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Edição de Sábado: Cabo de guerra

Fotos: Marina Ramos/Câmara dos Deputados; Marcelo Camargo e Paulo Peres/Agência Brasil; Carlos Moura/SCO/STF; Douglas Gomes/CD Presidência
Fotos: Marina Ramos/Câmara dos Deputados; Marcelo Camargo e Paulo Peres/Agência Brasil; Carlos Moura/SCO/STF; Douglas Gomes/CD Presidência

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O plenário da Câmara só se rendeu ao silêncio na quarta-feira quando o relógio deixava para trás as 21 horas. Entre cadeiras vazias, restavam menos de meia dúzia de jornalistas e um único deputado. Tinha ainda um segurança, que se aproximou pedindo que desocupassem o espaço para fechá-lo. Minutos antes, um papo cortava a quietude do salão. No centro da roda, o último parlamentar que ali permanecia: Guilherme Derrite (PP-SP), licenciado da função de secretário de Segurança Pública do governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) para assumir a relatoria do Projeto de Lei Antifacção, rebatizado de Marco Legal da Segurança Pública contra o Crime Organizado.

Apesar de carregar o peso de um dia que parecia não querer terminar, Derrite mantinha uma serenidade quase improvável. Também poderia ser o cansaço. Falava baixo, um pouco rouco, sustentando o olhar enquanto relatava a missão da qual fora incumbido. “Olha como Deus faz as coisas perfeitamente: estava me licenciando para vir a Brasília relatar o Projeto Antiterrorismo, mas no meio do caminho aconteceu a operação no Rio de Janeiro e o presidente Hugo Motta me escolheu para relatar o marco legal”, disse. A narrativa que apresentava roçava o acaso, mas delimitava, sobretudo, a reorganização às pressas do tabuleiro político.

Em reação à Operação Contenção, o Executivo enviou ao Legislativo o PL Antifacção, e Derrite foi designado para costurar um texto que unisse o que havia de “melhor” nas duas propostas, contou. Assim, o projeto que hoje não apenas ocupa o centro da disputa política, mas domina o debate nacional sobre segurança pública, tema que deve pautar o pleito de 2026, caiu em seu colo no olho do furacão.

“Eu não sou perfeito, ninguém é perfeito, só Ele”, continuou. Apontou para a cruz pendurada no centro do plenário. Era a partir dessa convicção, dizia, que se dispunha a ouvir o governo Lula (PT) e sua base, a oposição, governadores, lideranças e bancadas da Casa, além de representantes da sociedade civil para construir o texto que, naquela mesma noite, chegava à quarta versão — e que, ainda assim, não agradava a ninguém.

A votação prevista para quarta foi adiada. A cada frase que Derrite disparava, porém, a promessa de um diálogo amplo soava mais vazia. Para alcançar o “potencial máximo” do projeto, o deputado assegurou ter deixado de lado qualquer tentativa de politização e adotado um caminho estritamente técnico. Como prova, citou um encontro realizado horas antes com o secretário-executivo do Ministério da Justiça e Segurança Pública, Manoel Carlos de Almeida Neto. Fez, contudo, questão de desvincular o interlocutor do governo: “Ele é meu amigo pessoal. Estava lá como pessoa física, não como pessoa jurídica”, insistiu.

A defesa de que conduzia tudo em bases técnicas também destoava do tom que adotara pela manhã, durante a sessão no Senado em homenagem ao governo do Rio e aos policiais mortos na operação. Ali, fizera um discurso inflamado contra o projeto enviado pelo Ministério da Justiça. “Foi difícil achar o que tinha de bom”, proferiu, acusando o governo federal de propor redução de pena a integrantes de organizações criminosas. Reclamou também das críticas de que estaria atuando por ideologia. Entre ataques à “narrativa mentirosa” de que seu texto retiraria prerrogativas da Polícia Federal (PF) e a promessa de entregar ao plenário um projeto “técnico”, terminou às lágrimas. No diálogo ao fim do dia, relativizou o que dissera mais cedo: “Ah, ali era o espaço do discurso político”.

Derrite também negou qualquer conversa com o ministro Ricardo Lewandowski: “Cá entre nós, ele não entende de segurança, é um constitucionalista”. Como se segurança não estivesse contemplada na Constituição. E deixou escapar um traço de irritação quando confrontado com a ideia de que seu texto se aproximava, dia após dia, da versão original gestada no Ministério da Justiça. “Como está parecido? Me diz no que está parecido. Me responde. Não tem nada que vem de lá”, reagiu, elevando o tom. Logo depois, recuperou a sobriedade e se despediu.

A calma, porém, duraria pouco. “Não tem o texto, tá? Vocês estão me irritando. Não quero ficar irritado, por favor. Eu já falei que não quero falar com a imprensa. O que vocês querem que eu faça? Quer que eu brigue? Quer que eu xingue vocês?”, disparou no dia seguinte, ao ser novamente questionado pela imprensa sobre a nova versão da proposta.

A irritação não é gratuita. Nos corredores do Congresso, o apelido de “Derrete” pegou. Seus relatórios, incapazes de agradar a qualquer grupo, não se sustentam nas negociações políticas. Isso pesa ainda mais quando as tratativas ocorrem no centro de um palco onde a eleição do próximo ano já está em ensaio geral. E onde os atores disputam, abertamente, o protagonismo. Para enxergar com precisão quem são, e o que querem, é preciso alguns passos atrás.

A cronologia da lambança
“Temos muita tranquilidade de defendermos tudo que fizemos ontem. Queria me solidarizar com a família dos quatro guerreiros que deram a vida para salvar a população. De vítima ontem lá, só tivemos esses policiais.” Foi assim que o governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro (PL), se colocou diante do país inteiro em 29 de outubro, um dia depois da megaoperação contra o Comando Vermelho que deixou 121 mortos nos complexos da Penha e do Alemão.

A operação orquestrada sob sua batuta atravessou o país com força suficiente para alavancar a centralidade da violência no debate público. De outubro a novembro, o percentual de brasileiros que apontam a violência como o maior problema passou de 30% para 38%, segundo a pesquisa Genial/Quaest. Entre os 67% que aprovam a operação e os 25% que a desaprovam, o tema monopolizou as discussões.

O rosto de Castro, até então pouco lembrado, passou a estampar jornais e posts, circulando em conversas de bar e debates acadêmicos. Na política, ganhou protagonismo no campo da direita. No dia seguinte, governadores aliados aproveitaram a oportunidade para dividir os holofotes: Ronaldo Caiado (União), Romeu Zema (Novo), Jorginho Mello (PL), Eduardo Riedel (PP) e a vice-governadora do Distrito Federal, Celina Leão (PP). O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, participou de forma remota, enquanto Castro anunciava a criação do “Consórcio da Paz”.

“Acabei de sair de uma reunião com diversos governadores, parabenizando a operação. Ontem pode ser o início de um grande processo no Brasil”, anunciou. E concluiu com o aviso que selava o sentido político do movimento: “Aquele que não entender que a segurança pública é o maior problema do Brasil hoje vai se arrepender e pedir perdão à sociedade. É por isso que o Rio de Janeiro sai na frente.” A tônica estava dada. O palco nacional, até então centrado em Brasília, no Planalto, de onde Lula busca a reeleição, e em São Paulo, onde está o maior catalisador da direita, apontado como um dos principais nomes a enfrentar Lula, virou-se para o Rio.

Não que Castro seja, de fato, uma peça no tabuleiro presidencial. Cada um aproveita seu protagonismo para traçar os próprios passos. “A cadeira dele no Senado já está garantida. Se matar mais uns 300, quem sabe, até vira presidenciável”, confidenciou nesta semana um líder partidário aliado a Castro.

Enquanto a ofensiva vinha das terras fluminenses, o Palácio do Planalto se manteve cauteloso, evitando uma disputa midiática com Castro. Lula, nem tanto. No início do mês, em entrevista à imprensa internacional, classificou a operação como uma “matança” e pediu uma investigação paralela, autônoma. A segurança pública exigia agora uma resposta à altura de quem chefia o Executivo. Ao passo em que a principal aposta da gestão, a PEC da Segurança Pública, permanece travada no Congresso desde abril, era preciso parir uma ação concreta, capaz de repercutir politicamente. O Planalto teria de encontrar um jeito de encampar a bola em disputa no campo da direita. A resposta veio no último dia de outubro, quando a Casa Civil enviou ao Legislativo o PL Antifacção.

A versão original do projeto mexia na Lei de Organizações Criminosas, vigente desde 2013, elevando as penas para quem financia ou participa de facções: de 3 a 8 anos para organizações criminosas, de 5 a 10 anos se houver organização criminosa qualificada, e de 8 a 15 anos para facções criminosas. Criava, justamente, este tipo penal: “organização criminosa qualificada”, ou seja, desenhava um novo molde para enquadrar facções criminosas, com pena máxima de 15 anos quando houver domínio territorial baseado em violência, coação ou ameaça.

O texto permitia também redução de penas de um sexto a dois terços para réus primários com “bons antecedentes”, que não exerçam liderança, promoção ou financiamento da organização — ponto explorado por Derrite em seu discurso no Senado. Para líderes de facções, a lei previa aumento da metade até o dobro da pena, e acréscimos de dois terços ao dobro em casos envolvendo menores, funcionários públicos ou uso de arma de fogo.

A cartada do Planalto estava dada. E Tarcísio de Freitas? Cadê Tarcísio? Se Castro precisava de cada milímetro do fôlego que a operação lhe deu, Tarcísio, já em posição de destaque, sabe que cada palavra ou gesto pode lhe custar caro no longo prazo. Preferiu medir sua força das coxias. Enviou, sob a guarda de Motta, seu secretário de Segurança para comprar a briga. E o projeto do Executivo caiu nas mãos do adversário. Derrite chegou com os pés na porta.

“Como, no primeiro dia em que o cara chega, já entrega um relatório sem compor com ninguém? É muita falta de traquejo político”, avaliou outro líder partidário. Pois foi assim. Horas depois de ser anunciado como relator, Derrite apresentou seu primeiro parecer. Propôs equiparar facções criminosas a organizações terroristas, argumentando que ataques armados e domínio territorial produzem efeitos sociais semelhantes aos do terrorismo. Para o Planalto, aquele ponto deixaria o Brasil vulnerável à interferência externa. Determinou, ainda, que a PF só poderia atuar em investigações de facções criminosas mediante pedido formal dos governadores. O Planalto nem precisou se mover muito. O relatório era, por si só, um tiro no pé. A PF reagiu. A opinião pública reagiu. Derrite recuou.

Para estancar a crise com a PF, já na segunda-feira, Derrite e Motta conversaram por telefone com o diretor-geral da PF, Andrei Rodrigues. Depois do diálogo, anunciaram mudanças: a corporação não dependeria mais dos governos estaduais; bastaria comunicar previamente as autoridades locais. As brechas para enfraquecimento do órgão permaneciam. Além disso, Derrite derrubou a equiparação das facções a organizações terroristas, mantendo apenas a alta de penas vinculada à Lei Antiterrorismo, não à Lei de Organizações Criminosas, como propunha o texto inicial.

Se Derrite teve tempo para refazer a redação, o governo também teve para preparar sua resposta. Passou a moldar a narrativa de que o projeto seria uma “PEC da Blindagem 2.0”, dado que “os gatos avisariam os ratos” sobre as operações, nas palavras de um líder da base governista. Mais uma vez, a reação da sociedade exigiu recuo.

A terça-feira começou tensa, com direito a perda de compostura de Hugo Motta na reunião de líderes partidários. Irritado com críticas do líder do PT na Casa, Lindbergh Farias, que o acusara de “furto com abuso de confiança” ao indicar Derrite, o presidente da Câmara bateu na mesa e afirmou: “A prerrogativa de indicar o relator é minha, e não vou recuar”.

Ele não, mas Derrite recuou mais uma vez. E veio o terceiro parecer. O relator retirou as alterações da Lei Antiterrorismo e não mexeu mais nas atribuições da PF, endureceu penas e criou tipos penais específicos para ações de facções. Mas o Planalto ainda não se dava por satisfeito: o texto determinava que bens e valores confiscados de facções fossem incorporados pelos estados e pelo Distrito Federal. A ministra das Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann, classificou o relatório como uma “descapitalização” da PF, por direcionar recursos de fundos federais aos estados. Se até o governo reclamava do texto, imagine a oposição, cujo principal desejo, a equiparação de facções criminosas, parecia estar a léguas de distância.

A quarta-feira de rachaduras
Na quarta-feira, quem subiu ao palanque do descontentamento foram os governadores. Durante um almoço na sede da Frente Parlamentar do Livre Mercado, no Lago Sul, o secretário licenciado engoliu seco e justificou seu recuo em equiparar facções criminosas ao terrorismo: a decisão, disse, visava evitar que o projeto fosse enterrado no Senado ou judicializado pelo governo Lula e considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF). À mesa sentavam-se Zema, Caiado, Jorginho Mello, e Celina Leão, vice-governadora do DF.

Castro, por sua vez, não estava ali para o arroz com lascas de amêndoas, a massa e a carne vermelha, nem para o bolo de chocolate ou o romeu & julieta. Sua ausência já era anunciada: no convite, aparecia como “a confirmar”, ao lado dos governadores Ibaneis Rocha (DF) e Eduardo Leite (RS). Apareceu apenas à tarde, na Câmara, para uma reunião com Motta. Ao chegar, ignorou a imprensa — mas deixou escapar uma risada de canto de boca e um piscar calculado ao ouvir: “Mas o projeto é do governo ou de vocês?”.

O primeiro a deixar a sala foi Zema. Disse que tinha um compromisso. Mas ficou para, sozinho, conceder entrevista coletiva. Diante dos microfones, declarou: “Estamos com este projeto que é um avanço muito grande, mas eu gostaria que fosse além. Essas facções controlam territórios, têm tribunais do crime… e não serem enquadradas como terroristas? Isso pra mim é terrorismo”.

Ninguém está disposto a dividir holofotes na pauta em que todos podem capitalizar. “Ele [Zema] não tinha compromisso nenhum — saiu antes para aparecer um pouco. Está apagado nessa pauta”, comentou um líder que permaneceu algum tempo na reunião. Pouco depois, os demais governadores também deixaram a sala. Todos, ao contrário de Zema, negaram ter discutido qualquer ponto do texto e pediram a Motta um prazo de 30 dias.

“Ainda que todos nós elogiamos o relator, a ideia de se discutir isso, nós, unanimemente, discordamos da rapidez deste projeto. Há de se ter um projeto que atenda o que os Estados precisam”, disse Castro ao microfone. Ele sugeriu que se vote o projeto entre 10 e 15 de dezembro, em plena análise do Orçamento de 2026 — um atalho para atropelar o governo federal. A pauta, que enfim quicava nas mãos da direita, não poderia morrer tão cedo; era preciso oxigênio para manter a narrativa sob seu comando.

O governo federal, lembre-se, também não se dispunha a votar a terceira versão do relatório. “O governo está com a faca e o queijo na mão. Conseguiu quase tudo no texto. Por que não quer votar? Eu sou da base, mas estão sendo burros”, desabafou outro deputado. Depois da reunião dos governadores com Motta, Derrite passou a ouvir as lideranças. “Mesmo com o apelo dos governadores, ele quer votar hoje”, ecoava pelos corredores. A expectativa crescia, o plenário enchia.

Até que Motta rompeu o silêncio. Não para anunciar a votação, ou sua postergação. Para defender Derrite. “Informei aos governadores que a decisão sobre o adiamento não seria apenas desta presidência. Seria uma construção política que respeita o relator, que tem se dedicado, tem sido técnico, tem cumprido o compromisso de não politizar esse debate, apesar de tantos ataques”, discursou. Disse que a decisão caberia a Derrite. E Derrite, ali mesmo, protocolou o quarto relatório. Mais um que não agradou. O plenário se esvaziou. Sobrou o relator e menos de meia dúzia de jornalistas.

A análise, marcada para a próxima terça, ainda terá de driblar os obstáculos da base governista e da oposição.

Mais exigências
Diante da quarta versão, a oposição ameaça ressuscitar as mudanças na Lei Antiterrorismo via destaques e quer acabar com audiências de custódia para reincidentes. A bancada do agronegócio articula brechas para enquadrar na lei movimentos sociais como o MST.

O governo, por sua vez, ganhou a incorporação dos valores apreendidos aos fundos da Polícia Federal — mas não levou o restante. O relatório continua sendo uma lei autônoma, não modificando a Lei de Organizações Criminosas, o que, para o Planalto, duplica a norma de 2013 e abre margem para “caos jurídico”. Outro ponto sensível, apontam as lideranças do governo: o artigo 12, do Capítulo IV, que institui uma ação civil autônoma de perdimento de bens – o que, segundo os governistas, blinda os chefes do crime ao tirar celeridade na apreensão dos bens.

Em meio ao ruído técnico e às versões que se empilham, persiste no governo um temor que não se dissolve: que Derrite carimbe a aprovação e entregue a Tarcísio uma vitória de envergadura nacional — justamente no terreno mais sensível ao eleitor, às vésperas da eleição. Do outro lado, o receio é espelhado: que o Planalto faça o movimento inverso e fature para si uma vitória de igual tamanho, esvaziando Tarcísio antes mesmo que ele entre na disputa. O cabo está esticado.

A COP30 espelha o mundo até na desigualdade

Entre as muitas contradições desta COP30, poucas são tão gritantes quanto a exposta na entrada da Zona Azul, o coração da conferência, onde as principais negociações ocorrem. No grande hall que dá acesso às plenárias, países de todo o mundo mostram o que estão fazendo para salvar o planeta em seus estandes. Quanto mais rico, poluente ou produtor de petróleo, maior e mais bem colocado está o país nessa passarela do clima. O cartão de visita são os pavilhões suntuosos de países como China, Arábia Saudita, Inglaterra e mesmo o Brasil — o sexto maior produtor de petróleo do mundo, sempre é bom lembrar. Aos países pobres, aqueles onde os impactos do aquecimento global são mais sentidos, a ONU ofereceu estandes na periferia dessa COP, em áreas onde mal chega o ar-condicionado, com iluminação ruim e pouca ou quase nenhuma decoração. “It’s all about money”, me diz uma diplomata da Tanzânia, que fez questão de esconder seu crachá e me disse chamar-se Manaidi Juma.

Em uma COP em que as falhas de infraestrutura cruzaram as fronteiras da tradição diplomática de apenas fazer reclamações de maneira reservada, o tema da distribuição dos estandes — ou, como chamam aqui, pavilhões — é um tabu. Pelo menos entre os países ricos e bem instalados, a ONU e o próprio governo brasileiro. Ninguém quer explicar por que a Índia ou a Alemanha têm estruturas e posicionamentos tão privilegiados, enquanto a maior parte dos países africanos, sul-americanos ou asiáticos foi enviada para os fundos do hall de entrada da Zona Azul.

No pavilhão saudita, repleto de itens dourados que reforçavam a ideia de suntuosidade de um dos países com altíssimo PIB per capita, não havia quem quisesse conversar sobre o assunto. Um dos organizadores chegou a me prometer uma entrevista, deixou-me sentado com ofertas variadas de cafés e água gelada — produtos disputados por aqui — por mais de 40 minutos. Ao final, disse que o representante saudita queria muito falar comigo, mas, infelizmente, as reuniões se estenderam demais. Pediu que eu voltasse. Voltei três vezes, mas o tal representante seguia em reuniões.

No pavilhão britânico, muitos sorrisos, muita gentileza, mas, novamente, a pessoa que poderia conversar comigo sobre o assunto não estava por ali naquele momento. A hostess inglesa foi gentil, deu-me um cartão e um conselho: “Mande um e-mail pra Londres, tenho certeza que colocarão alguém do nosso time de imprensa para falar com você”. Agradeci e, ao final, disse a ela que nós dois sabíamos que jamais me responderiam. Ela sorriu e, com delicadeza, disse: “Ohh, this is mean”. Mandei o e-mail. Nunca tive resposta.

Já os chineses se saíram com mais criatividade. Ao saber do que eu pretendia tratar, todos, repentinamente, passaram a dizer que não falavam ou não entendiam bem inglês e que não havia ninguém por ali para conversar comigo. A coisa mudava de figura, claro, ao mudar a pergunta. Se as questões eram sobre o que os países estavam querendo mostrar na COP, rapidamente tudo mudava. No pavilhão japonês, fizeram-me até enfiar a mão numa geringonça que prometia reduzir o calor simplesmente diminuindo a umidade. “Esfriamos uma área sem precisar refrigerá-la”, dizia o demonstrador — um inglês, daqueles bem ingleses — suando em bicas (assim como eu), chamado Tim.

A Secretaria Especial da COP30, a cargo do governo brasileiro, aceitou tratar do assunto apenas por e-mail, sem identificar um porta-voz e com uma nota assinada apenas como SECOP. O Meio fez perguntas sobre valores, critérios de escolha da localização e se houve um leilão pelas melhores posições no hall de entrada. A SECOP respondeu burocraticamente. As mesmas perguntas foram enviadas à assessoria de imprensa da ONU, que afirmou que as dúvidas deveriam ser endereçadas ao país-sede — no caso, o Brasil. A Secretaria Extraordinária da COP, como era de se esperar, jogou a bola de volta para a ONU: “Todos os países são posicionados pela ONU, por meio da UNFCCC, levando em consideração os aspectos políticos, culturais e operacionais de cada país, bem como dos escritórios da ONU, ONGs e organismos internacionais”, respondeu a secretaria, garantindo que não houve leilão entre os países para definir quem estaria no centro ou na periferia do hall de entrada.

Já na periferia do hall dos pavilhões, como em toda periferia, havia conversa, mas também medo. Assim como a diplomata da Tanzânia, muita gente estava disposta a reclamar, mas poucos revelavam seus nomes. Uma das exceções foi Grabielle Kabpax, responsável pelo pavilhão da Namíbia — um ex-protetorado do Império Alemão no sul da África, que só conquistou sua independência em 1990. “Olha, nem tenho palavras para descrever como estamos nos sentindo; nosso estande é mais quente que a Namíbia, nos jogaram aqui”, dizia ele, claramente irritado. Kabpax afirmava que os preços apresentados pela ONU tornaram inviáveis uma localização e um espaço mais amplos para divulgar seu país. “Essa disposição dos países na COP é um bom retrato do que é o mundo: os ricos na frente, os pobres atrás.”

A Mongólia, por exemplo, parece ter desistido de divulgar as ações e preocupações do país com o aquecimento global. Nos primeiros dias, o acanhado estande chegou a receber alguns representantes do país. Mas, ao longo da semana, tudo sumiu — até o painel com o nome do país. “Acho que não aguentaram o calor”, dizia Muhire, no estande vizinho de Ruanda.

A única exceção foi o Congo, país africano que tem uma das maiores florestas tropicais do mundo e é estratégico para os esforços brasileiros de criação de um fundo internacional de proteção às florestas tropicais, o TFFF. Vizinho ao Japão, à Inglaterra e à Itália, ninguém no pavilhão do Congo quis falar sobre como um país pobre conseguiu ficar tão próximo aos poderosos e poluidores. Em tempo: dos ricos com pavilhões vistosos na entrada da Zona Azul, nenhum aportou sequer um dólar no fundo que seria, para o Brasil, o grande legado desta COP.

Espelho, espelho meu

A novela gráfica Na Sala Dos Espelhos, da sueca Liv Strömquist, é um ensaio filosófico em quadrinhos que disseca a tirania da imagem e a ditadura da magreza na sociedade contemporânea. A HQ utiliza uma pedagogia de guerrilha para levar ao grande público um pensamento sociológico complexo, que bebe em autores como René Girard e Byung-Chul Han. A graça do quadrinho é que Strömquist consegue pintar com acidez uma linha que vai da obsessão estética da Imperatriz Sissi até a mercantilização da beleza na era dos likes, que tem um dos melhores exemplos em influencers como Kylie Jenner.

Idealizado e estrelado pela atriz Carolina Manica, com direção e adaptação das dramaturgas Michelle Ferreira e Maíra De Grandi, o monólogo Na Sala dos Espelhos, em cartaz no Sesc Ipiranga, traduz o ensaio de Strömquist para o palco por meio de um conflito pessoal e geracional. A peça acompanha a mãe da Nina — uma mulher que atravessa o climatério — enquanto enfrenta o desafio de criar sua filha pré-adolescente em crise com a própria aparência. O espetáculo aborda o tabu do envelhecimento feminino e a hiperexposição digital, usando o humor para tornar as densas reflexões filosóficas suportáveis ao público.

Conversei com Carolina Manica sobre esse projeto, os ecos na nossa sociedade e no seu próprio trabalho de atriz. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

A HQ é praticamente um ensaio filosófico em quadrinhos. Qual foi o principal elemento que precisou ser transformado na dramaturgia para que essa adaptação não perdesse a ironia e a inteligência da Lív Störmquist?
Essa era a chave. Sempre falo que a Liv faz praticamente teses de doutorado. Você lê um quadrinho dela e sai pensando melhor, aprende muita coisa. E aí como isso não virar um tédio ou uma colagem louca? Porque esse era o nosso desafio, e foi, na verdade, uma conquista das dramaturgas Maíra e Michele. Elas criaram essa mãe, e a história ganhou mais uma camada.

Mas como vocês fizerem para não virar um TED Talk no teatro?
Está tudo em cena. A gente pegou todos esses pensadores e pensamentos e colocou em situações. Quando você coloca isso em cena, só o signo da mãe que tem essa filha pré-adolescente e está passando por um processo de menopausa, você já tem todos esses conflitos e pensamentos que eles trazem. Eu não posso dar tanto spoiler, tem que ver, porque isso é uma das partes mais interessantes do espetáculo.

O interessante é que uma mãe na menopausa traz um contraste com a pré-adolescência. Como essa combinação se dá na dramaturgia?
Eu sou mãe de uma pré-adolescente e estou na perimenopausa. Então, assim, sou eu, né? O que ninguém comenta é que a partir dos 40 anos a gente realmente começa a entrar num processo de perimenopausa, de climatério, enfim, todas essas nomenclaturas que eu sinceramente não domino completamente porque é praticamente um almanaque. E a gente vai vivendo. Mas ninguém fala porque tem esse grande tabu. E os estudos todos são muito recenteso. Até fugi um pouco da pergunta.

A pergunta no fundo era sobre o contraste dessa questão, que não está no texto original.
O quadrinho tem o desafio da Kylie Jenner. E a gente desloca ele para uma mãe que chega em casa e vê essa criança que fez o desafio da boca. O desafio é real. É uma realidade muito possível você ser uma mãe que chega em casa e que vê o seu filho mutilado porque fez um desafio na internet. Então, a gente pegou essa realidade possível e trouxe para a peça na figura dessa mãe de 40 e poucos anos.

Esse é um texto que trata das questões da beleza, do culto ao like, de toda essa aceleração que vem do mundo digital. Como você trata desse mito da beleza olhando para sua filha?
Isso foi uma das coisas que me fez querer fazer esse projeto. Ele vem de uma evolução de muitas coisas que eu já estava fazendo. Quando fiz 40 anos, comecei aquele podcast Respire e Diga Sim. Ele partia da premissa do Jung, da individuação, que é quando você reconhece aquilo que realmente quer e como você está agindo. Eu chamava mulheres para perguntar quando elas falaram sim para elas mesmas. Isso começou a reverberar muito em mim. E comecei a observar muito essa questão da internet. Fiz o podcast para criar um conteúdo para minha rede social, porque eu não aguentava mais. Tudo que eu via era tão vazio, aquelas fotos com aquele monte de filtro, aqueles parâmetros inalcançáveis, aquela necessidade de chamar atenção através de um post de biquíni. Aí eu mesma comecei a me testar. A postar umas fotos de biquíni. Eu apaguei tudo já. Mas, enfim, queria testar o que acontecia com esse algoritmo. E aí a minha filha falava: “Mãe, você tá postando foto de biquíni, pelo amor de Deus”. E eu respondia: “Flor, é um corpo. Todo mundo tem corpo, né?”. Foi engraçado como isso mexia com ela também. Todo esse projeto parte da inquietação que vem do quanto essas postagens afetam a vida do outro.

Como atriz, você tem uma pesquisa com o corpo? Como ela é incorporada na peça, já que o corpo é central nessa crítica?
Sou uma pessoa padrão e tenho plena consciência disso. E isso foi uma coisa que eu questionei muito. Agora, estou envelhecendo igual a qualquer pessoa. Colocar isso em cena talvez permita falar dessa história, porque eu assumo: “Sua mãe está na menopausa, está envelhecendo, está cada dia mais cansada”. É uma mulher que fala: “Sou bonita, massa, mas e daí?”. A trajetória dessa personagem vai também por esse caminho. A beleza é efêmera, não garante nada. A gente vive uma pressão estética no mundo. Você entra no Instagram, no TikTok, e vê todo mundo buscando um lugar de perfeição. Como que a gente se liberta de provar pro outro que tudo bem envelhecer?

A própria questão de padrão é política. Como a peça traz isso?
Todo corpo em cena é um corpo político. No momento que você escolhe ser artista, você vira um veículo, um canal para transmitir algo. Então, tem uma responsabilidade gigante em escolher aquilo que quer falar. Obviamente todas essas questões sempre passam por inquietações pessoais, mas não podem ser só pessoais porque senão não são pertinentes, né? E tem essa doença que a gente vive com a rede social, com a dopamina que ela libera, com essa estética do belo. E aí vem a questão do belo e do sublime, uma coisa que estudei muito. Sou fascinada pelo Byung. Fui me aprofundar nele quando fiz a série Vale dos Esquecidos (HBO), em que os personagens eram imortais. Eu fazia a chefa, a rainha lá do negócio. E tinha essa coisa de eles ficarem congelados no tempo sem envelhecer. Então, eu fui estudar a estética do belo e cheguei naquele livro A Salvação do Belo. Comecei a compreender mais por que a rede social é tão palatável. É por que ela não te confronta. O belo só te satisfaz. Mas o sublime não. O sublime te confronta. E o sublime contém o belo. Porque ele não é só o estético. No momento que a gente escolhe estar em cena, a gente escolhe confrontar. Não que eu tenha pretensão de querer mudar as pessoas, mas quero conversar. Que pelo menos eu olhe no olho daquela pessoa e que a gente tenha alguma troca.

Você escolheu fazer um monólogo, mas defende que é um trabalho coletivo, Como funciona essa coletividade do teatro?
Uma atriz chegou para mim e falou assim: “Você vai fazer o monólogo, você está sozinha aí”. Eu falei: “Não, não tô sozinha. Não sou só eu no palco”. Porque se eu estiver sozinha não tem espetáculo. Ela insistiu que eu não contracenava com ninguém. Mas eu contraceno. Tenho um figurino que foi criado para a minha personagem, e ele tem que ser parte de mim. Eu tenho um cenário que foi criado para a personagem pelo Fábio Namatame. Eu tenho uma cama sonora criada por duas artistas fantásticas que são a Ava Rocha e Grisa, que contracena comigo o tempo inteiro. E eu tenho uma luz feita pelo Caetano Vilela, que é um privilégio. Então, se eu achar que eu estou sozinha, que sou só eu ali, não tenho peça. Você só tem teatro quando tem equipe.

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Papudinha, papilote, Pará, Ponto de Partida. Não é trava-línguas, são os interesses dos nossos leitores ao longo da semana. Eis os links mais clicados por vocês:

1. Metrópoles: As fotos da cela na Papudinha, onde Bolsonaro pode ficar preso.

2. CNN Brasil: Em homenagem à COP30, IBGE lança versão do mapa-múndi com Pará no centro.

3. Panelinha: Um delicioso papilote de frango para um.

4. g1: O antes e depois da cidade do Paraná que foi devastada por um tornado.

5. Meio: Ponto de Partida — Quem elegerá o próximo presidente?

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