado em Roma, Frolla viu de dentro do Parlamento a tomada de poder pelos fascistas. Aí partiu para o exílio e, em São Paulo, encontrou abrigo na comunidade italiana. Por ter sido uma testemunha da Marcha sobre Roma dos camisas pretas, todos os militantes prestaram atenção em seu alerta. Se o fascismo ganhasse as ruas no Brasil, ele afirmava, poderia terminar também no comando do país.
Era, aquele, um Brasil no qual os democratas eram mesmo raros.
A Praça da Sé, comprida, tinha numa ponta a Catedral ainda em construção, com não mais do que o primeiro piso erguido. O grande espaço vazio ao centro não era arborizado e, nos dias em que nenhum evento público ocorria, servia de estacionamento para longas filas de Ford Bigodes. Dois pontos, o bilhar Taco de Ouro e o Café Brasil, atraíam, à noite, artistas, jornalistas e boêmios. Era circundada por prédios, em geral, mais baixos do que os atuais. Mas já havia arranha-céus comerciais, com muitas saletas. Quase todos os sindicatos paulistanos tinham sede nestes edifícios, nos últimos andares.
O local perfeito para uma tocaia.
Durante a semana que antecedeu o domingo ensolarado de primavera, rifles melhores e piores foram sendo levados para os sindicatos. No sábado, quem sabia atirar foi entrando ao longo do dia e se acomodando nos escritórios para passar a noite. Quando o sol raiasse e a praça já estivesse cercada pela polícia montada para garantir a segurança do evento — o medo de confronto não era infundado — já não adiantava mais nada. Os atiradores, alguns de elite, estavam em seus postos.
Foi por volta das 15h30 que os integralistas chegaram em marcha, vindos da Avenida Paulista. A banda caminhava à frente, os tambores a toda, e os homens uniformizados jogavam bombas de barulho alto. Os espectadores que haviam se reunido pelas ruas transversais para assistir àquele evento novo, se assustaram. Sentiram o impacto como os fascistas planejavam. Marcharam os homens em blocos até a praça, e perante a catedral se perfilaram.
O primeiro foco de confusão veio de um dos cantos, quando um pequeno grupo comunista improvisou um comício. “Anauê!”, responderam em coro e uníssono os milicianos, mantendo a formação, estendendo à frente seus braços na saudação romana. “Anauê”, repetiram novamente, o sieg heil brasileiro. Um policial disparou tiros para o alto e desbaratou o foco. Então a banda puxou o Hino Nacional que os fascistas começaram a cantar numa só voz.
Foi quando começou.
Os tiros de fuzil vinham do alto. Eram Mausers alemães, os utilizados pelo Exército. Quando o primeiro integralista caiu ferido, a desorientação se impôs. As mulheres integralistas que haviam se distribuído pela escadaria da catedral deram a mão às crianças e recuaram. Na sequência, os músicos da banda militar, tomados pelo pavor, desfizeram forma — e todos, juntos, buscaram refúgio dentro da catedral ou pelas ruas laterais. Alguns dos verdes, revólveres à mão, olhavam para cima tentando identificar a origem — impossível. Policiais levantaram seus fuzis, suas metralhadoras, atirando também para cima, a esmo, enquanto o pânico ao som de estalos, rajadas e o assobio do vento assumiu a direção da parada. Começaram todos a correr de um lado para o outro. Conforme iam percebendo que suas camisas verdes os transformavam em alvos, foram as desabotoando e lançando ao léu. Como todo pano aberto ao vento, subiam ligeiro e lentamente caíam no chão.
Vendo de cima, alguém logo percebeu. Aquela praça, aquela gente correndo de um lado para o outro em pânico, aquelas camisas em seu voo baixo. Tudo parecia um galinheiro que de tranquilo se desordena rápido quando um homem entra. No dia seguinte, o humorista Apparício Torelly, Barão de Itararé, pôs numa manchete de jornal: “um integralista não corre, voa”. E assim entrou para o vocabulário corrente do brasileiro o apelido do qual os fascistas nunca se livrariam. Galinhas verdes.
Os líderes dos homens de verde não chegaram a discursar. Seu plano era demonstrar força, terminaram percebidos como fracos perante o público. Na Batalha da Praça da Sé, como o evento terminou conhecido, morreram um estudante antifascista, três integralistas e três policiais.
O que a extrema-esquerda fez em 1934 é inimaginável, hoje. Mas quando um movimento político extremista se propõe a demonstrar força nas ruas por números, corre sempre o mesmo risco. Se não der tudo certo, pode terminar se mostrando fraco. Ou, por sua própria ação, revelar seu extremismo para quem ainda não percebeu sua real natureza. O risco no 7 setembro, claro, é de que os fascistas atuais partam para ação.