Lula III, um governo de ‘restauração’

Seja no perdão a alguns adversários, na percepção de que é imprescindível ou na conciliação com forças antagônicas, o presidente busca recompor o cenário de dez anos atrás

Foi em 2017 que publiquei um artigo na revista Insight Inteligência, comparando pela primeira vez a instabilidade política desencadeada pelas jornadas de 2013 e, depois, pela Lava Jato, a uma espécie de revolução branca, que denominei então “judiciarista”. O artigo acusava a existência na origem de uma crise de legitimidade do poder, decorrente do desgaste do modelo de governabilidade vigente, no qual o presidencialismo de coalizão autorizava a comprar maiorias congressuais independentemente da ideologia. O artigo também fazia paralelos com a revolução francesa: depois do início confuso das jornadas de 2013, viera uma fase radical ou jacobina, com a deposição do governante símbolo do “Antigo Regime” — o impeachment de Dilma fazendo as vezes da execução de Luís XVI na guilhotina. Eu fazia uma comparação do governo Temer ao período do Diretório ou do Termidor: época em que uma oligarquia moderada e corrupta tentara infrutiferamente “esfriar” a revolução, sendo atacada pelos radicais jacobinos e pelos reacionários saudosos do Antigo Regime. Um ano antes da eleição de Bolsonaro, o artigo terminava com uma advertência: a exasperação e o cansaço da população levaria a um desejo geral de encerrar a revolução e restabelecer a ordem pelo recurso à ditadura de autocrata carismático. Um Bonaparte. Depois, publiquei outro artigo, em que fazia uma sátira de Bolsonaro como “o falso Bonaparte”. Hoje, gostaria de retomar as analogias com a revolução francesa para pensar o momento em que vivemos.

Como se sabe, passada a derrota de Bonaparte em Waterloo, a dinastia de Bourbon deposta em 1793 retornou ao poder depois de mais de vinte anos, dando um (aparente) fim definitivo à revolução — época que entrou na história como aquela da “restauração”. Assim como, na França, a restauração do “antigo regime” se viu logo ameaçada pelo retorno de Bonaparte da ilha de Elba amparado pelo exército, também a restauração brasileira quase gorou com a tentativa de golpe bolsonarista de 8 de janeiro. Tudo indica, porém, que também aqui a restauração se imporá, e que o Judiciário será o Waterloo de Bolsonaro. Bonaparte terminou preso numa ilha no meio do Atlântico e tudo indica que o Mito, já inelegível, encontrará cedo ou tarde sua Santa Helena em algum presídio do Rio ou do Distrito Federal.

A dimensão monárquica implícita na expressão “restauração” não é desprovida de sentido no caso de Lula. Devido ao seu carisma, popularidade e longo período à frente do governo brasileiro, ele tendeu e tende a ser percebido como uma espécie de rei ou monarca legítimo do Brasil — o mais legítimo que já tivemos desde, pelo menos, Getúlio Vargas. Mas Lula também tende a se ver assim. Dilma Rousseff o sucedeu porque um terceiro mandato sequencial é inconstitucional, e a verdade é que, a despeito dos esforços de seus admiradores, principalmente no movimento feminista, a ex-presidente nunca teve brilho próprio. Dilma extraía sua legitimidade na condição de criatura de Lula, e quando ela pretendeu alçar voo próprio, foi abatida. O próprio Lula teve de ser impedido de retornar ao governo como ministro da Casa Civil de sua sucessora porque se sabia que, se voltasse o “rei legítimo”, as chances de impeachment despencariam. Depois da destruição bolsonarista, Lula III começa como o retorno do rei legítimo, que promete trazer também consigo os bons velhos tempos.

Dizem que quando o marquês de Maisonfort anunciou a Luís XVIII que ele se tornara rei da França, ele respondeu : “E desde quando eu deixei de sê-lo?”. Lula poderia ter respondido a mesma coisa, quando lhe anunciaram a última vitória eleitoral.

Lula foi reeleito para um inédito terceiro mandato na história republicana brasileira com a promessa de apagar tudo de mal que aconteceu no Brasil de 2013 para cá. Embora creia, no seu íntimo, que as coisas tenham começado a desandar mesmo três anos antes, quando passou a faixa para Dilma. Lula não tem a menor intenção de relançá-la à sua sucessão. Suas periódicas alusões à injustiça do impeachment ou à necessidade de compensá-la, especialmente depois de absolvida judicialmente por suas pedaladas — causa oficial do impeachment — não devem nos enganar. Quando Luís XVIII tomou o poder, não deixou de erigir uma capela expiatória em memória de seu irmão guilhotinado, e nada impede que Lula faça a mesma coisa por Dilma. Mas o passado está passado. O rei legítimo está de volta ao trono, mais certo do que nunca de que o bem-estar da nação depende de sua pessoa à frente dos negócios públicos. Sem sua presença a coisa desanda. Essa sensação de imprescindibilidade de sua pessoa e a autoconfiança reforçada pelo feito inédito de retornar ao Capitólio, depois de lançado da Rocha Tarpeia, o inclinam a pretender ficar no poder, que é o seu lugar natural, o tanto quanto possível. Ficará na presidência até 2030, se algum fator alheio à sua vontade não o impedir.

A lógica da restauração que orienta Lula apresenta uma série de vantagens óbvias, a principal das quais é restabelecer alguma esperança de normalidade e principalmente previsibilidade institucional depois de dez anos de turbulência e quase perda da democracia. Mas também apresenta algumas frustrações para aqueles que desejavam mais mudanças. Lula crê ter a fórmula para quase todos os males na repetição daquilo que julga ter dado certo em seus governos anteriores. Uma delas é oferecer a mão a todos aqueles que se encrencaram durante o governo Bolsonaro, como os militares e parte do Centrão. Lula não pode ver um adversário fragilizado, alguém que rompeu com ele, sem correr para lhe oferecer a mão, dando-lhe a chance de ser deliciosamente cooptado. No caso dos militares, quem acreditava que ele aproveitaria a oportunidade para enfraquecê-los, se frustrará. Lula lhes dará apoio, proteção, dinheiro e respeito, desde que aprendam que é ele o verdadeiro e justo protetor das Forças Armadas na República, e que o golpe não compensa. Podem contar com ele, embora não vá levantar um dedo para proteger da Justiça nenhum militar golpista.

Algo semelhante acontece com o modelo de governabilidade baseado no presidencialismo de coalizão. Como no passado, Lula deseja cooptar todos quanto puder para o seu governo.

Se depender dele, será uma verdadeira Arca de Noé, onde caberão todos os bichos, ainda que ocupando lugares maiores ou menores, dependendo de seu peso eleitoral, desde a a esquerda até a direita centrônica que governou com o próprio Bolsonaro. Aqui também as semelhanças entre as duas restaurações saltam aos olhos. Durante a revolução francesa, inconformado com a execução de seu irmão e com o exílio forçado, Luís XVIII se mostrara um defensor intransigente da restauração do Antigo Regime. Era, como se dizia na época, um “ultra”, ou seja, um radical. Desde que o processo de impeachment se tornou uma probabilidade e teve de sair em defesa de Dilma, também Lula radicalizou seu discurso, característica que manteve durante o período em que foi perseguido pela Lava Jato e esteve na prisão.

Ao voltarem ao poder, porém, ambos os monarcas decretaram o esquecimento do passado e voltaram prometendo a concórdia e a reconciliação. Apenas uma pequena parcela dos políticos do extremo oposto não recebeu perdão. No caso de Luís XVIII, não foram perdoados os jacobinos regicidas, que haviam votado pela execução de seu irmão mais velho e sustentado depois o próprio Bonaparte. Tiveram de fugir do país. No caso de Lula, mais generoso, ele até perdoa quem votou a favor do impeachment de Dilma. Mas não perdoa os cabeças do Lava Jatismo e a extrema direita bolsonarista, que também quer atrás das grades. Há ainda mais aspectos da “restauração” promovida por Lula III, na forma como lida com o Congresso e com o Supremo Tribunal Federal; da mesma forma, seus próprios adversários também instintivamente agem de forma a retomar as posições que ocupavam há dez anos, como se 2013, Lava Jato, Temer e Bolsonaro nunca tivessem acontecido. Mas isso ficará para outro artigo.

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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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