Edição de sábado: Promessas em pó

Ao menor sinal de uma mudança de hábitos, uma enxurrada de novos anúncios. Você se matriculou na academia ou em outra aula qualquer de atividade física. De repente, num passe de mágica, ou no registro do seu e-mail no aplicativo daquele estabelecimento, lá vêm as mensagens. Bem, é verdade que talvez isso já tivesse acontecido quando você começou a pesquisar a escola ou a academia. Mas ali, entre tudo o que o algoritmo jura que você vai precisar na sua nova vida fitness, as roupas, os calçados e equipamentos para a sua prática, estão os suplementos alimentares. As promessas são sedutoras e bem pouco modestas. Vão de aumento da cognição e da memória a um abdômen sequinho e um cabelo volumoso. Os produtos podem ser consumidos em pó, em gel, ou em formatos mais modernos, como gominhas e caramelos.
Tanta novidade significa duas coisas: uma é que o mercado está indo bem. E outra é que há uma expectativa que melhore ainda mais. Um relatório da consultoria Grand View Research mostra que, no ano passado, o mercado de suplementos alimentares movimentou cerca de US$ 192,7 bilhões. A previsão até 2030 é de um crescimento de 9,2% ao ano, chegando a uma movimentação de US$ 327,4 bilhões.
Funciona?
Suplementos alimentares não são medicamentos e, por isso, não servem para tratar, prevenir ou curar doenças. Os produtos são destinados a pessoas saudáveis, apenas para fornecer nutrientes, substâncias bioativas, enzimas ou probióticos em complemento à alimentação. A definição é da Agência Nacional de Vigilância Sanitária e a categoria é regulamentada desde 2018.
A médica nutróloga e diretora do Departamento de Fitoterápicos e Nutracêuticos da Associação Brasileira de Nutrologia (ABRAN), Marcella Garcez Duarte, explica que os suplementos têm cada vez mais respaldo da ciência sobre a sua efetividade, desde que bem indicados. “Suplemento, assim como o nome diz, não substitui um hábito alimentar adequado”, diz. Marcella esclarece que os produtos podem ser aliados para muitos objetivos, do ganho de massa muscular à melhora da cognição ou da função intestinal, mas que são sempre “estratégias complementares” e “não são alternativas aos medicamentos, muito menos alternativa à dieta”.
A regra vale para qualquer tipo de suplemento. O mais popular deles, o whey protein (proteína extraída do soro do leite), por exemplo, pode ter diferentes aplicações em tratamentos, a depender do objetivos do paciente. “Tem toda uma ciência voltada à prescrição do whey protein, de acordo com faixas etárias, grupos populacionais e objetivos do paciente. A partir daí é que vamos definir se o melhor a usar é o concentrado, isolado, hidrolisado. Há horários de consumo mais adequados a depender do objetivo e uma série de outras particularidades, seja para perder peso, ganho de massa, hipertrofia”, diz.
Já outras substâncias podem ter aplicação ainda mais específica. Os extratos de cogumelos, por exemplo. “Existem famílias de cogumelos que funcionam como fitoterápicos, que têm a função nutrópica de melhorar e prevenir um declínio cognitivo acelerado”, explica a nutróloga. “Então, pessoas que têm um histórico familiar de declínio cognitivo precoce podem, sim, se beneficiar desse tipo de suplementos. Mas não adianta só tomar o cogumelo se não houver aminoácidos, magnésio, zinco, e vitaminas do complexo B na alimentação”, completa.
O professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) Gonzalo Vecina diz que não há registro de prejuízos à saúde por uso equivocado de suplementos, mas que é preciso controlar as expectativas em relação aos resultados. Quando a Anvisa criou a categoria, em 2018, ficou estabelecido que “em nenhuma hipótese, um suplemento alimentar pode apresentar indicação de prevenção, tratamento ou cura de doenças. Esse tipo de alegação é restrito a medicamentos e precisam ser comprovadas por outros meios”. Nesse contexto, Vecina aconselha que os consumidores tomem cuidado com as propagandas. “Eles não podem dizer aquilo que eles não têm como comprovar, mas eles podem sugerir. E aí esse limite entre sugestão e comprovação é muito estreito e ultrapassado o tempo todo”, alerta.
A sociedade da imagem
A internet é, provavelmente, o ambiente onde o limite entre sugestão e comprovação citado por Vecina é mais frequentemente ultrapassado. E, no ambiente virtual, na maior parte das situações, poder “sugerir” é mais do que o suficiente para vender um produto. “Quando o almoço é grátis, você é a sobremesa”, brinca o psicanalista Marcelo Veras, autor do livro Selfie, Logo Existo, ao ser questionado sobre o assunto. Ao falar do ambiente das redes, ele descreve um “balcão de negócios”, fala em “mutação do narcisismo”, e relaciona tudo isso aos medos mais antigos da Humanidade. “Essa ideia da vida saudável é muito mesclada com o horror a duas coisas que a sociedade contemporânea tem, que é o horror ao fracasso e um horror absoluto ao envelhecimento e à morte”, afirma.
“Narcisismo — que não necessariamente é pejorativo — é o modo como nós construímos a nossa imagem no espelho. Antes das redes sociais a preocupação era com a imagem na escola, no trabalho, na vida social. E agora é nas redes sociais, onde estamos sujeitos a críticas e desaprovações de pessoas que nunca vimos”, explica Veras. Nesse ambiente em que a aprovação do outro é o que há de mais importante, o sistema de anúncios passa a oferecer ao usuário produtos que vão fazê-lo ficar melhor na foto, seja no sentido literal, com a barriga mais sequinha, o cabelo mais cheio ou a pele mais lisinha, ou no figurado, performando melhor em qualquer área da vida. O que importa é o sucesso!
E aí entra a famosa compra por impulso. Ao falar sobre o limite entre o prometido e o sugerido pelas fabricantes de suplementos, o professor Vecina diz que é fundamental que o consumidor tenha “capacidade discriminatória para perceber a diferença entre o que pode ser um efeito terapêutico e um milagre”. Mas um aspecto apontado por Veras pode ser um obstáculo considerável no caminho do bom senso dos usuários. “Às vezes as pessoas compram porque o tempo de compreender não basta. O que a rede social faz é colocar você a apenas um clique da compra. Não é igual a você pegar o carro, ir até a loja, ou conversar com o farmacêutico”, explica.
Não é de hoje
“Você já tomou chá de Camomila pra acalmar?”, pergunta Vecina. O chá não é remédio, mas todo mundo já tomou, em algum momento, na intenção de se acalmar ou pegar no sono. É quase impossível dizer que o resultado vem da erva ou do ato de se sentar e tomar um chá quentinho em silêncio. “Eu acho que essas coisas que têm um limite na crença e que não tem comprovação científica a gente não tem como você sair proibindo”, defende. Vecina compara o uso de suplementos a plantas medicinais e fitoterápicos, disponíveis no SUS. “Há pessoas que solicitam o uso de vegetais na medicina, de acordo com a própria crença”, conta.
Questionada sobre o reflexo do movimento no mercado de suplementos no consultório, Marcella confirma que tem sentido o fenômeno. A nutróloga conta que, embora tudo que esteja “na prateleira da farmácia” tenha um nível de segurança garantido, muita gente chega ao atendimento com um saldo mais baixo na conta bancária, mas sem atingir o resultado esperado. “As pessoas estão procurando mais esses produtos. Mas infelizmente estão se auto suplementando e chegando aos consultórios ou com um não resultado daquilo que imaginavam ou eventualmente, por vezes até com efeitos indesejados”, conta.
Na ponta da psicanálise, Veras deixa a pergunta no ar: “a busca excessiva da saúde é um sintoma como qualquer outro, não é?”
Tempo quente no Polo Norte
Em outubro do ano passado, a Guarda Costeira dos Estados Unidos registrou uma cena que, poucos anos atrás, pareceria impensável: navios de guerra chineses cortando as águas geladas do Ártico. Era a primeira vez que Washington via a marinha chinesa operar nas imediações do Polo Norte, uma região de difícil acesso, traiçoeira e, até recentemente, domínio quase exclusivo dos oito países que compartilham fronteiras com esse vasto deserto de gelo no Hemisfério Norte.
Os navios chineses, escoltados por poderosos quebra-gelos nucleares russos, não pareciam ter intenção alguma de passar despercebidos. Nos deques, banners gigantes proclamavam de forma inequívoca que o Ártico já não era mais território alheio para Beijing. Um deles declarava: “Guarda Costeira da China dedica seu coração ao Partido, demonstrando lealdade no Oceano Ártico”.
A patrulha conjunta entre embarcações militares russas e chinesas não foi um ato isolado. Meses antes, em julho, o Comando de Defesa Aérea da América do Norte interceptou bombardeiros de longo alcance de ambos os países realizando exercícios próximo ao espaço aéreo do Alasca. Dois Xian H-6K chineses e dois Tu-95MS russos, todos com capacidade nuclear, sobrevoavam a chamada Área de Defesa do Alasca quando foram interceptados por caças F-35 americanos e CF-18 canadenses. O episódio terminou sem incidentes, mas deixou claro que o Oceano Ártico, outrora uma barreira congelada que separava superpotências, está rapidamente se convertendo em um novo teatro de competição militar global.
Calor acima da média
Essa disputa acirrada tem uma causa central: o gelo que define a paisagem ártica está desaparecendo. O Ártico aquece a uma velocidade até quatro vezes maior do que a média global desde 1979, e áreas que durante séculos permaneceram intransponíveis estão se tornando navegáveis por períodos cada vez mais longos. Cientistas estimam que, nas próximas décadas, o oceano poderá ficar praticamente sem gelo nos verões, abrindo rotas marítimas que, até pouco tempo, pareciam ficção científica. O potencial vai muito além do comércio: sob o manto derretido repousam vastas reservas de petróleo, gás natural e minerais raros, uma promessa de riqueza e um convite à disputa geopolítica capaz de remodelar o mapa estratégico do século 21.
O degelo já abriu ou está prestes a abrir três rotas marítimas que poderão reduzir drasticamente as distâncias entre o Ocidente e o Oriente, com impacto direto nos custos de transporte global. A mais avançada é a Rota do Mar do Norte, que corre ao longo da costa russa. Só em 2024 ela movimentou 37 milhões de toneladas de carga. Essa via encurta em até 7 mil quilômetros a viagem entre os portos de Roterdã e Tóquio, em comparação com o trajeto tradicional pelo Canal de Suez. É o equivalente a um terço da distância total.
A Rússia aposta alto no potencial dessa rota. Com investimentos massivos em infraestrutura, novos radares e uma frota crescente de quebra-gelos nucleares Moscou projeta que, em uma década, o volume transportado possa saltar para 270 milhões de toneladas. A parceria com a China é parte central dessa estratégia. Beijing tem investido pesado para garantir seu acesso à essa nova rota, construindo navios, quebra-gelos e financiando a infraestrutura que a Rússia constrói na região.
Estados Unidos e Canadá, por sua vez, concentram esforços na Passagem Noroeste, que serpenteia pelas ilhas árticas canadenses. Embora hoje o tráfego ali seja modesto — cerca de 20 a 30 navios por ano, limitados a um curto período de degelo de dois a três meses —, especialistas acreditam que o recuo contínuo do gelo poderá tornar a rota uma alternativa viável para grandes volumes de carga. Essa passagem oferece uma redução de até 20% no tempo e na distância em relação às rotas pelo Canal do Panamá.
Há ainda uma terceira via em perspectiva: a Rota Transpolar, que cruzaria diretamente o coração do Círculo Polar Ártico. Hoje, ela é inviável sem apoio de quebra-gelos, mas cientistas projetam que até 2050 ela poderá estar acessível durante grande parte do ano, prometendo encurtar de maneira significativa as distâncias entre os principais polos econômicos do planeta.
Riqueza (ainda) sob o gelo
As novas rotas são apenas uma fração das oportunidades comerciais e estratégicas que o degelo está revelando. Só na costa russa, que representa mais de 50% do Ártico, estima-se a existência de mais de 35 trilhões de metros cúbicos de gás natural, quase dez vezes o consumo global em 2024, além de 2,3 bilhões de toneladas métricas de petróleo, o equivalente a cerca de 17 bilhões de barris. Sob o permafrost que agora derrete, jazem também vastas reservas de terras raras, elementos essenciais para tecnologias usadas na transição energética.
Não surpreende que Moscou tenha acelerado a expansão de sua presença militar no Ártico. Nos últimos dez anos, o Kremlin reativou dezenas de bases abandonadas desde o fim da Guerra Fria, construiu novas instalações e intensificou sua cooperação militar com a China. Beijing, apesar de estar a milhares de quilômetros do Círculo Polar, já lançou seu projeto da Rota da Seda Polar, investindo pesadamente em navios quebra-gelos e infraestrutura dual, que pode atender tanto a fins civis quanto militares. Em 2018, o governo chinês autodeclarou-se um “Estado próximo ao Ártico”, um termo que sinaliza sua ambição de desempenhar papel ativo na governança da região.
Nos Estados Unidos e entre os membros da OTAN, a reação foi inicialmente hesitante, mas ganhou fôlego após a invasão russa da Ucrânia. As polêmicas declarações de Donald Trump sobre comprar a Groenlândia, território dinamarquês no Ártico, refletiam mais preocupações estratégicas do que meras ambições por recursos minerais.
Em 2024, o Pentágono publicou uma nova estratégia para o Ártico, admitindo que os EUA demoraram a reconhecer a importância geopolítica da região. O plano prevê o reforço das capacidades militares e uma presença mais robusta no extremo norte. No mesmo ano, a OTAN lançou a operação Ice Camp 2024, um exercício militar de alto nível envolvendo não apenas os Estados Unidos, mas também Canadá, França e Inglaterra, países com fronteiras ou interesses diretos na região polar.
Ao contrário da Guerra Fria, quando o Ártico congelado funcionava como um tampão natural entre Washington e Moscou, o degelo transformou a região em uma zona de competição ativa. As sobreposições de reivindicações territoriais entre os países do Ártico e a crescente presença da China adicionam camadas de complexidade a um cenário já volátil. A militarização do Ártico é mais do que uma disputa regional. O controle das rotas polares poderá definir quais nações dominarão o comércio global nas próximas décadas. O acesso aos recursos energéticos pode redesenhar o equilíbrio dos mercados mundiais. E a posição estratégica do Ártico o torna um elemento-chave para defesa antimísseis e dissuasão nuclear.
O gelo pode estar desaparecendo, mas a nova Guerra Fria que se forma sobre o Oceano Ártico pode revelar-se ainda mais perigosa do que a que dividiu o mundo por meio século. À medida que o planeta aquece, o mapa estratégico global também se transforma e o Ártico pode passar a ser o centro desse novo tabuleiro.
Esvaziamento coletivo
É feriado de 9 de julho em São Paulo. Uma quarta-feira fria. A segunda pré-exibição do novo filme do diretor e videoartista Lucas Bambozzi, intitulado Que Fim Levou a Multidão?, acontece numa sala na Ocupação 9 de Julho que, agora com cadeiras de cinema, vai passar a ser a sede do Cine Ocupa. Muitos simbolismos sobrepostos.
Ainda não é a versão final. Bambozzi tem feito essas exibições, sempre seguidas de conversas com a plateia, para refinar o filme antes que ele rode o circuito de festivais. A próxima, inclusive, irá acontecer na terça-feira, 15 de Julho, no Cine Bijou, com uma conversa entre Márcia Tiburi e Juliana Iemanjara, duas das personagens que dão depoimentos no longa-metragem.
Bambozzi investiga os diferentes aspectos das multidões em suas obras desde 2006. Mas um ponto de inflexão é a exposição Multitude, com curadoria dele próprio com Andrea Caruso. Um projeto que trazia tanto as artes cênicas e a performance quanto as artes visuais. E era aberto. Ao longo dos três meses de ocupação do Sesc Pompeia, em 2014, um grupo curatorial avaliava novos projetos que eram incorporados à exposição uma semana após terem sido apresentados, se aprovados.
Esses projetos artísticos, junto com a vivência das manifestações políticas pós-2013 e uma análise das transformações provocadas pela tecnologia nas esferas políticas, sociais e do trabalho estão no centro desse filme, que parte da premissa de que há um esvaziamento do conceito de multidão como forma de transformação do mundo. Mas como o próprio diretor diz, esse é um filme que abre essa discussão e que pode, inclusive, levar à conclusão de que a premissa não estava de todo correta.
Conduzido por uma trilha feita pela Nação Zumbi e manipulada pelos integrantes do Embolex, Que Fim Levou a Multidão? é marcado por uma edição que lida com a pluralidade de fontes e estímulos, e estrutura um pensamento de forma clara, mas a partir de uma colagem fragmentada como estes tempos acelerados em que vivemos. Conversamos no dia seguinte da exibição. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
Você chamou esse trabalho de filme-ensaio, não de documentário. Por que?
Esse é meu quinto longa-metragem, os outros são também ensaísticos. Mas esse, por ser um pouco mais atípico, com um tema amplo demais, achei que dava para arriscar chamar assim porque é um filme de caráter ensaístico e documental, mas é um formato que não sei como vai ser absorvido.
E como surge a premissa deste filme sobre o que houve com as multidões?
Nos últimos tempos eu fiz muitos projetos ligados à multidão. A primeira que eu fiz, em 2006, era uma multidão que não avançava. Antítese da ideia de uma multidão que fez acontecer coisas como a queda da Bastilha ou aquela do cartaz do 1900 do [Bernardo] Bertolucci, com os camponeses chegando na cidade e dizendo que agora querem participar da vida pública e política. Era para uma projeção em grande escala, em loops que ficavam como uma instalação na fachada do Sesc Pinheiros. Mas instalações são meio ingratas. Você faz para um espaço e depois nunca mais encontra outro lugar pertinente para repeti-la. E fui também participando de outras ideias de multidão. Desde 2013, passei a gravar toda manifestação acontecia em São Paulo quando eu estava na cidade
As da direita e as da esquerda?
Só as de esquerda, as que se encaixam nessa ideia de multidão transformadora, que buscam a transformação por um bem comum. As da direita não buscam o comum, querem a manutenção de privilégios ou um embate com ações progressistas. Mas comecei a pensar que deveria ir nas da direita porque, como o [psicanalista] Christian Dunker fala no filme, elas se confundem com esse conceito de multidão. Também estou muito interessado na ideia de que às vezes artistas e músicos traduzem multidão de outras formas. De um jeito diferente do Antonio Negri que escreve uma trilogia sobre multidão – Império, Multidão e Bem-estar Comum.
O pensamento do Negri é que dá a direção filosófica no filme, certo?
Sim, mas no final corre o risco de ser uma premissa falsa, porque é como se a gente já partisse da ideia de que não existem mais multidões, que elas acabaram. Há uns dois anos, parecia ser uma verdade, mas não é hoje, na semana passada, no mês passado. Interessante que as multidões ligadas ao entretenimento também podem ter esse caráter que está no cerne do pensamento do Negri, de que essa comunhão pode ser redentora, transformadora. Aí a gente foi buscando uma aproximação. Poderíamos ter usado o BaianaSystem, mas no filme usamos uma trilha da Nação Zumbi gravada ao vivo.
O filme faz uma distinção entre multidão e massa. Não pude deixar de pensar no Massa e Poder, do Elias Canetti, escrito após a experiência nazista, que justamente tenta entender a manipulação popular quando reunida em massa. Qual é essa diferença?
Tem uma fala que o Dunker diz “Toni Negri morreu e ninguém falou”. Antes, está meio coberto pelo som e ele diz “Elias Canetti morreu e ninguém falou". Quando eu coloquei a premissa para o Dunker, ele endossa a visão do Negri, que é a que eu sigo. Estive com o Negri umas quatro vezes e me interessa a maneira de ele incluir outras visões que não são as acadêmicas, filosóficas e sociológicas como constituintes dessa multidão. Juntando um pouco de Deleuze, Marx e Spinoza. Isso me fascinou. No filme, o [filosofo Vladimir] Safatle não endossa essa visão. Ele não acredita que a visão da multidão em contraposição às massas não seja algo a se considerar para entender os movimentos sociais hoje, as relações de trabalho. Ele continua falando do proletariado, aquele das fábricas. Para o Negri e o [Maurizio] Lazzarato, o novo proletariado é o trabalhador de serviços imateriais, que está na rede desproduzindo, gerando a riqueza das big techs. Tem um trecho do Negri em Paris conversando com trabalhadores em 2005, explicando que se você faz parte da multidão e é explorado, você também tem dentro de si a responsabilidade de algum tipo de transformação, de mudança. Essa é a visão que tem sido minada.
Minada como?
Isso é muito intrigante de pensar. Foi Minada por outros filósofos com novas teorias, pelas agruras do capital ou por que tenha caducado mesmo? A resposta que eu teria para isso está numa fala de um cara que participa de um dos filmes que fiz durante a Virada Cultural, em que eu estou dirigindo uma multidão. Depois da filmagem, estou agradecendo os participantes e essa pessoa dá um depoimento sobre o que ela sentiu. Primeiro ela fala sobre estar junto na filmagem, mas depois começa a dizer que cada um tem uma forma de se manifestar, que cada um faz um gesto, se coloca de forma diferente e ao mesmo tempo está junto. E está fascinada por isso. Está ali descobrindo a alegria de uma multidão política e não a do culto da igreja, ou do show, da festa. Mesmo sabendo que os shows podem ser transformadores, se a pessoa deixa se levar pelo coletivo, se não está pensando só na própria alegria de estar ali e poder tirar uma selfie. Essa é a visão que precisa ser resgatada. Não é exatamente uma teoria, mas um entendimento de coletividade que parece estar enfraquecendo.
Como um filme-ensaio, ele é marcado por uma estrutura argumentativa, como você a elabora?
A estrutura do filme está ligada a um projeto que não vingou de fazer um programa com a Sesc TV, ligada à exposição Multitude, da qual fui um dos organizadores no Sesc Pompeia. E existiam as questões abordadas na exposição em três episódios: a ideia de massa e multidão, a ideia de derrocada, de algo tirando o poder dessa multidão, e uma ideia de redenção. Eu acrescentei outros dois atos, que é a premissa, esse primeiro capítulo meio didático porque eu queria dialogar com mais gente, não ser hermético, filosófico, sociológico. E acrescentei também o capítulo das tragédias, tanto as ligadas ao extrativismo mineral, que está intimamente ligado à produção tecnológica, quanto as que acontecem na comunicação e que sequestram as nossas ágoras e impactam as perspectivas de multidão nas redes. Depois da compra do Twitter, e da conivência das big techs com o capitalismo da era Trump é muito difícil que a gente consiga produzir alguma transformação pelas redes sociais. Mesmo que seja essa dos 99% contra 1%. A guerra maior hoje parece ser dos ricos contra os pobres, não a dos pobres contra os ricos.
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Acompanhar as idas e vindas da política dá fome, como mostram os interesses dos nossos assinantes. Confira as notas mais clicadas esta semana:
1. Meio: Ponto de Partida - O bolsonarismo está fazendo mais barulho que nunca, mas, na avaliação de Pedro Doria, esse é um sinal de que ele está no fim.
2. Panelinha: Além de ser um absurdo de gostoso, este arroz com cogumelos e tomate nos poupa trabalho, pois é feito em uma única panela.
3. Panelinha: Quer impressionar alguém com um dejejum especial? Experimente estes ovos mexidos com tomate grelhado e farofinha de pão.
4. Meio: Novas versões para os clássicos setentistas Superman e Emmanuelle dominam as estreias nos cinemas.
5. Meio: Ponto de Partida - Depois de muito apanhar nas redes, a esquerda ganhou uma na discussão sobre o aumento do IOF, avalia Pedro Doria.