O sentido e os resíduos de 2013

Regimes se baseiam em instituições políticas, cujo desenho básico se acha normativamente descrito em leis e Constituições. Tais instituições são ocupadas por agentes políticos, encarregados de modificá-las, interpretá-las e reinterpretá-las conforme as tradições, mas também as circunstâncias. A capacidade de sobrevivência de um regime depende de sua legitimidade. A legitimidade de um regime democrático, por sua vez, depende de sua capacidade de transmitir ao povo soberano a sensação de exercer o poder por seus representantes. Na prática, a famosa “vontade geral” se divide conforme as ideologias presentes na sociedade, elas mesmas sujeitas a maior ou menor expansão, conforme as configurações de cada época. A sobrevivência de um regime, por fim, reside na capacidade que têm os agentes políticos de adaptar o jogo das instituições à natureza movediça dessa sociedade, de modo que o povo não perca a sensação de estar representado.

Discute-se muito o sentido das chamadas jornadas de 2013, que agora completam dez anos e foram deflagradas por uma ala esquerda mais “moderna”, “rueira” ou radical. O que aconteceu, porém, é que essa pequena franja apenas destampou o bueiro de uma insatisfação acumulada fazia muitos anos em vários setores da sociedade. Depois de semanas de manifestações massivas, e às vezes violentas, que se espalharam como um rastilho de pólvora até as menores cidades do país, contra o sistema político vigente, elas chegaram ao fim sem líderes nem consequências para suas inúmeras e contraditórias reivindicações. Governantes tão perplexos quanto indispostos com os manifestantes não souberam interpretar os acontecimentos, nem souberam dar-lhes, por conseguinte, resposta à altura.

O regime retomou sua rotina como se nada tivesse acontecido, e muitos próceres desqualificavam as manifestações como obra de inconsequentes comunistas, moralistas, fascistas ou ignorantes.

A despeito das diferentes ideologias, gerações e reivindicações, as multidões que tomaram as ruas do Brasil em junho daquele ano compartilhavam a aguda sensação de não se verem representadas pelo regime político, ao menos da forma como ele vinha sendo praticado. Havia, pois, uma óbvia crise do sistema representativo. Tendo por modelo de governabilidade o presidencialismo de coalizão tal como criado por Fernando Henrique Cardoso na década de 1990, o país vinha sendo gerido havia mais de dez anos por um consórcio cujo núcleo era composto por dois partidos — PT e PMDB. Montado em políticas públicas sociais voltadas para a população menos assistida e favorecido por um cenário econômico favorável nos estertores da época da globalização, o consórcio logrou vencer quatro eleições presidenciais sucessivas. Este “regime dentro do regime” tinha um nome, que encarnava o seu princípio de legitimidade: Luiz Inácio Lula da Silva, o político mais popular do Brasil desde Getúlio Vargas. Dilma Rousseff, enquanto presidente da República, obra e criatura de Lula, presidia o país como uma espécie de regente, na impossibilidade legal de um terceiro mandato de seu criador. Entretanto, fazia alguns anos que a euforia de dinheiro e obras já começara a envolver o consórcio numa bruma de escândalos de corrupção aos quais o Congresso cooptado pelo governo não dava a menor atenção.

Naquele contexto, as manifestações de junho de 2013 alertavam para o desgaste do regime político. A franja a que pertencia a nova esquerda que lhes produzira o estopim era diminuta: o pêndulo oscilava na verdade para o outro lado. Depois de um quarto de século, a geração que fizera a Constituição e lhe imprimira uma marca progressista saía de cena. Seus valores também pareciam declinantes depois do longo consulado da esquerda no poder, que parecia de alguma forma ter consumado o projeto político dos constituintes de 1988. Reapareceu a direita pura e dura, envergonhada e submersa desde o fim do regime militar, insatisfeita com os avanços progressistas dos anos anteriores. Teve por porta-voz uma geração que, sem memória da ditadura, na medida mesmo em que associava o regime de 1988 a um esquerdismo esclerosado, corrupto e “politicamente correto”, relia o de 1964 com lentes róseas de uma época oposta, gloriosamente patriótica, de progresso conservador.

Diante da inação do próprio sistema, aliás vitorioso nas eleições de 2014, a reação contra o consórcio no poder se propôs a depô-lo por meio do golpismo branco de uma “revolução judiciarista”. Os “tenentes togados” da Operação Lava Jato foram apoiados pela PGR e pelo STF, além da mídia liberal de simpatia tucana e de uma extrema direita cada vez mais assanhada. O colapso de legitimidade do regime em 2017-2018 desaguou na eleição de 2018 para a presidência de um populista reacionário, Jair Bolsonaro, depois da providencial remoção da candidatura de Lula pelo judiciário e sua subsequente prisão. Tendo em vista a politização e partidarização de parte do aparelho judiciário, policial e militar, pode-se dizer que o regime nunca esteve tão ameaçado quanto na segunda metade daquele ano, especialmente se o candidato de esquerda vencesse a eleição.

Por mais paradoxal que pareça, a eleição de Bolsonaro e de um Congresso conservador preveniu a necessidade de um golpe militar e começou a sanar a crise de legitimidade do regime.

Era preciso provar a uma parcela da população que, depois de trinta anos de presidentes liberais e social-democratas, ele poderia se acomodar com os conservadores. O erro de Bolsonaro foi exagerar no seu populismo reacionário ao ponto da estupidez, decidido a ameaçar o regime militar quando ele já se acomodava ao conservadorismo. Bastaria que ele governasse com um mínimo de racionalidade para se fazer reeleger num contexto que continuava genericamente conservador. Não foi o que fez, acabando por alienar a parte menos fanática de seu eleitorado, já desencantada também pela descoberta das tropelias de Sergio Moro. Levado pela utopia autoritária, mas sem ter meios de golpear o regime de forma decisiva, Bolsonaro obrigou o Judiciário a desfazer o que fizera. Era preciso que o STF tirasse Lula da cadeia e que recuperasse seus direitos políticos, para que Bolsonaro pudesse ser derrotado. Foi o que aconteceu e terminou de salvar o regime.

Neste aparente momento de “restauração” sob um terceiro governo Lula (sobre o qual ainda há muito o que falar), ainda restam eliminar dois resíduos do “processo revolucionário” (ou “contrarrevolucionário”) aberto pelas jornadas de 2013. O primeiro passa pela declaração de inelegibilidade de Bolsonaro, com cassação e condenação de seu grupo de golpistas e associados, bem como pela escolha de um novo PGR. O segundo passa por suprimir de vez o parlamentarismo bastardo instituído pelo “centrão” na Câmara dos Deputados, resultado combinado da reação dos políticos fisiológicos à Lava Jato e da fraqueza de Bolsonaro, que alugou a administração para os centrônicos via orçamento secreto.

Os últimos embates de Arthur Lira contra os presidentes do Senado e da República têm se revelado tentativas de preservar em contexto adverso esse declinante espaço de poder, privilégio e impunidade em circunstâncias excepcionais. Não por acaso, a Polícia Federal já foi acionada como alerta contra o personagem e seus camaradas; da mesma forma, o Supremo desengavetou processos no quais Lira figura como réu por corrupção passiva. A condenação dos golpistas e seus aliados, a nomeação de um novo PGR e o fim do parlamentarismo bastardo de Arthur Lira são os elementos, pois, que faltam para fechar o ciclo de anormalidades aberto pelas jornadas de 2013. Quem sabe tudo não ocorre ainda este ano, a tempo de soprar as velinhas...

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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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