Pochmann e o futuro de Simone

Nomeação do controverso economista é indicação de radicalização de Lula e fritura da ministra, que vai ficando sem alternativas eleitorais, diz o analista político Ricardo Rangel

Na semana passada, o governo anunciou que Marcio Pochmann será o novo presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A notícia caiu como uma bomba. O economista é altamente controverso; a decisão foi tomada à revelia da ministra do Planejamento, Simone Tebet, à qual o IBGE se subordina; o instituto é órgão chave para o governo e para o Brasil em geral; a escolha é uma sinalização de para onde vai o governo.

Segundo a jornalista Malu Gaspar, quando o boato da nomeação começou a circular, a opinião no Ministério do Planejamento era a de que Pochmann é um “terraplanista econômico”, e que “nem o Centrão conseguiria apresentar um nome tão ruim; nem o próprio PT”. Mas o PT, ou melhor, Lula, apresentou o nome. E como fato consumado. Segundo alguém que acompanha a equipe de perto, 90% dos integrantes está furiosa (o termo empregado foi mais explícito).

Na sociedade em geral não foi diferente. Edmar Bacha, um dos pais do Real, que declarou apoio a Lula no segundo turno, afirmou que “como ex-presidente do IBGE, me sinto ofendido”. Para Elena Landau, responsável pelo programa econômico de Simone Tebet à presidência, que também declarou voto em Lula no segundo turno, foi “um dia de luto para a estatística brasileira”. Muitos outros economistas se manifestaram.
Afora a falta de experiência em estatística, pesa contra Pochmann sua gestão como presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), amplamente vista como desastrosa. Ele interferiu em pesquisas, boicotou áreas, engavetou estudos desfavoráveis ao governo (publicou rapidamente os favoráveis), perseguiu economistas por divergência ideológica e/ou por fazerem publicações críticas ao governo. E redirecionou os currículos dos concursos, privilegiando disciplinas estranhas à economia e atraindo profissionais de sociologia e ciências sociais, transformando o perfil do instituto.

Pochmann é polêmico até dentro do PT. “Tenho a impressão de que o Marcos (Lisboa) às vezes me olha e enxerga o Marcio Pochmann, sabe? Não enxerga o Fernando Haddad”, comentou certa vez o atual ministro da Fazenda. Não surpreende. Pochmann tem pontos de vista inusitados, como a ideia de que o Pix “é mais um passo na via neocolonial” e “condição perfeita ao protetorado dos EUA”, e que o Brasil deveria explorar o espaço sideral.

O governo afirma que a nomeação para o IBGE é prerrogativa do presidente, de modo que todo mundo tem que aceitar. Não é verdade. O Brasil é uma democracia, Lula não pode indicar para o IBGE alguém sem qualificação simplesmente porque é seu amigo (assim como não poderia nomear para o Supremo seu próprio advogado). Isso fere os princípios constitucionais da impessoalidade e da moralidade.

Tampouco é um quadro técnico, como dizem. Ex-candidato a prefeito e a deputado, ex-presidente da Fundação da Perseu Abramo, um think tank petista, atual presidente do Instituto Lula, Pochmann é militante petista em tempo integral. A decisão de Lula é clara: quer no IBGE um correligionário fiel.

O maior medo é de que Pochmann manipule índices de inflação (como ocorreu no Brasil durante a ditadura e mais recentemente na Argentina) e outro indicadores. “Pochmann é um ideólogo. Tem uma visão totalmente ideológica da economia. E não terá problema de colocar o IBGE a serviço dessa ideologia, como fez no Ipea”, afirma Bacha.

Há quem considere que o IBGE não corre risco real. Como o instituto não interpreta dados e não formula políticas públicas, o espaço para desvio é limitado. Além disso, o corpo técnico do Instituto é extremamente rigoroso e orgulhoso de suas práticas: a resistência a eventuais interferências será alta. Sergio Besserman Vianna, ex-presidente do instituto, cuja visão econômica é diversa da de Pochmann, considera que “qualquer interferência nas pesquisas, na metodologia, que não seja técnica, é completamente impossível”.

Parece haver excesso de otimismo em acreditar que o IBGE é assim inexpugnável. Se aprendemos alguma coisa com Bolsonaro, é que nenhuma instituição está protegida de interferência indevida. E desvios como perseguição de profissionais, direcionamento de verbas, alteração do perfil dos concursos com certeza podem comprometer a qualidade da entrega do Instituto.

Mas, se Pochmann era “o pior nome possível” e pode prejudicar (ou pôr sob suspeição) dados fundamentais para inúmeras instituições, a começar pelo governo, por que Lula o escolheu?

Está claro que, depois de tudo o que sofreu, Lula só confia nos seus velhos companheiros, fiéis até debaixo d'água. E também quer recompensá-los pela fidelidade (já se sabe que procura lugar para Guido Mantega, e estaria cogitando a Vale, o que seria um absurdo).

O nome de Pochmann, assim como a forma com que foi anunciado, combina com a opção pela radicalização, cada vez mais presente na conduta de Lula, que hostiliza Zelensky, os EUA, os ricos, o agronegócio, o mercado financeiro, o Banco Central; relativiza a democracia, defende Maduro, Putin e a China; ataca reformas e privatizações e quer revogar decisões do Congresso; cria subsídios sem justificativa etc. etc. Sem mencionar a hipótese aterradora de Lula cogitar mesmo interferir na taxa de inflação para reduzir o juro na mão grande.

À medida que radicaliza e ignora vozes dissonantes, Lula cria uma espécie de esquizofrenia. Há o governo de Haddad, que concilia, conduz a economia de forma sensata, se preocupa com responsabilidade fiscal e toma medidas pera reduzir o déficit. É o Brasil onde a bolsa dispara, o dólar despenca, o juro cai, o mercado fica otimista, as agências de rating melhoram a avaliação do país. E há o governo de Lula, que briga, xinga e faz nomeações estapafúrdias.

A radicalização de Lula constrange a esquerda mais moderna, reduz a boa vontade do centro e dos liberais, enfurece a direita e alimenta o bolsonarismo.

Os petistas mais inflamados rejubilam-se: para eles, Haddad é uma espécie de tucano infiltrado, alguém vendido ao mercado. E que precisa ser derrubado. Quanto mais radical se torna Lula, mais intenso se torna o fogo amigo.

Entre a vertente radical e a moderada, é evidente qual prevalecerá. A seguir nesse caminho, mais cedo ou mais tarde Lula prejudicará a economia e enfraquecerá Haddad, com os resultados esperados.

É um caminho perigoso. O mundo está em crise; a herança bolsonarista é maldita; as contas públicas não estão equilibradas e o dinheiro é escasso. Lula venceu por uma margem ínfima; seu grau de rejeição é altíssimo; o apoio na Câmara é pequeno, o Centrão tem apetite pantagruélico; Arhur Lira não é de confiança; e o bolsonarismo é acirrado, irresponsável e desleal. E existem as redes sociais. Em três anos e meio, muita coisa pode dar errado. O presidente deveria estar construindo pontes, mas se dedica a queimá-las.

Lula parece crer que chegou a um momento na vida em que pode fazer o que quiser sem dar satisfação a ninguém e sem que haja consequências. Mas as consequências, ensinava o Conselheiro Acácio, vêm depois. Um importante economista ligado ao Plano Real (mas que votou em Lula no segundo turno) avalia que o que estamos vivendo hoje deverá ser o ponto alto do atual governo: daqui para frente, as coisas só vão piorar. A ver.

Mas por que o governo atropelou Simone de maneira tão violenta, e como fica agora a situação da ministra? O ministro Paulo Pimenta, responsável pelo anúncio intempestivo, atribuiu o ocorrido a um erro de comunicação, minimizou o problema e deu o assunto por encerrado, no que foi seguido pelo resto do mundo político. Simone Tebet deixou claro que soube pela imprensa, mas absorveu o golpe.

A tese do erro de comunicação é um tanto risível.

Lula sabia que Simone estava no escuro e mesmo assim autorizou Pimenta a fazer o anúncio — feito na porta do Palácio da Alvorada. Lula é um político extremamente experiente, não cometeria um erro pueril desses. E depois do estrago feito, nada fez para prestigiar Simone.

O nome costumeiro para o que houve é fritura. (Se alguém quiser acreditar na história do erro, resta o fato: Simone é tão irrelevante para o governo que ninguém sequer se lembrou de lhe dar contar.)

Muitos dos eleitores de Simone foram contra sua entrada no governo, e são mais numerosos os que acham que ela fica desmoralizada ao aceitar o nome de Pochmann.

Ainda Bacha: “Não entendo como ela pôde ter aceitado. É incompreensível. Espero que ela não assine essa nomeação, pois seria um desrespeito à sua própria autobiografia.”

A posição de Simone Tebet no governo sempre foi delicada. Seu apoio a Lula (assim como o de Marina Silva) foi crucial para a vitória petista, mas ela (e também Marina) ganhou tratamento de terceira classe. Foi das últimas a serem nomeadas, não recebeu ministério especialmente importante, e ainda ficou meio que subordinada a Fernando Haddad.

Estar na área econômica cria problemas adicionais. Simone fica obrigada a defender as posições econômicas do governo, e é justamente nessa área que devem ocorrer as divergências mais importantes. Sua adesão à pressão governamental sobre o Banco Central, órgão de Estado autônomo, não pegou nada bem entre liberais. Além disso, se o governo for mal na área econômica, Simone fica contaminada. E se for bem, o herói será Haddad e ela, a coadjuvante.

O motivo pelo qual Simone aceitou essas condições não é segredo para ninguém: ou estaria lá, ou não estaria em lugar nenhum. E para ter alguma chance em 2026, é preciso estar em algum lugar, aparecer no noticiário. Isso faz com que os petistas a vejam com desconfiança redobrada: não é só “neoliberal”, é inimiga. Dadas as circunstâncias — proibida de criticar o governo, em papel de coadjuvante, desprestigiada e desgastada —, até que ponto estar no governo efetivamente melhora suas perspectivas eleitorais?

Que Simone precisa sair do governo, todo mundo sabe. A questão é quando. A fritura indica que, para Lula e o PT, a hora é já — até porque vai haver uma reforma ministerial, e Lula precisa abrir espaço para o Centrão. A conta do atropelamento é simples: se Simone aceitar a nomeação, se desmoraliza e perde capital político, o que é bom; se não aceitar e for embora... é ótimo.

Simone pensou bem, considerou que ainda não é hora e engoliu o sapo. Trata-se de uma profissional com décadas de experiência, adquirida inclusive em casa, deve saber o que faz. Mas precisa estar preparada para saber o que vai fazer quando vier o próximo sapo.

Porque os sapos continuarão vindo. E serão cada vez maiores.

*Ricardo Rangel é analista político e colunista da 'Veja'

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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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