E precisamos todos rejuvenescer

Pepe Mujica, ex-presidente uruguaio e expoente da esquerda latino-americana, está preocupado com mandatários cujo carisma não perece, mas cujos corpos, sim: 'Lula está velho, quem o sucederá?'

Pairava um cheiro gaúcho de churrasco no ar, e não à toa. Estávamos no El Quincho de Varela, restaurante de Sergio Varela, amigo e vizinho de José Pepe Mujica no bairro rural de Rincón del Cerro, a cerca de 20 quilômetros do centro de Montevidéu. Garfos e facas já se cruzavam sobre pratos usados, uma pet de Coca tombava vazia sobre a mesa e uma salada de tomates parecia intocada. Mujica estava sentado de costas para a porta. Viam-se seus calcanhares nas indefectíveis botinas de couro empoeiradas de terra. Lucía Topolansky, a esposa, ocupava a cabeceira e entrelaçava as mãos nos bolsos de um discreto moletom cinza.

À frente dela, no alto da parede, uma foto gigante de Lula, Mujica e Varela abraçados. Acima, a mensagem de saudação: “Bienvenido Compañero Presidente”. No dia 25 de janeiro, Mujica e Lula se encontraram na chácara do ex-presidente uruguaio, a uns 100 metros dali. Deram uma passeada rápida no icônico Fusca celeste 1987 de Pepe que foi flagrada por Stuckinha, fotógrafo oficial de Lula. A imagem rodou pelas redes sociais, e uma versão dela em tamanho pôster também circulava entre os convivas daquele almoço no El Quincho.

Provavelmente estamparia a parede dos fundos do restaurante, onde Varela coleciona imagens de Mujica sozinho e reunido com governantes, sindicalistas, empresários e artistas, numa espécie de sala de reuniões rupestre, inclusive com mesa para dez pessoas em cujo tampo de madeira foi grafado “Pepe Presidente”. Algumas fotos são de Primeiros de Maio passados. (Os primeiros assados do El Quincho aconteceram há mais de 25 anos, quando Varela organizava encontros para celebrar o Dia dos Trabalhadores e confraternizar com outros integrantes do Cambadu — Centro de Armazenadores Varejistas, de Bares, de Auto-serviços e Afins do Uruguai. O evento de 1º de Maio deste ano ocorreu em uma praça pública e o restaurante fechou para o almoço.)

Mujica olhou para a foto grisalha dele e de Lula no Fusca. Dividiu ao meio uma casca de mexerica como quem reflete com as mãos, a devolveu ao prato e se recostou na cadeira de plástico. Queria falar da passagem do tempo, queria falar de poder. Para além disso: queria falar de transferência de poder. “Lula está velho, quem o sucederá?”

Prestes a fazer 88 anos, El Viejo, alcunha de Mujica, não tem papas na língua para falar de idade avançada. Em março, ao participar de um encontro internacional do Grupo de Puebla (fórum composto por representantes políticos de esquerda do mundo), no Centro Cultural Kirchner, em Buenos Aires, ele disse que a vice-presidente Cristina Kirchner era uma “velha maravilhosa”. Logo em seguida, se corrigiu: “Uma velha, não, uma senhora, porque ela vai se ofender”.

Dez anos antes, um áudio vazado de uma conversa dele com o intendente da Flórida, Carlos Enciso, já o tinha deixado em maus lençóis com Cristina. Ao falar à boca pequena sobre as relações do Uruguai com o governo da Argentina, saiu-se com uma comparação enviesada: “Essa velha é pior que o caolho”, referindo-se à presidente e a seu falecido marido. Queria dar a entender que ela era muito teimosa, que era mais fácil tratar com o antecessor, mas Buenos Aires não perdoou a referência ao estrabismo do ex-presidente.

O fato é que Mujica está preocupado com mandatários cujo carisma não perece, mas cujos corpos, sim. “Lula está enamorado, e isso é bom, mas ter 78 anos não é fácil, e o PT não é o mesmo com e sem ele”, diz. “Não que Lula seja perfeito, mas ele é capaz de juntar muitas coisas distintas.”

Com o papa Francisco, de quem Mujica também é amigo, se passaria igual. Seu carisma e inteligência propiciaram mudanças marcantes na cultura da Igreja Católica, que ainda tem enorme influência na América Latina. “Os evangélicos estão crescendo. No Brasil, eles têm muito poder, aqui no Uruguai nem tanto, mas esse continente é mais católico do que a Europa.”

Mujica ocupou boa parte da conversa com o empoderamento da América Latina, que, a seu ver, depende menos de dinheiro e mais de boa vontade. Para ele, não se justifica pensar em uma moeda comum enquanto não se consegue negociar com a moeda que cada país já tem.

“Precisamos colocar os Bancos Centrais para sentarem juntos e estudarem um possível intercâmbio entre elas”. Propõe a colaboração entre os sistemas de saúde, especialmente por causa da falta de especialistas nos países menores. Quer unificar as exigências de importação, sobretudo quanto aos alimentos: “É uma bagunça para poder comprar e vender algo”. E prega uma comunhão entre as universidades da Latinoamérica: “Nossos engenheiros e médicos vão trabalhar nos EUA e na Europa porque não conseguem se sustentar aqui. Estamos loucos, estamos loucos!”.

A cada sugestão de integração, Pepe dava um pequeno murro na mesa, como se batesse uma estaca. Suavizou quando falou da importância de meter na cabeça dos jovens que o capital está perdendo terreno para o conhecimento. “Procuramos independência econômica e política, mas a pagamos com dependência econômica e cultural.” Ilustrou com as papeleras (fábricas de papel) de origem finlandesa que se instalaram no Uruguai e vêm mudando o horizonte da planície com suas montanhas de celulose. “Temos que sorrir e vender troncos, nada mais, porque não temos capacidade para gerenciar uma atividade científica desse porte.” E lá se foi mais um leve murro sobre a toalha escura.

A questão, lembra ele, é que a juventude de hoje não parece querer nada com nada. “Toda semana aparecem aqui jovens de bicicleta achando que vão chegar ao Alasca”, diz. “Parecem despojados, mas querem morar na casa dos pais e deixam a roupa para a mãe lavar. Um dia ficarão velhos, e terão de lidar com isso. Conhece a fábula da cigarra e da formiga? Igual!”

O 8 de janeiro no Brasil lhe causou surpresa, apesar de precedido por muitos dias de acampamento dos bolsonaristas em frente dos quartéis. “A mão de obra que provocou essas agressões inúteis, essa barbaridade, é uma mão de obra manipulável, induzível, e isso é o mais grave.” Faz um longo silêncio. “Isso mostra que há uma inteligência por trás disso, uma inteligência que adoece um país gigantesco.”

Sobre o governo de direita de Luis Lacalle Pou, Mujica afirma que, sim, é de direita, mas à moda uruguaia: “O Uruguai é um país moderado, uma peneplanície (planície com suaves ondulações), não creio que haja campo aqui para o extremismo.” De fato, a montanha mais alta do território uruguaio, o Cerro Catedral, tem apenas 514 metros. “É um cerrito”, define Pepe, rindo. Ele afirma que a Frente Ampla, seu partido, pode vir a vencer as próximas eleições, mas não ganhará disparado, tampouco mudará a essência do país. “O extremismo, aqui, fica mais no discurso, não creio que passará disso.”

Trata-se de cenário bem diverso da montanha-russa ideológica que marca grande parte da América Latina. A ultradireita, por exemplo, acaba de vencer a eleição e será maioria na redação da nova Constituição no Chile. Há cerca de um ano, Mujica dava conselhos sobre governança ao recém-eleito presidente esquerdista Gabriel Boric. Em conversa intermediada pela rádio uruguaia M24, Pepe mostrava confiança na capacidade e no “vento fresco” que Boric trazia para a política chilena. Boric, afinal, tinha somente 35 anos. Mas o uruguaio alertou, do cume de seus então 86, que “se há diferenças, elas são inevitáveis, mas se assumimos atitudes que aprofundam as diferenças, o único que fazemos é aumentar a distância entre nós”.

Mujica vê a polarização como uma enfermidade contagiosa da sociedade moderna mediada por uma tecnologia mal utilizada. “A culpa é da nossa cultura, que não está à altura da tecnologia”, diz, apontando para o meu celular.

A sociedade, a seu ver, estaria muito complexa, com muitas demandas egoístas, cada qual achando que o problema no qual está metido é central, a despeito dos outros. “A humanidade se parece com um gorila com uma metralhadora na mão”, completa, apontando novamente o celular.

Pepe está afeito ao antigo, e sabe que ser vintage tem seu apelo. Não vende por nada — nem pelo US$ 1 milhão oferecido por um xeque árabe — o Fusca azul de placas SAO-1653, por sinal estacionado na frente do El Quincho. A ex-senadora Lucía, até então discretíssima, se anima em dizer que aquele modelo tinha sido montado no Brasil. Os dois, ela e o marido, foram se alternando nos nomes pelos quais o veículo ficou conhecido no mundo: “Vocho” no México, “Maggiolino” na Itália, “Cepillo” em Santo Domingo, “Cuca” ou “Escarabajo” no Uruguai.

O besouro azul foi um presente dado por amigos do bairro quando o Fusca anterior, alemão da gema, quebrou. Falando em regalos, pergunto se, quando presidente, Mujica ganhou algo tão valioso quanto uma caixa de joias. “Só se dão esses presentes ao presidente do Brasil, ao presidente do Uruguai não se dão presentes.”

Não que a falta de luxo pareça um problema. Mujica e Lucía se mostram satisfeitos com a casa de um quarto coberta por teto de zinco, à frente da qual fincaram uma mesa e um banco de madeira rústicos, desses de piquenique. Um cachorro de pelagem amarela está atento à entrada de visitantes. É de um vizinho. Não parece tão carismático quanto Manuela, a vira-latinha de três patas que o acompanhava em atos protocolares e eventos sociais e que morreu aos 23 anos em junho de 2018. Carisma, como afirma Mujica, é algo que não se pode fabricar. “Lo que la naturaleza no da, Salamanca no presta”, proverbia. Ou seja, não há universidade que possa fornecer a um sujeito o que não lhe tenha sido dado de nascença. “Ou surge um sucessor carismático, ou não!” Mujica, aliás, não quer mais perros. Não vê sucessor para Manuela.

*Mônica Manir foi editora das revistas Nova EscolaCrescer e Claudia e editora do caderno Aliás, do Estadão, jornal onde também trabalhou como repórter especial. É autora de “Por um ponto final”, coletânea de reportagens que escreveu para o Estadão e para a revista piauí

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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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