A Constituição e as redes sociais

Conluio entre neoliberalismo das big techs e reacionarismo da extrema direita, evidentemente inconstitucional, promove a hipertrofia dos direitos de liberdade de expressão e crença para atacar o PL das Fake News

O Brasil é uma democracia liberal.

Finda a ditadura militar, o governo Sarney convocou eleições para a reunião de um Congresso Constituinte, que elaborou e promulgou a 5 de outubro de 1988 uma Constituição.

A Constituição é o contrato social cujos valores e normas são expressão da vontade soberana e de força obrigatória para todos os brasileiros, e muito especialmente, para seus agentes políticos nos Três Poderes, encarregados de dirigir a República.

Essa República tem por fundamentos a cidadania (art. 1º II) e a dignidade da pessoa humana (art. 1º III). Entre seus objetivos, estão a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art.3º I), erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer formas de discriminação. As liberdades de religião e de expressão (art. 5 IV e VI) são dois direitos garantidos ao lado de mais de oitenta outros. A exploração dos serviços de comunicações como rádio, televisão e imprensa foi atribuída à União Federal, mediante concessão, autorização ou permissão a empresas privadas, sujeitas estas à regulação por uma agência autônoma (art. 21 XI).

Toda a Constituição baliza o ordenamento jurídico com seus princípios, valores e regras, de modo que todas as normas que com eles colidam são inválidas. Também é sua pretensão aspirar à efetividade, ou seja, que tais princípios, valores e regras sejam efetivamente respeitados no conjunto do território nacional, de modo a disciplinar a vida da nacionalidade conforme as regras que ela criou para si como sujeito soberano. Os desafios à efetividade da Constituição são inúmeros, entre os quais avultam, na sociedade brasileira, o desrespeito aos direitos humanos, aos direitos trabalhistas e regras ambientais. Não apareceu nenhum maior, todavia, que a coalizão entre o neoliberalismo de multinacionais (big techs) de plataformas digitais (Google, Facebook, Twitter etc.) e o extremismo de direita, fascista ou reacionária, que ameaçam diretamente os fundamentos, os objetivos e diversos direitos fundamentais, levando a um fenômeno conhecido como erosão constitucional.

A internet surgiu em um ambiente de otimismo típico da globalização. Imaginava-se que ela fosse um terreno novo para a ampliação do espaço público, em torno de valores progressistas consagrados na Constituição, como a liberdade e tolerância. Foi nesse clima de otimismo que as big techs entraram com serviços de plataforma digital que conectaram bilhões de pessoas no mundo inteiro. O marco civil da internet (2014) exprimiu essa visão otimista, entregando às próprias big techs a tarefa de se autorregularem. Permaneceu assim até recentemente o pressuposto de que o mundo virtual existia não só em contraposição ao mundo físico, como não sofria qualquer espécie de ingerência do mundo legal. E que ele era assim não só superior em termos de “liberdade”, como não carecia nem deveria sofrer o mesmo tipo de regulação.

Infelizmente, onde o império da lei não se faz sentir ou obedecer, as consequências são as mesmas, seja o mundo físico ou virtual — o que medra, junto com uma liberdade destituída de responsabilidade, é o crime: a milícia, o tráfico de drogas, o fanatismo, o neonazismo, o terrorismo, a mentira, o boato, o medo.

Foi questão de tempo para que o extremismo de direita descobrisse esse mundo “extraconstitucional” para difundir seu ideário, seja fascista, aspirando a uma ditadura militar; seja reacionário, aspirando a uma república teocrática. Para tanto, foram ajudados pelos algarismos das redes sociais que, buscando o engajamento fácil, privilegiam e incentivam conteúdos chocantes, polêmicas e polarizações de todo o tipo.

Bastou, porém, a crise do ideário globalizador, com o conjunto de revezes que se lhe seguiu, bem como a percepção de que o emprego indiscriminado das redes sociais por criminosos representava uma ameaça às suas ordens constitucionais democráticas, que diversos países decidissem estender formalmente às plataformas digitais um sistema de regulação mais efetivo. Trata-se de adaptar as regras dos serviços de comunicação criadas para o mundo físico para o mundo digital. A ideia é eliminar o “terreno baldio”, sem lei nem rei, de sua dimensão “extraconstitucional”, ou seja, levar também ao mundo digital o império da lei.

O objetivo do projeto de lei em discussão no Brasil (dito “das fake news”) é precisamente o mesmo do que ocorreu recentemente em países europeus: estender a lei e a ordem ao ambiente das redes sociais.

Ocorre que, como ocorreu antes em países europeus, as big techs reagiram, crentes que seu faturamento terá decréscimo com os encargos que lhe recairão, ao exemplo do que ocorre com jornais, redes de televisão e rádio. Recorrem então à ideologia neoliberal, para quem democracia é liberdade de expressão no espaço global, regulada tão somente pelo mercado, para reclamar contra o “estatismo”. Ao mesmo tempo, crente que seu sucesso depende da preservação desse espaço inacessível aos valores constitucionais, para explorar por mentiras (“fake news”) o pânico moral, a extrema direita se organizou contra a maior regulação, temerosa de murchar eleitoralmente. Temor crescente no Brasil, depois que a derrota de Bolsonaro contrariou suas expectativas de que derrubaria pacificamente a Constituição, transformando o país na prática em uma espécie de ditadura teocrática. Daí o conluio entre o neoliberalismo das big techs e o reacionarismo da extrema direita. Ambas se opõem à regulação do Estado, aquelas em nome do império do mercado, e esta, da religião. Conluio evidentemente inconstitucional, que já serviu para sustentar o governo Bolsonaro, através da hipertrofia dos direitos de liberdade de expressão e crença.

Não é a primeira vez que se hipertrofia o direito de uma minoria de privilegiados para justificar a opressão da maioria. No passado, a liberdade de propriedade também foi hipertrofiada pelos senhores para manter a escravidão. Depois, foi a vez de os grandes monopólios e oligopólios hipertrofiarem a liberdade de contratar, para perpetuar exploração do trabalhador. Quem se lhes opõe, por uma curiosa tática de inversão, é que é taxado como “tirânico”. O que se passa hoje, na questão do PL das Fake News, é a mesma coisa do passado. O que está em jogo, portanto, não é a liberdade de expressão, de contrato, ou de propriedade. É a preservação da concepção de cidadania assegurada pela ordem jurídica republicana, democrática e laica consagrada na Constituição. De um lado os valores civilizatórios da Constituição. Do outro está a extrema direita, que precisa do terreno baldio criado pelas big techs, cheio de lixo e crime, para prosperar e tocar adiante seu projeto de fazer do Brasil uma teocracia.

Não é possível haver dúvidas de que lado os democratas devem estar.

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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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