Edição de Sábado: Cartão verde

Em 1931, quando os japoneses ocupavam a região chinesa da Manchúria, uma brasileira amiga da elite do Japão estava por lá para assistir à entronização do imperador fantoche Pu Yi (ele mesmo, O Último Imperador, do filme de Bernardo Bertolucci). Pagu, a inquieta militante, escritora e até repórter estava em andanças pela Ásia e recebeu uma missão do amigo, poeta e diplomata Raul Bopp: trazer soja ao Brasil. Ele tinha muita curiosidade acerca da semente originária da China, que já era cultivada em micro-escala no Brasil, pela colônia de migrantes japoneses. A soja de Pagu chegaria pouco depois, em 19 saquinhos. Mas as sementes não se aclimataram de imediato. Precisou de muita tecnologia para adaptá-las ao solo e ao clima brasileiros. O investimento deu certo, e bem quando a China se abria e começava a catapultar sua população gigante a melhores patamares de renda — e a mais consumo de proteína. Alimentar os chineses passou a ser mantra dos produtores brasileiros, que hoje enviam toneladas do grão todos os meses, exatamente no caminho inverso dos saquinhos da Pagu.

O problema é que o crescimento da área cultivada ameaça biomas por aqui. Agora, outra brasileira vai aportar na China para buscar alternativas que casem proteção ambiental e segurança alimentar para os chineses e, claro, brasileiros. Marina Silva, titular da pasta de Meio Ambiente e Mudança do Clima, deve ser uma das ministras em destaque da comitiva presidencial prevista para desembarcar segunda-feira em Pequim. Pode trazer na mala a assinatura com os chineses de um fundo de financiamento binacional voltado a combater as mudanças climáticas. E há a costura entre governos de uma declaração conjunta. “É fundamental para o Brasil buscar com a China uma declaração conjunta de compromissos sobre clima e meio ambiente, centrada na proteção da floresta e na promoção de cadeias de commodities livres de desmatamento”, diz João Cumaru, pesquisador pleno da Plataforma Cipó, organização independente dedicado a questões de clima, governança e relações internacionais.

O tema ambiental aproxima a China do Brasil, e é comum ouvir diplomatas e empresários chineses falarem sobre o quão inspiradora é a legislação brasileira. Até bem pouco tempo atrás, integrantes do Itamaraty reconheciam a postura ambiental do Brasil como um de seus principais ativos do soft power no mundo. O governo de Jair Bolsonaro abdicou desse instrumento e dessa luta. O atual governo parece concordar com a premissa anterior e o presidente Lula tem priorizado a pauta ambiental em sua agenda internacional. Com a China, o timing é ótimo. Em 2021, Pequim anunciou que quer alcançar o pico das emissões de carbono em 2030 e a neutralidade até 2060. E a China costuma ser firme em cumprir seus objetivos: a transição energética começa a resultar numa diminuição da presença do carvão e em 2022, segundo o governo, o país já tinha 31,6% de sua geração de energia vindos de fontes renováveis.

Os dois presidentes, cada qual com um inédito terceiro mandato em seu país, carecem de uma agenda positiva no cenário global e a questão ambiental parece o âmbito perfeito para isso. Mas, evidentemente, o caminho para uma produção sustentável nessa escala — a China tem 1,4 bilhão de habitantes — não é tão fácil. Alimentar a China passa por mandar, além da soja que engorda rebanhos por lá, a proteína animal em si. O pessoal da soja nem se motivou a ir até a China desta vez. O comércio dessa commodity já está mais que consolidado: segundoTulio Cariello, diretor de Conteúdo e Pesquisa do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC), as vendas do grão parecem estar mais do que garantidas e, em alguns meses, chegam a ocupar 40% da pauta de exportação brasileira ao país asiático.

Na delegação robusta de empresários do agronegócio que já chegaram à China para acompanhar a visita presidencial, a maior parte deles é dos setores de proteína animal — aves, suína e bovina, que, apesar de terem a China como principal comprador no exterior, estão mais expostos a oscilações de preço e a questões sanitárias que, volta e meia, travam as vendas. Fontes do agro explicam que alguns bloqueios sanitários são, na realidade, motivados por estratégias políticas e econômicas da China. Seja como for, o tête-à-tête faz diferença. Ainda mais depois de a China ter se mantido fechada de fevereiro de 2020 a janeiro deste ano, devido à sua política de Covid zero, o que impediu viagens de negócios por longos três anos. O último embargo para a carne bovina foi levantado nesta quinta-feira, em anúncio feito em reunião do ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Carlos Fávaro, e o ministro da Administração Geral da Aduana Chinesa, Yu Jianhua, em Pequim. As vendas brasileiras estavam suspensas desde fevereiro, depois de um caso de vaca louca no Pará. Somadas as três proteínas animais, esse setor responderam por 11,6% das vendas brasileiras à China.

Se por um lado as cadeias de commodities brasileiras estão empenhadas em contribuir para a costura de acordos ambientais, de outro, segundo fonte do setor privado, a ideia é que as regras sejam menos rigorosas do que as dos padrões europeus, aprovadas em dezembro do ano passado, vistas pelos empresários como muito duras na exigência de que a cadeia produtiva seja desligada do desmatamento. Esse é o dilema para o Brasil: como conciliar o soft power verde e o amplo espaço do agronegócio em sua estrutura econômica? Bem, talvez seja novamente uma parceria com a China o trunfo para garantir proteção e produtividade. “Nos termos de ciência e tecnologia voltadas para produtividade de grãos, a China mudou até institucionalmente, trazendo para dentro de seu Ministério da Agricultura um mecanismo para promoção de pesquisa para garantir mais produtividade”, diz Aline Tedeschi, professora da Universidade Normal de Hunan e diretora de Programas da Observa China.

É obsessão chinesa garantir a segurança alimentar, e o país já produz mais de 600 milhões de toneladas de grãos por ano. O governo projeta que o país seja autossuficiente em trigo e arroz até 2025. E por que estes números importam? Apenas 7% da terra na China é arável, e o sistema de propriedade rural é bastante diverso ao do Brasil. Não há latifúndios por lá. O que há são pequenos agricultores ou cooperativas que atuam em lavouras conjuntas já que, via de regra, o proprietário rural comum tem entre um e três “mu” para chamar de seus. “Mu” é a unidade de terra rural na China e, pasme, equivale a 1/15 de um hectare. A impossibilidade de agricultura de larga escala é um dos pontos por que o país não tem interesse na produção massiva de soja, que se tornaria cara. Porém, um adendo: toda a soja que chega diretamente à boca do cidadão chinês como alimento — do shoyu ao leite de soja — é produzida localmente, sem sementes geneticamente modificadas. A China é a quarta maior produtora do grão no mundo, justamente nas províncias onde ficava a Manchúria de Pagu, próximas à Rússia. Aterrissando no mundo real: parcerias em tecnologia agrícola podem ensinar ao Brasil a incrementar sua produtividade sem desmatar para plantar.

O contraponto americano

Tendo traçado alguns pontos de partida para as conversações em Pequim, o difícil tem sido garantir a data do embarque da missão presidencial até lá. Lula apostou em uma visita ao maior parceiro comercial brasileiro ainda neste trimestre, depois de ir aos Estados Unidos e à Argentina — além de fazer uma rápida passagem pelo Uruguai. A partida já foi adiada duas vezes. Sairia na sexta-feira, mas pautas do Congresso o motivaram a ficar mais um dia para conversar com líderes aliados. Sairia neste sábado, mas uma pneumonia o fez postergar a viagem para domingo — e a cancelar as agendas de sexta. Testes de nervos e equilíbrio? Pode ser bom para aquecer.

A visita a Xi Jinping será a primeira de um presidente desde que o chinês também inaugurou um inédito terceiro mandato, referendado pela Assembleia Nacional Popular por unanimidade em 10 de março. Não que Xi não tenha se encontrado com outro líder. Ele acaba de voltar de Moscou, onde se reuniu com Vladimir Putin. Na pauta, para além de reforçar compromissos bilaterais, a discussão sobre uma saída política para a guerra entre Rússia e Ucrânia. Ao menos no documento oficial, Putin disse estar disposto a uma negociação. O tema certamente estará nos debates com Lula, quando Xi o receber no Grande Palácio do Povo, no dia 28, terça-feira. Há a expectativa de que Lula inclusive convide o chinês para integrar o seu "clube da paz", uma iniciativa ainda sem sair do papel que busca encontrar um fim para a guerra. Lula até quis atrair Joe Biden para o tal clube, sem respaldo.

Xi pode topar. A China abandonou de vez o papel discreto que mantinha no palco Internacional, atuando como mediadora em conflitos, como pontua o doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Diego Pautasso. Neste novo momento, causou surpresa ao mundo a mediação de um acordo entre os rivais geopolíticos Irã e Arábia Saudita, alcançado em Pequim e cujo significado é forte, avalia o doutor em História, Cultura e Poder pela Universidade Federal do Paraná (UFP) e integrante do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre o Oriente Médio (GEPOM), Andrew Traumann. Segundo ele, a Arábia Saudita, assim como outros países da região, perdeu a confiança nos EUA depois da Primavera Árabe, que interpretaram como um momento de abandono ao antigo aliado Hosni Mubarack, então no comando do Egito. É à China que atribuem um papel de não interferência na região, um país que prioriza as relações comerciais e o desenvolvimento.

Mas uma aproximação com a China nesse xadrez, ainda mais em um contexto em que há uma discussão sobre democracias e autocracias no mundo, poderia provocar danos na relação do Brasil com os EUA? É um risco a se assumir. Os americanos sentiram que precisavam manter perto um aliado na América do Sul que, além de potência ambiental, defende a democracia, e intensificaram as relações com o Brasil. Para o professor de relações internacionais e economia da Universidade Federal do ABC (UFABC) e coordenador da Rede Brasileira de Estudos da China (RBChina), Giorgio Romano Schutte, o Brasil pratica hoje, com sucesso, um “multi-alinhamento”, uma política externa que pode ser entendida como fluida e que permite ao país não só refutar alinhamento automático a outras potências, mas buscar acordos e parcerias quando estes são convenientes para o próprio Brasil. “O Brasil sabe sinalizar que a relação com um não exclui a relação com o outro. E a mesma coisa se aplica à Europa, o maior investidor do Cone Sul”, acredita Schutte.

Tanto Brasil quanto China sabem que o conflito geopolítico pode ofuscar outros temas da viagem da próxima semana. E, por isso, a professora Aline Tedeschi aposta, estão de olho também em acordos pragmáticos e que signifiquem que ambos os países olhem para problemas urgentes do sul global. Segundo a professora, uma aliança global contra a miséria extrema deve ser lançada por Lula e Xi. Se o Brasil havia erradicado a fome de seu mapa — conquista revertida nos últimos anos —, a China garantiu em 2020 a eliminação da pobreza extrema. Ambos os feitos impressionam e foram alcançados com ferramentas diferentes. A expectativa é que haja troca de experiência entre os governos para buscar medidas efetivas. Como curiosidade, a transferência de renda é apenas um dos pilares do projeto chinês de combate à miséria, e o menor deles. Há muito investimento em vocações das famílias atendidas e das regiões em que se encontram — o que busca ser estimulado com investimentos em ensino e implantação de infraestrutura para permitir trabalho e renda. Para Tedeschi, uma aliança global capitaneada por Brasil e China de combate à fome e à miséria projeta ambas as nações como potências responsáveis. E com o diferencial de já terem conquistado tais feitos dentro de casa.

B de Brics

Se é verdade que Brasil e China buscam apresentar acordos do campo pragmático para que a pauta desta visita não seja engolfada por temas relativos à geopolítica da guerra, fato é que há também arestas a serem reparadas na relação sino-brasileira. “Trata-se de uma viagem essencialmente política”, diz Cariello, do CEBC.

Lula sempre demonstrou apreço aos acordos com a China e à dimensão de parcerias do Sul Global. Esta será sua terceira ida à China como presidente — as duas primeiras, em 2003 e 2009, ocorreram com Hu Jintao na presidência (Xi assumiu em 2013). Mas ocorre que no governo passado, de Jair Bolsonaro, o campo político foi minado por acusações em meias palavras ou tuítes de integrantes do governo ou familiares do presidente atacando os chineses.

Os ataques foram ignorados, na maior parte das vezes, mas chegaram a provocar mensagens públicas também fortes do embaixador chinês no Brasil de então, Wang Yanming, que conhecia muito bem o português e sabia responder. Na onda de clima tenso, Wang acabou deixando o Brasil em fevereiro de 2022 e seu substituto, Zhu Qinqiao, só viria a ser anunciado em outubro, às vésperas da eleição. Outro quadro, aliás, que fala muito bem português e, assim como o antecessor, conhece bem a América Latina, tendo servido em outros postos na região.

O Brasil parece ter aprendido a lição da burocracia chinesa, aproveitando seus quadros e suas especialidades. Chama a atenção o número de integrantes do governo com profundo conhecimento em China e que estão na comitiva desta vez, um ativo até pouco raro nas esferas de governo do Brasil. A comitiva brasileira que desembarca em Pequim na próxima semana tem a economista e diplomata Tatiana Rosito, à frente da Secretaria de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda e que foi consultora sênior do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), o Banco dos BRICS, representante chefe da Petrobras na China e gerente-geral de Desenvolvimento de Negócios na Ásia e ministra-conselheira na Embaixada do Brasil em Pequim. Do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, viaja a secretária de Comércio Exterior, Tatiana Prazeres, que viveu em Pequim entre 2019 e 2021, quando foi Senior Fellow na Universidade de Economia e Negócios Internacionais (UIBE) e de onde escrevia uma coluna semanal sobre o país para a Folha de São Paulo. Com Marina Silva está o atual secretário Nacional do Meio Ambiente Urbano e Qualidade Ambiental, do Ministério do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas, Adalberto Maluf Filho. Por dez anos, ele foi diretor de Sustenbilidade, Marketing e Novos Negócios da BYD no Brasil. A empresa, que fabrica carros elétricos, entre outras soluções voltadas a energias limpas, deve anunciar em breve a compra da planta da Ford em Camaçari, na Bahia. Cabe lembrar que mesmo nos anos de rusgas diplomáticas entre Brasil e China, tanto investimentos chineses no Brasil como o superávit brasileiro na balança comercial com a China só cresceram.

Ainda no campo político, para além de alianças a serem lançadas, há uma atenção especial a mecanismos multilaterais de que Brasil e China participam. O mais preponderante hoje é o Brics, onde o R é justamente de Rússia — e que tem ainda Índia e África do Sul. Tanto Egito quanto Irã e Arábia Saudita, e até a sul-americana Argentina já foram sondados pela China como possíveis futuros integrantes dos Brics. As discussões são iniciais, e o Brasil é um dos membros que não fecharam posição sobre a possibilidade de novos entrantes. Enquanto isso, a ex-presidente Dilma Rousseff tomou posse como presidente do NDB. No dia 30, está prevista uma cerimônia em Xangai, onde é a sede da instituição, e que deverá contar com Lula. Dilma tem capital político para lidar com os países fundadores do banco. Foi na Cúpula dos Brics de Fortaleza, em 2014, quando ela era presidente brasileira, que o banco foi lançado. Ainda que hoje outros três países integrem a instituição — Bangladesh, Egito e Emirados Árabes Unidos —, mas não sejam membros do próprio Brics, o banco é considerado a instituição mais prática do agrupamento de países. “É um banco de fomento importante que deverá atuar em um momento de pós-guerra Rússia e Ucrânia, e sob uma perspectiva estratégica, a presidência de Dilma no banco o fortalece”, acredita Schutte, da UFABC.

Dilma fica no cargo até 2024, já que a presidência do banco é rotativa e o Brasil tem direito a cinco anos — ela assume antes do término do mandato de Marcos Troyjo, que havia sido indicado no governo Bolsonaro. Na próxima cúpula dos Brics, que ocorrerá no final de agosto, na África do Sul, é possível que ainda haja a guerra ou que ela esteja recém-encerrada. O encontro será um novo momento de reunião entre Lula, Xi e os pares do bloco. Para Schutte, este será um momento em que Lula pode se sobressair como uma espécie de porta-voz do grupo, dada a sua relevância no cenário internacional e sua imagem enquanto presidente de uma democracia latino-americana. Vai depender muito do sucesso do próprio Lula em devolver o Brasil ao mundo e de como Putin e Xi vão se conduzir nas disputas com seus vizinhos e com os Estados Unidos. O que é certo é que qualquer reordenação global pós-guerra passa pelo Brics. E o B, de Brasil, voltou a ter relevância na sigla.

*Janaína Camara da Silveira é jornalista, morou em Pequim de 2007 a 2013, acompanha diariamente a relação sino-brasileira e é mestre em Economia, com pesquisa sobre o desenvolvimento chinês.

Vanvan, a referência

Por Andre Arruda*

“Evandro Teixeira. Chile 1973”, a exposição de fotografias que iniciou no dia 21 de março e vai até 31 de julho no Instituto Moreira Salles Paulista, mostra 160 trabalhos do decano do fotojornalismo brasileiro, com curadoria de Sérgio Burgi. São 130 imagens que Evandro, enviado especial do mítico Jornal do Brasil, registrou do golpe militar perpetrado por Augusto Pinochet em 11 de setembro de 1973, e outras 30 da ditadura no Brasil, do período de 1964 a 1968. O Brasil vivia sob as trevas do mandato do general Médici, de outubro de 1969 a março de 1974.

A exposição é um recorte do arquivo de mais de 150 mil imagens, entre negativos preto e branco, cor, slides e arquivos digitais desse fotógrafo baiano, nascido em Irajuba, a 307 km de Salvador, no dia de Natal de 1935. O acervo de Evandro foi adquirido pelo IMS em 2019. A pandemia da Covid-19 atrasou, por motivos óbvios, os processos de identificação, indexação e catalogação de seis décadas dessa obra fotográfica imensa e variada. “Chile 1973” é o ponto de partida dos trabalhos do IMS com Evandro Teixeira, iniciado na efeméride dos 50 anos do golpe chileno.

Conheci Evandro Teixeira ainda estudante de jornalismo, na extinta Faculdade da Cidade. Na verdade, eu queria ser músico. Tocava baixo e queria seguir na carreira, estudava de verdade, umas oito horas por dia. Cheguei a enviar uma fita cassete para tentar entrar no Barão Vermelho, quando o baixista deles saiu. Não rolou. Anos depois fotografei Roberto Frejat e perguntei se ele tinha recebido a fita. Pergunta retórica. Confesso: minha cabeça não estava muito na comunicação social e a faculdade era um pretexto para o tal “canudo”, o sonho classe média do diploma. Mas foi numa aula de fotojornalismo que tudo começou. O professor mostrou uma sequência de slides que reproduziam as fotografias de Henri Cartier-Bresson. Ainda lembro a imagem marcante: a menina correndo por uma escada em Sifnos, na Grécia, 1961.

Alguns anos depois, consegui entrar no Jornal do Brasil. Nunca havia trabalhado em jornal antes, mas tinha uma boa ideia do que era. A concorrência era brutal. A impressão inicial é que não havia tempo para nada e tudo era para ontem. O departamento fotográfico de um jornal dos anos 90 seria uma excelente fonte para uma série de streaming, porque havia de tudo, de galãs a picaretas, de poetas a semiletrados. Um ambiente de predominância masculina e com poucas e bravas mulheres. E sobretudo muita competição, por vezes desleal. Havia um certo preconceito da redação com a fotografia, sempre houve, mas isso é outro assunto. Evandro era o protagonista do Jornal do Brasil e sempre estava apressado. A grande força de sobrevivência naquele departamento era a adaptação, e logo se entendia que nos fins de semana você se livrava de pautas ruins se fotografasse bem esportes, em especial futebol. Que a arte do retrato tinha peso num jornal que prezava a cultura, com o Caderno B. E o domínio da técnica e criatividade faziam a diferença e tinham lugar em pautas mais “refinadas”, que seriam bem impressas em cor na semanal Revista Domingo. Evandro Teixeira, sobretudo, era um mestre sobrevivente, um lutador e com uma intuição quase sobrenatural. Tinha um nível altíssimo de acertos em todas as editorias. Era a referência.

Não seria cabotino dizer que ficamos amigos com certa rapidez. Tínhamos fotograficamente muito em comum, em especial o apreço pela mítica agência Magnum, de Cartier-Bresson, Robert Capa e mais tarde Sebastião Salgado. A fotografia de jornal estava mudando e já se notava um espaço entre a velha guarda, que achava que fotojornalismo era “polícia e futebol” e o resto era frescura, e uma turma mais jovem, com outra formação. O contexto, entretanto, pedia que esses dois estratos profissionais convivessem bem, o “velho” malandro que entendia os hábitos e modos de uma delegacia e os mais novos, com outros olhares. E se bebia bem. O chopp era uma religião e como qualquer ambiente de trabalho tenso, as festas da firma eram animadas.

Havia pautas que de tão frias sobravam para os “focas”, gíria para iniciante, como eu. Era uma matéria sobre segurança no trânsito, para o suplemento de carros e a ilustração pedia uma criança andando na caçamba de uma pick up. “Vai lá e se vira.” OK. Evandro viu a minha roubada. Ele tinha uma pick-up na época, uma Saveiro, talvez. Prontifico-se a dirigir o carro e ainda conseguiu um garoto pra andar na caçamba! Lembro de ter chegado cedo a seu apartamento, na Gávea, e ele aparece de cueca samba-canção e fazendo a barba. Disse pra eu esperar que já íamos descer. Já tínhamos meio que combinado a foto, era um “panning”, quando se usa velocidade baixa no obturador para ilusão de velocidade, movendo a câmera lateralmente, acompanhando o veículo. “Usa até 1/15! menos que isso borra muito”. E lá veio Vanvan com um garoto da vizinhança encarapitado de pé na caçamba, fazendo justamente o que não se devia fazer, segundo as regras do bom automobilismo. Repetiu com paciência algumas vezes. A foto ficou boa.

Eu saí do JB antevendo uma situação ruim que poucos anos depois se concretizou. Evandro ficou lá até o fim; não havia por que ir embora. Sempre mantivemos contato. No meu livro sobre 100 brasileiros e suas coisas favoritas, inestimáveis, eu queria fotografar um vaqueiro encourado do sertão nordestino. Evandro, é claro, conhecia alguém. E lá fomos para o interior de Pernambuco, em Serrita, em pleno sertão. Evandro em minutos já se dava bem com todo mundo e num misto de direção de ator e carisma, os vaqueiros iam pra lá e pra cá, ele dirigindo a cena ou a cena acontecendo por causa dele. Evandro, é claro, está no livro. O que ele não vive sem? Uma câmera Leica M.

A história do Brasil moderno, dos anos 60 até o início dos 2000 passou por suas lentes. Depois que se organizar esse acervo imenso, um livro chamado BRASIL Evandro Teixeira não seria um exagero. A ditadura é um ponto forte na obra dele, mas tem mais, muito mais. Um Brasil brejeiro, sem polarização, malandro no melhor sentido, do Maracanã antes da reforma, do Electra da ponte aérea, do sapato Vulcabrás, sem a maldição do crack, do olho no olho, da inteligência natural e de algo que se perdeu. De anônimos que se tornaram épicos a Tom, Vinicius e Chico deitados numa mesa de bar, uma situação impensável hoje, mas que Evandro Teixeira foi lá e fez. É como se uma pessoa incorporasse Grande Otelo, Didi Mocó, Jacques Tati e Ariano Suassuna, uma certa inocência matreira, com audácia e sem maldade. Santo não é, nunca foi, até porque Santos só o do Pelé, que ele fotografou no Chile, em 1962, sua primeira Copa do mundo, pelo Diário de Notícias, com uma Hasselblad. Falando em divindades, fotografou Garrincha também. Em 1963 entraria para o Jornal do Brasil, ficando até 2010.

Sempre acreditei que o olhar de Evandro Teixeira é um generoso e cúmplice convite ao humor, mas não da pilhéria. É muito difícil fazer rir com fotografia, até porque humor é reversão de expectativa e fotografia, em especial a jornalística, lida com signos estáticos de urgência. Talvez apenas um fotógrafo tenha feito uma carreira com humor, Elliott Erwitt, que usava e abusava de sequências. Tenho certeza de que ele e Vanvan se dariam bem.

Uma das fotos favoritas de Evandro é o "Casamento em Paraty, 1969". Entende-se que os noivos são pessoas são muito humildes e ambos seguram guarda-chuvas! O olhar macambúzio de ambos expressa tudo, menos um estado de felicidade nupcial pós cerimônia. A imagem, porém, nos invoca a um abraço nos dois. Evandro diz que depois da foto, casal e convivas foram à uma padaria comemorar com leite e biscoitos. É nessa janela que a fotografia real vive e viverá, quando o fotógrafo se anula, por domínio absoluto de sua técnica, e se torna, apenas pela luz, o vetor da emoção e da empatia. E do amor.

*Andre Arruda é fotógrafo, curador e jornalista. Autor do livro “100 Coisas que Cem Pessoas não Vivem sem”.

'Olha que fofo!'

Momtok, ToddlersOfTikTok, #Parenting e #kids. Apenas no TikTok são 200 bilhões de visualizações; no Instagram, contam-se as postagens em milhões, mas o conteúdo é o mesmo. Vídeos estrelados por bebês, crianças ou adolescentes. A partir de um vídeo viral, o conteúdo se multiplica, criando um mar de influencers dependentes do rosto de seus filhos para monetização.

Conteúdos adoráveis e aparentemente inofensivos, como de interação entre irmãos ou a pronúncia perfeita de palavras complexas por um bebê com menos de dois anos, misturam-se àqueles que, no limiar, provocam desconforto: as pegadinhas que pais fazem, e publicam, com os próprios filhos. Uma mãe passando nutella na criança e a enganando, como se aquilo fossem fezes. A “polícia para crianças más” é uma pegadinha, com milhões de visualizações, que consta de aterrorizar os pequenos com a ilusão de que a polícia irá até a sua casa pelo “mau comportamento infantil”.

São crianças adquirindo traumas e falta de confiança nos seus tutores na frente dos olhos dos usuários, que vêem e revêem os vídeos bilhões de vezes. Em entrevista ao Le Monde, a psicóloga Vanessa Lalo explica que “a partir do momento em que a pessoa em que deveríamos confiar nos humilha publicamente, há uma traição. O que impacta a autoestima da criança em desenvolvimento”.

Muitas vezes o compartilhamento vem de um lugar ingênuo de orgulho dos filhos. Algo muito fofo, engraçadinho, uma descoberta... os pais gostam de exibir os feitos dos pequenos. Mas a internet é vasta, movida por engajamento, e gera pegadas digitais eternas. Não há futuro com anonimidade para crianças que viralizarem. O New York Times, em 2019, pediu para três crianças confrontarem seus pais sobre as postagens excessivas. Revolta, entendimento e um acordo para não mais postar sem consentimento se decidiram ali.

Há um termo para o fenômeno entre os pais millenials: sharenting. Uma mistura de compartilhar com paternidade. O termo não é novo, existe desde 2006 nos estudos e livro de David Buckingham, e se popularizou com matérias do Wall Street Journal sobre o assunto, em 2012. Essas crianças crescem com câmeras coladas no seu rosto, prontas para terem o próximo momento viral gravado pelos pais, que se torna rapidamente uma fonte de renda. Elas não estão em capacidade de consentir — não à toa a idade mínima recomendada pelas próprias plataformas para se criar uma conta em redes sociais é 13 anos, e com limitações. Mas seus pais ganham milhões de seguidores, e milhões, às suas custas.

Não é só a questão de falta de consentimento. A falta de alfabetização digital dos pais também custa diretamente aos filhos. Uma pesquisa australiana de 2015 detectou que 50% do material presente em fóruns de abuso sexual infantil era retirada de postagens inocentes das redes sociais dos pais. Nos comentários ou legendas dessas imagens, as crianças eram sexualizadas por predadores sexuais. Além disso, sharenting pode custar mais de US$ 600 milhões em fraudes por roubo de identidade até 2030. A expectativa é de mais de 7 milhões de incidentes por ano.

Essa é a primeira geração de crianças e adolescentes sob o olhar incansável das redes. Por isso, o parlamento francês, em 2020, aprovou leis regularizando o trabalho de influencers infantis. Este ano a discussão é sobre como criar uma lei anti-sharenting. Dentre as cláusulas, os pais devem ser responsáveis pelos direitos de privacidade de crianças que ainda não podem consentir com o uso de sua imagem. Ainda, em casos extremos, a proposta de lei pretende proibir postagens dos filhos, caso decidam excessivas ou danosas. Pelo menos metade dos pais já compartilharam seus filhos online, 91% antes mesmo de as crianças atingirem cinco anos de idade. O autor do projeto de lei diz que um adolescente de 13 anos tem, em média, 1,3 mil imagens suas circulando na internet. Mas doutrinar esses pais da era digital por leis pode não ser suficiente. O caminho talvez seja um trabalho conjunto com educadores sobre o que é formar uma criança nos tempos da exposição extrema.

Os juros e a jura, nos mais clicados da semana pelos leitores:

1. Twitter: A foto ameaçadora da deputada federal Júlia Zanatta.

2. UOL: A morte de Paul Grant, de Star Wars.

3. Folha: O arrocho que pode decorrer da treta do Banco Central com o governo.

4. Omelete: O adeus a Lance Reddick, de The Wire.

5. Valor: Por que o Copom não cortou os juros?

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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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