O ‘sudestinismo’ de Romeu Zema

Proposição do governador mineiro pode espelhar, mais que arroubo direitista, uma reconfiguração de como as regiões se percebem e são percebidas no Brasil

A entrevista concedida pelo governador de Minas Gerais, Romeu Zema, ao jornal O Estado de S. Paulo causou polêmica ao questionar as políticas federais de redistribuição de renda por região. Chegara a hora de cessar o protagonismo político do Nordeste, que lhe garantiria aqueles privilégios. Esta seria uma das missões do Consórcio Sul-Sudeste, cujos governadores estariam inconformados com o percentual baixíssimo de retorno dos impostos pagos por seus estados ao governo federal. “Se não você vai cair naquela história, do produtor rural que começa só a dar um tratamento bom para as vaquinhas que produzem pouco e deixa de lado as que estão produzindo muito. Daqui a pouco as que produzem muito vão começar a reclamar o mesmo tratamento. É preciso tratar a todos da mesma forma”, disse Zema.

A batalha regionalista contra os supostos privilégios do Nordeste é uma novidade. Quanto mais vindo da boca de um governador mineiro. Mas Zema se limitou a fazer uma aplicação de sua ideologia neoliberal à geopolítica brasileira. Para quem acredita que auxiliar os mais necessitados é uma forma de roubo de quem produz, ou de estímulo à crônica preguiça, incapacidade ou má-fé dos mais carentes, era questão de tempo dirigir baterias contra a região mais pobre do Brasil. Para seu eleitorado de direita, soa como música a tese de que os cidadãos do Sudeste são contribuintes espoliados pelo Estado brasileiro para sustentar os vadios de um reduto lulista — o Nordeste. O consórcio Sul-Sudeste parece despertar justamente quando seis dos sete estados das duas regiões são governados por políticos de direita, ainda que em diferentes gradações. Seja como for, há que ser perguntar se a fala de Zema não pode ser indício de alguma mudança mais profunda na forma como as regiões brasileiras se percebem.

A reação algo exagerada dos governadores do Nordeste, falando em "separatismo", parece também reveladora da crença enraizada por muitas décadas pelos políticos dali de que o status juridicamente privilegiado da região é tão intocável quanto os de Brasília e de Manaus. Afinal, inconstitucionalidade ou “regionalismo reverso” não chega a ser separatismo. As identidades regionais, como todas, não são naturais, mas criações motivadas por interesses políticos.

A própria ideia de que o Brasil tem cinco regiões, duas das quais um Sudeste e um Nordeste, é mais recente do que se imagina. Por quatro séculos, o Brasil só teve duas, o Norte e o Sul, que rivalizavam em riqueza.

A acusação de separatismo dos governadores do atual Nordeste tem sua ironia, já que a região tentou se separar pelo menos duas vezes para deixar de sustentar o Sul, onde ficava a capital, sendo um bastião federalista. Foi só depois de 1870, quando a cultura do açúcar entrou em decadência e o Sul seguiu prosperando, que os políticos da região passaram a defender a posição contrária: a de que o Brasil tivesse um governo forte, capaz de suplementar sua renda por transferências regionais. Não á toa, a República estadualista de 1889 praticamente não encontrou republicanos no Norte.

Depois que na neoliberal República Velha o “café com leite” de Minas e São Paulo deixou o Norte à mingua é que começou a reação dos políticos para construir o atual Nordeste. Seu grande inventor foi o pernambucano Gilberto Freyre, que contra o modernismo paulista soltou um “manifesto regionalista” (1926) defendendo a tese de que o estados do atual Nordeste comporiam a única região culturalmente homogênea e “autenticamente” brasileira. Consagrou depois a tese em livro chamado justamente Nordeste (1937). Era o Nordeste dos romances de Jorge Amado e José Lins do Rego, e das canções de Luís Gonzaga. Os frutos políticos não tardaram: em 1949, Freyre conseguiu criar uma fundação federal voltada para a cultura nordestina no Recife. Ainda assim, o primeiro mapa do IBGE contendo uma divisão regional (1945) ainda não tinha Nordeste nem Sudeste: tinha dois nordestes, encaixando Bahia e Sergipe em uma região Leste e São Paulo na região Sul.

A construção política do Nordeste terminou em 1956, quando o paraibano Celso Furtado recauchutou a tese de Freyre em A Operação Nordeste. Ali, ele mobilizou a doutrina desenvolvimentista para justificar o financiamento do Nordeste pelo que viria a ser a Sudene (1959). Surgiu, então, a identidade dramática “nordestina” dos quadros de Portinari e dos filmes de Glauber Rocha: o Nordeste da seca, do flagelado, do retirante, do coronel, visto sempre como um “Brasil Profundo” em contraste com o “Sul maravilha” (e não Sudeste). O ideal desenvolvimentista que lhe servia de base pela transferência de recursos do Sudeste e do Sul terminou de ser sacramentado pela ditadura militar. Foi por esse tempo que governadores e senadores do Nordeste consolidaram seu “consórcio” para garantir em Brasília o poder da região, dominando o Senado e assegurando o status especial da região. Não por acaso, o Nordeste com sua atual configuração só aparece no mapa do IBGE de 1970. Essa construção política identitária foi tão bem sucedida que até os baianos se reconhecem “nordestinos”.

A dúvida é se o regionalismo de Zema e da maioria dos governadores do Consórcio Sul-Sudeste não refletiria uma dessas mudanças silenciosas, tectônicas mesmo, na forma como as regiões do Brasil se percebem como cêntricas ou periféricas, e que depende sempre da forma como se veem e são vistos pelas demais.

O Nordeste de 2023 não parece mais se ver no estereótipo que justificou a criação do seu status privilegiado no século 20. Já o Sudeste, que nunca teve regionalismo, pode estar criando sua identidade em oposição ao Nordeste por sensação de perda de centralidade.

Dados econômicos apontam o Centro-Oeste e o Nordeste como regiões economicamente mais dinâmicas, contrastando com um Sudeste e um Sul relativamente estagnados. Essa aparente mudança de status se torna visível no antigo centro do país, o Rio de Janeiro, cujo decadência tem obrigado o governo federal a periódicas intervenções, oficiais e oficiosas, que não passam de paliativos e exigiriam uma política mais consistente. Tem partido de nordestinos mais briosos a recente designação dos habitantes da outra região como “sudestinos”.

Essa mudança, por meio da qual o Sudeste deixaria de se perceber como centro para se perceber como parte, serviria de substrato cultural para combater o status juridicamente privilegiado de outras regiões — ou, quem sabe, para reivindicar também algum tipo de tratamento diferenciado. O tempo dirá se o “sudestinismo” de Zema se tornará tendência ou não passa de mais um sarampão direitista.

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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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