A liberdade que Elon Musk quer

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Elon Musk opera com duas moedas: o dinheiro e o ressentimento. Ou talvez sejam até dois lados de uma mesma moeda.

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Musk construiu sua imensa fortuna com seus privilégios e sua sagacidade para os negócios. E, quando comprou o Twitter, gastando uma quantidade obscena de bilhões — a ponto de brevemente se arrepender e tentar desistir da compra — estava comprando a arena pública mais relevante do momento. Nada menos que isso.

O Twitter não é a maior rede social do planeta. Não é a mais popular entre os jovens. Não é, nem de longe, a mais lucrativa. Sua relevância vinha de quem ali estava. Eram formadores de opinião de diversas modalidades. Jornalistas, políticos, empresários que escolhiam a pauta do dia e indicavam os caminhos das discussões que realmente importavam. Ou que eles faziam crer que importavam.

Desde que Musk assumiu o controle do Twitter, movido por ideologia e por interesse, o que ele se propôs a fazer foi derrubar quase todos os instrumentos de controle e moderação da rede.
Tem uma parte tóxica que é bastante óbvia nesse movimento. Mais pornografia, mais incitação ao ódio, mais violência.

Mas tem um bem mais sutil. Num ambiente assim, fica mais fácil multiplicar também os ressentimentos de quem se vê afastado da democracia liberal. De quem enxerga nos valores democráticos um impedimento para seu sucesso pessoal. Ou a frustração de seus próprios valores.

O que uma rede social sem qualquer filtro ou moderação faz é transformar problemas complexos em extremismos simplificados.

Então, aquele jovem que está com dificuldade de se encontrar na vida, de vislumbrar uma carreira ou um relacionamento, vai ao Twitter, ou ao X hoje, e encontra ali seus pares falando exatamente isso, enquanto agridem as mulheres de toda forma.

A mulher que quer proteger seu núcleo familiar vê nos tuítes homofóbicos e transfóbicos a expressão de seu temor.

O trabalhador que está ali, na luta diária pra pagar suas contas, sem compreender muito bem a complexidade do sistema financeiro atual, acha que os imigrantes precisam mesmo ser separados de seus filhos e mandados de volta pra casa porque estão atrás de seu emprego, sem querer discutir o tema um pouco mais a fundo.

E ai de quem tentar regulamentar o que pode ou não ser dito ali. Liberdade absoluta, sempre.
Musk sorri. Enxerga nessa dicotomia o caminho perfeito para seus negócios e suas crenças libertárias.

Desafiar decisões judiciais do Brasil, sejam elas bem embasadas ou não, é errado e ele sabe disso. Qualquer um sabe. A mídia tradicional diz isso, a independente também — e tem coisa mais rara do que esse tipo de consenso?

O dissenso está nas razões por que ele faz isso. Tem quem ache que é para proteger a liberdade de expressão a qualquer preço. Tem quem ache que é como parte de uma estratégia da rede global da extrema direita ou para atacar a soberania nacional. Tem ainda quem acredite que é para desafiar a “ditadura da toga” imposta por Alexandre de Moraes. É tudo ao mesmo tempo agora. Só que com um único interesse: o seu próprio.

Interessa a Musk uma “liberdade” absoluta. Mas não a de expressão. A de não ter qualquer regulamentação. Interessa a Musk o sucesso da extrema direita porque hoje é ela que promete esse tipo de liberdade. Interessa a Musk enfraquecer a Justiça dos países que representam algumas dificuldades a seu estrondoso sucesso — mesmo que simbólico.

Cá entre nós, o Brasil não é onde Musk faz mais dinheiro, o X certamente não é seu negócio mais rentável. Mas, sim, o Brasil tem potencial para ser um mercado importante para alguns de seus negócios. E o X é onde ele opera o ressentimento. Os dois lados da moeda do poder.

Eu sou a Flávia Tavares, editora do Meio. Você ainda usa o Twitter? Ou se cansou dessa batalha incessante do “bem contra o mal” que as redes promovem? Você sente falta de conversas mais longas, com visões de mundo que, em vez de só simplificar, buscam contemplar mais lados, com mais profundidade? É isso que o jornalismo do Meio faz. Há quem nos acuse de dois ladismos ou de falsas equivalências. Não se trata disso, não. Se trata bem mais de multiladismos, porque nada é só duas coisas, né? E os espectros políticos não são equivalentes. Mas a política é um sistema em que as práticas têm pontos e interesses em comum muitas vezes. E a gente precisa falar disso sem pudor, mas sempre defendendo a democracia e a justiça social. Assine o Meio e apóie nosso jornalismo.

VINHETA

Falar de Elon Musk e Alexandre de Moraes sem cair no fla-flu da política é tão difícil, mas tão difícil que eu tive de recorrer à filosofia política. Calma, calma, não desliga! Juro que é menos cabeçudo do que parece!
Mesmo porque eu fui no popstar da filosofia política, o Michael Sandel, que eu realmente admiro e já entrevistei no Meio. Ele é professor de Harvard e autor deste livro, O Descontentamento da Democracia, que foi relançado no ano passado. Recomendo demais se você não tem medo de desafiar algumas concepções já formadas.

Uma das teses do livro é que capitalismo e democracia precisam ser conciliáveis e, para isso, a democracia precisa se remodelar. Encontrar novas formas de conquistar os descontentes com o rumo que o mundo tomou. O preço de não fazer isso é a ascensão da extrema direita, que nada de braçada nesse ressentimento.

O capitalismo também precisa de novos parâmetros. Parte do que foi defendido como inevitável ou até benéfico nas últimas décadas pelo sistema capitalista aprofundou as desigualdades e as injustiças.

E o que poderia promover esse reencontro entre os cidadãos e a democracia, tão fundamental nos dias de hoje, é o que ele chama de economia política da cidadania. Não é destruir o capitalismo e adotar o socialismo. Mas passa, certamente, por responsabilizar e regulamentar a atuação de grandes corporações, diminuindo sensivelmente seu poder político.
Eita conversinha difícil, né? Vamos lá.

O capitalismo é um sistema econômico, que organiza a vida produtiva tendo como objetivo o lucro particular.

A democracia é um regime político, pensado para empoderar cidadãos para que eles compartilhem o governo, ou se autogovernem, no sentido de “todo poder emanar do povo”, sabe? Participem mesmo.

Qual a forma saudável de conciliar o sistema econômico que temos com o regime político que queremos? Impedir que capitalistas grandes demais exerçam o pleno domínio político de maneira a explorar cidadãos e interditar sua cidadania. Manipular seus direitos. Distorcer suas percepções da realidade e suas oportunidades.

O indivíduo que está ali achando que tuitar o que lhe vem à cabeça é exercer plenamente sua cidadania, sua liberdade de expressão, está nas mãos de um bilionário que manipula os algoritmos e tenta manipular a Justiça para conseguir nada mais do que lucro e poder para si e suas empresas.

A democracia não é a economia por outro ângulo. Liberdade para consumir e lucrar não é o mesmo que liberdade cívica, para construir sociedades mais justas e igualitárias.

A noção de justiça foi se tornando consumista. Um país justo passou a ser aquele onde todos têm liberdade para perseguir metas financeiras capazes de abastecer seus desejos de compra. Só que, nessa lógica, misturada ao mito da meritocracia, também passa a ficar justo que o mais forte faça tudo a seu alcance para prevalecer. E, claro, sempre prevaleça.

O papel do Estado, e de seus três Poderes, foi diminuído. O do cidadão comum, então, nem se fala. O senso de justiça social, de democracia cidadã, de vínculo com o compatriota, tudo isso foi ficando pelo caminho.

Então, as mesmas pessoas que lutam diariamente por ascensão econômica e essa “liberdade” são as que se ressentem de dificilmente atingir o sucesso pleno. Mesmo que melhorem suas condições financeiras, fica sempre uma frustração, um sentimento de que falta algo. Ou melhor, um ressentimento. Porque a sociedade como um todo não melhora. O que falta é pertencimento, é engajamento na democracia que devia ser o cenário dessa prosperidade.

E por que? Porque quem passou a ditar as regras, a ter o poder foram as grandes corporações, em especial as de tecnologia, que dominam também o debate público, o humor das nações. E, claro, os bilionários por trás delas. Foi quem lucrou pra valer a ponto de se tornar inquestionável, inimputável, inquebrável. Foi quem modelou o sistema para ter salários e bônus astronômicos enquanto tornava inviável que um funcionário chegasse lá.

Mas sempre alimentando a ilusão de que, se aquele cidadão comum acordasse bem cedo, trabalhasse enquanto os outros dormem, não se importasse muito com o que a sociedade pensa e não tivesse o governo atrapalhando, ah, ele também poderia ser um bilionário um dia.
Então, o que fazem esses ressentidos? Elegem um bilionário como presidente. Idolatram um bilionário libertário que comprou a rede social mais relevante politicamente para usá-la como seu brinquedinho ideológico e seu instrumento de pressão. Criticam o “globalismo” sem notar que esses bilionários fizeram suas fortunas se aproveitando dele.

E aqui há um ponto importante. A globalização, que a extrema direita agora chama pejorativamente de globalismo, foi intensamente defendida por figuras que eles veneram, como Ronald Reagan e Margareth Thatcher. Depois, foi abraçada pela centro-esquerda também. Era vista primeiro como algo inevitável, depois desejável. No discurso otimista, abriria as fronteiras para mais conhecimento e cidadania. No prático, tornava mais fácil a vida de quem tinha bala na agulha: agora, seria possível levar empresas, fábricas e capital a países com mão de obra mais barata, leis trabalhistas mais flexíveis, mercados financeiros mais vulneráveis. E lucrar mais.

E na média se conseguiu um pouco de cada coisa. Mas, acima de tudo, se conseguiu criar bilionários com poder global e voz capaz de influenciar a política de não só um, mas de diversos países.

Não é à toa que Musk abomina a ideia de controle, regulamentação, leis. Isso não tem absolutamente nada a ver com liberdade de expressão ou ataque à soberania do Brasil — embora o efeito da desobediência a decisões judiciais seja desafiar um dos nossos Poderes, sem dúvida.

Mas Musk não se importa com isso. Mais do que qualquer coisa, Musk se importa em ter, ele sim, liberdade para agir como bem entender para ter lucro e poder. E, no estágio do capitalismo e das democracias em que estamos hoje, um equivale ao outro.

No momento, a forma mais eficiente de obter tal liberdade é se aliar à extrema direita, que substitui a democracia cidadã e os vínculos sociais pelo nacionalismo-cristão-meritocrático. Trump, Bolsonaro e quem mais ajudá-lo nesse propósito de fazer negócios sem amarras terão seu apoio apaixonado. Ah, mas se for o Partido Comunista Chinês está valendo também, tá? Ou a ditadura da Arábia Saudita. Tanto faz o regime político e ideológico. O que importa é o sistema econômico. Nem que o preço seja a democracia.

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