Como falar de Trump agora?

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A eleição presidencial dos Estados Unidos deste ano mudou radicalmente.

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O ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, sofreu um ataque a tiros no sábado. Foi levemente ferido na orelha direita, e se recupera bem. Trump foi confirmado como candidato republicano na eleição presidencial deste ano e há enorme expectativa por seu discurso no fim da convenção republicana, na quinta-feira.

Mas ele já deu sinais de como pretende agir daqui pra frente — ou pelo menos nesse momento mais imediato pós-atentado.

Em seu primeiro pronunciamento desde o ataque, Trump falou em união. Foi educado, agradecendo o telefonema que recebeu do atual presidente e seu potencial adversário, Joe Biden. “Esta é uma chance de unir o país inteiro, até mesmo o mundo inteiro. O discurso será muito diferente, muito diferente do que teria sido dois dias atrás”, Trump disse.

A reação instantânea de Trump ao tiro que levou de raspão foi outra. Numa sagacidade própria de quem está há décadas diante das câmeras e tirando proveito de cada oportunidade para projetar a imagem que deseja, o ex-presidente se levantou, assim que autorizado pelo Serviço Secreto, ergueu o punho e praticamente posou para a foto que deve definir essa eleição histórica. De sua boca, saiu o comando “Fight! Fight!” — ou “Lutem! Lutem!“.
O instinto de se confirmar como invencível, como “imorrível”, falou mais alto do que a estratégia de se conter ali no palco. Mas, conforme as manifestações das vozes mais relevantes da política americana foram se empilhando, sempre na direção de condenar qualquer tipo de violência seja contra quem for, Trump remodelou o seu tom.

Não se sabe se essa intenção de unir os americanos e de ser mais sóbrio é real. Também não importa. Porque estrategicamente ela é muito difícil de derrotar — e só vai se saber para valer se o sentimento era genuíno quando, talvez, for tarde demais.

O que o atentado a Trump faz não é lhe garantir a vitória na eleição porque os eleitores vão ficar com pena, se sensibilizar, e decidir votar nele. Há poucos sinais nas pesquisas que indicam que seja esse o efeito.

O que o atentado a Trump provoca é uma interdição, ao menos temporária, ao discurso mais agressivo dos democratas sobre o quão perigoso ele é para a democracia dos Estados Unidos e do mundo. É uma espécie de blindagem. E Trump já demonstrou que está pronto para usufruir dela.

Nunca foi fácil para a imprensa e para os adversários políticos equacionar como tratar Donald Trump. Em 2016, os veículos da imprensa tradicional americana pareciam subestimá-lo tremendamente. Davam a vitória de Hillary Clinton como certa, por supor que o país, que sempre se gabou de ser uma democracia tão bem acabada, não cederia à retórica divisiva e incendiária de Trump.

Passado o choque com sua vitória, a cobertura de sua presidência foi sendo feita de sobressalto em sobressalto, no famoso “é eita depois de vixe” com o qual nós, brasileiros, viríamos a nos habituar.

Então, em 2020, muitos veículos optaram por tentar diminuir o espaço cavado por Trump organicamente no noticiário com seus absurdos. É aquele dilema: o presidente da maior potência ocidental fala uma barbaridade, justamente para movimentar o noticiário e manter sua base excitada. Dá pra ignorar? Difícil. Mas se deve dar o palco almejado? Indesejável, né?

Depois do 6 de Janeiro, da invasão ao Capitólio, por quase dois anos Trump ficou confinado nas páginas policiais, para usarmos um clichê do jornalismo. O noticiário em torno dele era, na verdade, sobre as investigações dos muitos indícios dos crimes que ele teria cometido. Até que, conforme esses julgamentos começaram a acontecer, espertamente Trump voltou a usar a mídia a seu favor e a retroalimentar a imagem de que é perseguido pelo sistema, de que é uma vítima.

Bom, até sábado, estava relativamente fácil desconstruir essa narrativa. Era só empilhar as múltiplas vezes em que Trump atentou contra a democracia americana, quase invariavelmente diante das câmeras, como ao incentivar seus fiéis a invadir o Capitólio no dia 6 de janeiro. Ainda havia o telefonema ao secretário de Estado da Geórgia pedindo para ele “encontrar” mais uns votos para virar o resultado da eleição, por exemplo.

Os democratas estavam falhando em fazer isso não porque a ameaça que Trump representa não seja imensa e verdadeira. Mas porque seu próprio candidato, Biden, entrou numa espiral de erros que, numa eleição como essa, não dá pra se cometer. Nas últimas semanas, inclusive, a pauta toda da eleição era a discussão sobre se dava tempo de substituir Biden como candidato — e se ele finalmente toparia.

O que acontece agora? Cá entre nós, com o atentado a Trump, e sua esperteza de moderar seu discurso, essa estratégia fica muito, mas muito mais difícil. É disso que eu quero falar com vocês hoje.

Eu sou a Flávia Tavares, editora-chefe do Meio. Não anda nada fácil se manter realmente bem informado sem ser abduzido pelas loucuras das redes sociais, né? A gente entra no Instagram, no Twitter — sim, é Twitter que fala —, no TikTok e tem uma galera querendo fazer nossa cabeça com pouquíssimo cuidado, sem nenhum critério no que diz. O Meio faz exatamente o contrário. Não é que aqui você não vá encontrar análise e opinião. A diferença é que no Meio a gente baseia as opiniões em jornalismo, em dados, em informações checadas e rechecadas. A gente oferece uma curadoria diária desse jornalismo na newsletter gratuita — e inclusive fez uma edição extra dela no domingo — e reportagens e análises originais nas newsletters premium. Assine o Meio!

Um dos primeiros tuítes que eu compartilhei quando estava acompanhando a cobertura frenética da imprensa americana no sábado foi do cientista político holandês Cas Mudde. Ele é especialista em extremismo. E tuitou que não conseguia deixar de pensar no “electoral bump” ou no impulso eleitoral que Jair Bolsonaro tivera no Brasil quando levou a facada em Juiz de Fora, a um mês da eleição de 2018.
Claro que para parte dos meus seguidores, parte da esquerda brasileira e para pelo menos 33% da esquerda americana a tentação é a de ceder às teorias conspiratórias de que o atentado a Trump foi armado. Mas elas não passam disso, ok? Teoria conspiratória. Como no caso da facada de Bolsonaro também. Porque quem gosta de lidar com fatos e não quer se tornar um terraplanista político não pode assumir esse discurso se não há uma prova definitiva de armação. E não há. Simples assim.

Então, voltando ao planeta fatos, o que temos é o fato de que Trump foi, sim, ao que tudo indica pelas investigações até aqui, vítima de uma tentativa de assassinato. As razões do suspeito não estão claras. Suas inclinações políticas eram bastante confusas e mais sobre suas motivações deve ser descoberto aos poucos. É fato também que foi a direita radical, e o próprio Trump, quem mais abasteceu de gasolina o incêndio político nos Estados Unidos.
Também é pura teoria conspiratória imaginar que o Serviço Secreto americano tenha facilitado de qualquer maneira a atuação de um atirador. Novamente, até que as investigações estejam concluídas, não há qualquer prova nesse sentido — o que não quer dizer que não haja suspeitas de uma enorme falha no esquema de segurança do ex-presidente.

É incerto, ainda, se os trumpistas pelo país, muitos já organizados em milícias armadas e prontos para acreditar que o Deep State quer derrotá-lo, promoverão uma onda de violência em reação ao ataque.

O que já podemos fazer é analisar o cenário político em torno do que se sabe do atentado até aqui. Mais do que isso, do que se assistiu nas reações que se seguiram ao atentado e do que se conhece de cada candidato e de cada partido.
E o cenário é o seguinte: Trump vinha trabalhando duramente para colar em si a imagem de vítima. Ele não é uma vítima do Judiciário americano nos processos a que responde. Nem dos democratas que vêm apontando o quão autoritários seu discurso e suas ações são. Mas ele foi vítima do atentado. E merece ser tratado respeitosamente, mas não passivamente.

Acontece que, para a opinião pública, é difícil distinguir uma acusação da outra no calor do momento. Por isso, naturalmente, os democratas e mesmo a imprensa tendem a suavizar suas críticas. Ao menos por um tempo.

Especialmente se o próprio Trump se propuser a adotar um discurso mais ameno, quase como o de um estadista. É muito difícil acreditar que ele consiga fazer isso até as eleições. Não é de sua natureza. Tudo que Trump construiu politicamente até aqui foi na aposta da divisão, do ressentimento.

E o fato de que ele cedeu e acabou escolhendo o senador J.D. Vance para ser seu vice pode ser um indicativo de que essa “moderação”, muito entre aspas, deve ser temporária. Porque Vance é um isolacionista. Ou seja, é um político que prega que os Estados Unidos virem as costas para o mundo, se preocupem somente com o próprio país. Make America Great Again.

Vance é também um militante anti-aborto ferrenho, inclusive em casos de estupro e incesto. A agenda é também totalmente anti-imigração, em consonância com Trump. E, ainda por cima, Vance defende que a eleição de 2020 foi roubada e que a insurreição de 6 de janeiro foi uma revolta, não uma tentativa de golpe incentivada por Trump.

O Partido Republicano já foi completamente capturado por Trump. A convenção está rolando num clima de “não existe racismo nos Estados Unidos” e coisas do tipo. A Suprema Corte americana já cedeu a Trump um grau de imunidade sem precedentes, que ele já avisou que pretende usar a partir do primeiro dia de governo, em que vai ser um “ditador”. E outras instâncias do Judiciário estão prontas a seguir o mesmo caminho.

Além disso, o Projeto 2025, um extenso documento que mostra como a direita radical deve agir no governo Trump para aparelhar completamente o resto do Estado e modificar as instituições que faltam por dentro, está pronto para ser implementado.

Nada disso mudou, até onde se sabe. O que mudou, aparentemente, foi a disposição de Trump de gritar isso tudo aos quatro ventos quando uma postura mais comedida tende a favorecê-lo e a lhe entregar a Casa Branca.

O desafio agora é da imprensa e dos democratas de encontrar uma maneira de seguir alertando sobre o perigo democrático que um segundo mandato de Trump pode representar. Não é um perigo desprezível e ele não desaparece com o tiro de sábado.

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