Vamos dobrar a meta

Vamos dobrar a meta

O relator da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), deputado Danilo Forte (UB-CE), desembarcou apressado do elevador que leva direto ao cafezinho do plenário da Câmara, no meio da tarde da última terça-feira. A correria era para marcar presença na sessão de votação. Não podia perder o ponto. Interceptado por uma leva de jornalistas, o cearense prometeu voltar para conversar um pouco sobre o orçamento e, principalmente, sobre a meta de déficit fiscal, tema que gerou barulho na discussão do arcabouço fiscal, aprovado no primeiro semestre, e vem dando o que falar, agora, na discussão do orçamento para 2024.

Nordestino, veterano, boa-praça, representante do Centrão e amigão do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), Forte chegava de uma reunião com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no Palácio do Planalto. No encontro, ele mostrou ao presidente sua disposição em “não atrapalhar o Brasil”, expressão que serve à sanha gastadora instalada no Legislativo e no Executivo, mas que vem causando arrepios em quem defende o rigoroso empate entre os gastos do governo e a arrecadação.

Forte falou com Lula sobre a possibilidade de um deputado do PT apresentar uma emenda, alterando a meta zero. Isso teria de ocorrer até o dia 16 de novembro, quando findará o prazo para que os parlamentares apresentem sugestões ao projeto da LDO. A sugestão, claro, seria acatada sem problemas pelo relator. “Tem que vir de um governista. E melhor que seja de um do próprio partido do presidente. E o governo teria votos para aprovar”, calculou o deputado. “Três deputados do PT já me procuraram”, apontou.

A conveniência de ser um nome do partido do presidente é a seguinte: mostrar que não é só o Centrão que quer dinheiro, mas o governo também. O relator fez questão de falar que o clima é de total harmonia com o outro lado da rua. “Nós não estamos travando uma guerra. Ao contrário. Eu estou guerreando para ter orçamento”, disse Forte ao Meio. Para justificar a pretendida bonança, o cearense passou a exibir a sequência de furos no finado teto de gastos, que vigorou do governo de Michel Temer até sua substituição pelo arcabouço fiscal. “A pior verdade é melhor do que a melhor mentira. O que não pode é ficar do jeito que está.” E a evocar a justificativa de fazer girar a roda que sempre moveu o mundo. “A economia está estagnada. Nós temos que atiçar a atividade econômica. A não ser que se tenha uma medida para aumentar imposto”, argumentou.

O goleiro e o artilheiro

A entrega do relatório final da LDO está marcada para o dia 20 e a sua votação deve ser feita até o dia 24 deste mês. A decisão de mudar agora a meta fiscal, apesar da fala de Lula de que o déficit zero “dificilmente” seria alcançado ano que vem, ainda não está tomada. O assunto opôs ministros palacianos que hoje disputam o poder de influenciar o presidente. Há dois blocos: um é liderado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT-SP), perseguidor da meta. Outro, pelo ministro da Casa Civil, Rui Costa (PT-BA), a quem Lula entregou a responsabilidade de propagandear e gerir o Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) e espalhar obras por todo o país. Haddad, em reservado, responsabiliza Rui por ter atiçado a já conhecida veia desenvolvimentista de Lula antes daquele café da manhã com jornalistas no Palácio do Planalto.

Entre os mais alinhados a Haddad estão a ministra da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, Esther Dweck, e o ministro de Relações Institucionais, Alexandre Padilha (PT-SP). Rui Costa também coleciona apoios. Ministros petistas das áreas de desenvolvimento estão com ele. E, na equipe econômica, um apoio mais sutil tem surpreendido: o de Simone Tebet (MDB-MS), que levou a mensagem ao Congresso com a meta zero, mas, como Lula defendeu na conversa com jornalistas, admitiria um endividamento “dentro da banda” (a variação de 0,25 ponto percentual prevista no arcabouço).

Padilha e Haddad defendem que esse assunto só seja tratado em março do ano que vem, depois que for divulgado o primeiro relatório trimestral da execução orçamentária. Com isso, Haddad acredita que a possível alteração vai considerar dados mais reais da economia. Nesse caso, o governo teria de enviar ao Congresso um projeto de lei (PLN) pedindo a alteração.

Parte desse argumento embute o cuidado de que entrar em negociação nesse momento com o Congresso para uma revisão da meta atrapalha totalmente a articulação para passar, até o final do ano, as matérias que podem gerar receitas de impostos. Além da reforma tributária, que voltou para a Câmara para análise dos pontos alterados pelo Senado, Haddad ainda tem uma lista de projetos que precisa ver aprovados ainda em 2023. Na Câmara, a equipe econômica espera a aprovação da proposta que acaba com parte das subvenções estaduais do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). No Senado, ainda tem para ser votado o projeto que taxa as aplicações em fundos especiais e offshore, além da proposta que regulamenta as apostas esportivas.

O que Padilha e Haddad não querem nesse momento é instalar, antecipadamente, um balcão de negociações com o Centrão, que durará meses e contribuirá para que a conta saia ainda mais cara para o governo. E nesse preço estão incluídas as vice-presidências da Caixa, cargos na Funasa e liberações de emendas. Melhor seria, na opinião dos dois ministros, deixar a realidade se impor. Para que manter um balcão aberto por meses se o governo pode negociar somente lá na frente, por algumas semanas?

Padilha sabe que a apetência do Centrão não tem fim. A decisão de mexer na meta é sensível e o Planalto não tem ainda todos os fatores para dimensionar a necessidade de “investimentos” na negociação. Ao mesmo tempo, Lula quer ser ativo nas eleições municipais do próximo ano e Rui Costa tem a função de transformar o país nesse palanque. No mesmo café em que falou sobre a meta, Lula informou que no próximo ano vai substituir as viagens internacionais que marcaram 2023 por viagens dentro do país. Para viajar internamente, tem que ter obra para lançar, inaugurar, vistoriar. Ou seja, tem que ter dinheiro entrando nos estados e municípios. Tem que ter PAC de um lado e liberação de emendas do outro.

Para saciar a fome dos parlamentares nessa reta final e tentar desfazer o ciúme dos senadores em relação ao tratamento que dispensado à Câmara, o governo terá de se esforçar. Lula precisou se colocar na negociação política e levar os líderes da Casa Alta para uma reunião no Planalto para aprovar no Senado a reforma tributária. Lá, ouviu queixas. Houve senador reclamando que deputado de sua base levou mais dinheiro que ele, “um absurdo”. Mesmo com o empenho do presidente, o placar foi apertado. Diante do que consideram privilégio dos deputados, senadores pediram um adicional em emendas parlamentares no valor de R$ 2 bilhões, de acordo com reportagem da Folha de S.Paulo. O argumento: Haddad teria se comprometido a destinar outros R$ 4 bilhões à Câmara dos Deputados — o que ministro e governo negam. É bom lembrar que há matérias importantes no Senado para serem votadas com impacto direto na arrecadação.

De bilhão em bilhão, de acordo com dados compilados pelo Planalto, dos R$ 21,2 bilhões previstos para emendas parlamentares individuais do orçamento desse ano, quase R$ 18 bilhões já foram empenhados (84%). As emendas parlamentares individuais são um dos três tipos que estão nas mãos dos congressistas — há ainda as emendas das bancadas estaduais, e as de comissão, que são recursos indicados por colegiados temáticos. Até o momento, foram pagos mais de R$ 13 bilhões nas individuais. Já a proposta de orçamento para 2024 prevê um incremento para esse tipo de emenda. A mensagem do governo prevê R$ 25 bilhões para serem distribuídos individualmente a deputados e senadores. O orçamento geral para o próximo ano também sugere um incremento de 8,5% nas despesas discricionárias, aquelas que o governo pode decidir onde gastar e que incluem as emendas parlamentares. Dos R$ 2 trilhões previstos para o total de despesas do governo, R$ 225,8 bilhões estão reservados para essas despesas. Desse montante, R$ 37,6 bilhões foram destinados para emendas parlamentares individuais ou de bancada. Esse valor é um pouco menor que os R$ 38,8 bilhões para as emendas a serem pagas neste ano. Trocando em não tão miúdos, a frágil coalizão de Lula no Congresso está estimada em quase 17% do que o governo tem para gastar livremente. E com o ágio de uma eleição municipal no meio.

Quem quer dinheiro?

Antes de decidir, Lula tem ouvido os dois lados. Na terça, antes de se encontrar com o relator da LDO, Lula almoçou com Haddad e com o diretor de política monetária do Banco Central, Gabriel Galípolo, a quem o presidente costumava chamar na época da campanha para se aconselhar sobre destinos na economia. O almoço não constava na agenda oficial. Naquele mesmo dia, Haddad pôde comemorar a vitória em uma batalha: a Comissão Mista de Orçamento (CMO) aprovou o relatório preliminar da LDO, encerrando assim o prazo que o governo tinha para enviar nova mensagem alterando o objetivo fiscal em 2024. Agora, Haddad torce para que não haja até o dia 16 de novembro uma iniciativa do governo de alterar a meta.

No Congresso, parlamentares ávidos por levar recursos para seus estados em um ano de eleições municipais parecem dispostos, sempre “pelo bem do Brasil”, a inclusive criar rubricas novas que possam engordar os repasses. O relator já incluiu em seu texto um novo tipo de emenda parlamentar, destinada às bancadas partidárias. A negociação agora está em torno de fazer com que o governo seja obrigado a pagar, ou seja, que essas emendas, a serem apresentadas pelas legendas, se tornem também impositivas, como todas as demais. “Está claro que parlamentares já têm mais dinheiro do que jamais tiveram para mandar para suas bases. Os valores das emendas aumentaram substantivamente no ciclo orçamentário passado, com Jair Bolsonaro. Além disso, não houve, na mensagem orçamentária enviada ao Congresso, uma diminuição desses valores aos patamares anteriores”, diz Lara Mesquita, cientista política e professora na graduação da FGV e do curso de pós-graduação em Ciência Política da FESP-SP.

Não só não houve diminuição como o relator Danilo Forte aposta que uma alteração apresentada pelo governo para mudar a meta seria facilmente aprovada por senadores e deputados, contabilizando aí os votos de partidos da base do governo e o Centrão, recentemente incorporado. Uma aposta que vai no fluxo contrário da resistência que algumas matérias de interesse do Planalto encontram. Para Forte, a alteração da meta “passaria fácil”.

A sanha por cargos e dinheiro pautando a relação entre os dois Poderes é própria de um governo inaugurado sem base no Congresso, na opinião da professora, mas não só isso. O fisiologismo ampliado nas articulações também mostra um desarranjo na oposição. Não há um partido que apresente uma proposta alternativa ao que está no poder — a não ser nos costumes — e, para além do toma-lá-dá-cá, tenha convicção de onde investir o dinheiro ou quando votar com ou contra o governo, independentemente das promessas. Fato é que, na época da polarização entre o PT e PSDB, existia sempre na oposição um partido que se colocava verdadeiramente como uma alternativa ao poder. “Havia ali um partido que dizia: ‘eu vou ganhar do governo de novo. Tem um problema no governo atual, eu tenho um programa de governo e eu sei o que eu quero’”, destaca Lara. “Tem uma parte do Centrão que não está nem aí para a reforma tributária ou outras, porque nunca vai governar o país e só quer conseguir uma melhor condição para o grupo que o financia ou ao qual está alinhado economicamente.” Nem que precise dobrar a meta.

Fé e crime

“Exército do Deus Vivo” — é assim que os traficantes que dominam cinco favelas da Zona Norte do Rio de Janeiro se denominam. O Complexo de Israel, que leva esse nome em alusão à “terra prometida” na Bíblia, é formado pelas favelas da Cidade Alta, Vigário Geral, Parada de Lucas, Cinco Bocas e Pica-pau. O idealizador e chefe do complexo é o traficante Álvaro Malaquias Santa Rosa, de 34 anos, conhecido como Peixão. Ao andar pelas comunidades, é comum se deparar com símbolos religiosos, versículos grafitados nos muros, a bandeira do Estado de Israel e até mesmo a Estrela de Davi. Em contrapartida, terreiros foram proibidos e imagens de santos católicos retiradas das localidades. Peixão já foi investigado por ordenar ataques a terreiros de religiões de matriz africana, por meio da atuação do Bonde de Jesus, em Duque de Caxias, onde nasceu.

A proximidade dos traficantes com a religião não é um fenômeno exclusivo do Evangelho. Desde os anos 1970, traficantes se identificavam com entidades da umbanda, orixás do candomblé e/ou com santos católicos. Segundo pesquisadores, alguns pais ou mães de santo cuidavam desses filhos espirituais traficantes. Alguns faziam ou auxiliavam despachos, ebós e trabalhos de fechamento de corpo, por exemplo. Hoje, as religiões de matrizes africanas sofrem com perseguições e intolerância religiosa. Um relatório da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa mostrou que 91% dos ataques que aconteceram, em 2021, foram a centros e terreiros, e que uma em cada 10 ocorrências é de terreiros ameaçados pelo tráfico de drogas. Segundo o relatório, esse número pode ser ainda maior.

A comunidade evangélica, em geral, rejeita a terminologia de “traficantes evangélicos”, já que para eles, uma pessoa que se alia ao tráfico de drogas nunca poderá ser considerada evangélica, de fato. Ainda assim, os traficantes que levam uma vida religiosa e se denominam evangélicos existem, e a religião impacta diretamente a forma como eles administram os territórios. A fim de analisar esse fenômeno e a proximidade dos traficantes com a religião evangélica, o Meio conversou com Christina Vital da Cunha, socióloga e autora de livro Oração de Traficante: uma etnografia. Ela também coordenou o Laboratório de Estudos Socio-Antropológicos em Política, Arte e Religião (Lepar), da Universidade Federal Fluminense. Confira os principais trechos da entrevista.

A religião sempre andou ao lado do crime organizado ou esse é um fenômeno recente?
É um erro dizermos que a “religião sempre andou ao lado do crime organizado”. O primeiro erro é sugerir que a religião ou alguma religião, como um todo, serviu ao crime organizado. O tratamento espiritual e o acolhimento aos que estão “no mundo” ou “na vida do crime”, como dizem esses religiosos, não os tornam coniventes com o crime, necessariamente. Contudo, e devemos separar bem os casos, houve e há pais e mães de santo, pastores e missionários que estabelecem uma relação de conivência e recebem dinheiro de traficantes, na forma de propriedades de terra e outros. Isso existe e, em meu trabalho de campo, foi documentado em entrevistas com moradores. Mas não podemos misturar o atendimento religioso de qualquer liderança a qualquer indivíduo à margem da legalidade ou da moral pública com o que pratica crime de interceptação ou outros.

Como se dá a influência da religião no tráfico? Os traficantes ficam menos violentos?
Em meu livro, apresento uma série de relatos de moradores e traficantes sobre a redução de danos na atuação criminal, como a orientação para não matar policiais, a menos que seja em confronto; não “esculachar” quem consumia crack na favela sob seu domínio; diminuição das brigas em situações cotidianas ou de lazer, como no futebol. No caso específico do TCP (Terceiro Comando da Capital), existe uma revalidação de práticas que já eram próprias da orientação do Cy de Acari (Darcy da Silva Filho, ex-chefe do tráfico de drogas da Favela de Acari), como evitar confrontos com a polícia, a prática generosa de “arregos” (corrupção policial), a valorização da relação de “boa vizinhança” com os moradores da favela. Percebi que, quando Jeremias, nome fictício que atribuo em meu livro a um dos mais procurados líderes desta facção nos anos 2000 e que foi preso durante o governo de Anthony Garotinho, se converteu, a revelação que ele recebeu, em meio a um período de conflito no interior do TC (que virou depois TCP), retomava procedimentos que Cy de Acari já impunha como regras na favela. Digo que ele atualizou, em termos religiosos, um “proceder” que era desta facção em décadas passadas. Agora, não é possível afirmar que bandidos, traficantes e milicianos passaram por uma metanoia, ou seja, uma transformação de vida, se eles continuam exercendo suas funções no crime.

O que isso quer dizer?
Do ponto de vista empírico e sociológico, podemos falar em mudanças contextuais de comportamentos, novas orientações de proceder no crime, mas metanoia, no sentido propriamente religioso, chega a ser delirante. É verdade que os traficantes entrevistados falavam em mudanças, a partir da aproximação com as redes evangélicas. Mas, em sentido bíblico, a metanoia é uma transformação que não é de inspiração hegeliana, por assim dizer, só no plano das ideias, mas, necessariamente, das práticas. Se o indivíduo continua no crime, não há como falar em metanoia, mas em mudanças estratégicas, sentidos de ordem renovados pela inspiração religiosa.

Como os líderes religiosos enxergam os “traficantes evangélicos”?
Sempre tive muito cuidado ao usar esta expressão e não a naturalizo. Os próprios traficantes não se chamavam assim e nem podemos dizer que a maioria que está nesta situação de trânsito, entre crime e igreja, se identifique de tal forma. Durante o meu trabalho de campo, que não se encerrou com a publicação de Oração de Traficante, observo que esta questão moral permanece. Mesmo em minhas incursões no Complexo de Israel e em conversas com líderes religiosos que estiveram com Peixão, essa não parece ser uma questão resolvida. Ou seja, para os religiosos, a conversão significa transformação moral e espiritual na vida e não uma composição entre crime e religião, ainda que esta aproximação de universos morais distintos venha a significar alguma referência de ordem ou previsibilidade na ação criminosa. Para todos os religiosos com quem estive até hoje, em Acari, Santa Marta, Cantagalo, Pavão Pavãozinho, Lagartixa, Complexo de Israel etc., uma coisa é bem clara: quem está no crime mata, rouba e trafica, não pode se autointitular como evangélico. A fronteira, para os religiosos, é muito clara e para os traficantes que entrevistei, também.

Há algumas décadas, era comum traficantes frequentarem religiões de matriz africana. Hoje, essa identificação está maior com as igrejas evangélicas? Aconteceu uma virada de chave?
Fui recenseadora do IBGE, nos anos 1990. Durante essa experiência, observei a presença religiosa afro e católica, em pinturas, murais e altares espalhados por favelas no Rio de Janeiro. Podemos dizer que o crescimento evangélico, documentado naquele período, aconteceu principalmente nas áreas com menor renda e escolaridade no meio urbano: as favelas e periferias. E os traficantes não caem do céu ou ascendem do Hades. São pessoas que viveram nessas localidades e são, ao mesmo tempo, frutos de uma cultura, como também a atualizam e difundem. Do ponto de vista sociológico, essa é a principal explicação para essa virada, na valorização e/ou na prática religiosa de traficantes em favelas e periferias cariocas. Contudo, durante as entrevistas em campo, traficantes e moradores recorrem a algumas situações em especial para explicar. Ou foi o pai de santo que fez o mal para algum traficante, ou o fechamento de corpo que não funcionou, ou foi a descrença moral e espiritual em relação à tradição afro, de um modo geral. Um elemento também importante nessa explicação local e também sociológica é a conversão de traficantes durante suas passagens no sistema prisional.

Existe uma perseguição religiosa a centros e terreiros, principalmente nas regiões dominadas pelo TCP. Por que essa perseguição começou?
Infelizmente, a perseguição moral e criminosa aos afro-religiosos, no Brasil, não se inicia com traficantes. Ou seja, a violência contra esses religiosos não teve início nos anos 1970, quando esses bandos armados começaram a se organizar e dominar territórios periféricos, no Rio de Janeiro e em outras cidades. Essa perseguição é histórica. Com a formação de traficantes em igrejas, cuja teologia favorece a percepção do mal nas religiões afro, essa violência histórica ganha novos atores engajados. É um drama terrível, mas chamo atenção para o fato de que o preconceito e as violências sofridas em favelas e periferias contra religiosos de matriz afro não estão restritas aos traficantes. O sentimento de antagonismo em relação aos afro-religiosos está incrustado na mente e no coração da maioria esmagadora de evangélicos brasileiros e se transforma em práticas de violência direta, nomeada intolerância religiosa, em alguns casos. Mas é um sentimento forjado no âmago desta tradição e isso não podemos negar. Há igrejas que estão valorizando as relações pacíficas com outras religiões e isso é mais comum entre denominações identificadas como progressistas, mas a maioria reforça, por meio de teologias e doutrinas, a localização do mal nas religiões afro.

O TCP é a única facção carioca que se denomina evangélica? O Comando Vermelho e o Terceiro Comando estão indo pelo mesmo caminho?
Devemos lembrar que há traficantes que valorizam redes, a moral e a gramática evangélicas, em todas as facções do crime no Rio e em outras cidades brasileiras. O TCP não é evangélico, embora várias lideranças desta facção possam ser identificadas externamente como “traficantes evangélicos” (os super-homens, como um deles disse e documentei em meu livro através de uma entrevista) ou terem vários ex-traficantes importantes se transformado em evangélicos.

Como o Estado, com a política bastante pautada em religião, pode atuar no combate aos “traficantes evangélicos”?
O Estado tem a obrigação de fazer valer a Constituição. Sendo assim, tem de garantir a liberdade de crença, não crença e a realização de quaisquer cultos, em território nacional. O combate ao extremismo religioso, em nível nacional, é essencial nesta medida. Temos que salientar que a maioria dos engajados em religiões monoteístas (cristianismo, islamismo e judaísmo) é conservadora, em termos teológicos. Mas não é necessariamente extremista. Estes formam um segmento minoritário, mas perigoso porque é violento. Sendo assim, o combate secular, e mesmo dos religiosos progressistas ou conservadores, deve ser ao extremismo, porque é este o segmento que não vê limites para o alcance de seus anseios e ambições privadas ou coletivas.

O que se pode esperar dessa relação do tráfico e da religião nos próximos anos?
Podemos pensar em alguns cenários. O primeiro deles em que a situação da violência se aprofunde, que o crime tome conta da cidade e do estado de modo ostensivo e a religião dominante entre os chefes das facções passe a ser a religiosidade valorizada ou até mesmo a única permitida em cada enclave dominado por cada bando armado. Observamos a religião ser um código por meio do qual traficantes, milicianos e outros grupos armados se comunicam com os de dentro e os de fora de seus grupos diretos. Outro cenário é o controle do crime violento pelo Estado, com o combate à impunidade e à corrupção, com a redução do poder político, financeiro e estético de traficantes e milicianos no Rio de Janeiro e no Brasil. Se isso acontecer, temos a chance de experimentar, em algumas décadas, uma presença significativa de pessoas autodeclaradas sem religião e a predominância relativa, mas não absoluta, de evangélicos. Talvez, voltemos a uma situação de não exclusivismo religioso (nem em termos de prática nem em termos de identificação), tal como tínhamos até os anos 1990, no Brasil, e que foi lindamente documentado por Eduardo Coutinho, em Santo Forte.

Entre a cruz e a caldeirinha

Scott Cawthon, criador e desenvolvedor dos jogos da franquia Five Nights at Freddy’s (FNaF), que agora se tornou filme e lidera as bilheterias no Brasil e nos Estados Unidos, fez sua última declaração pública há alguns anos: “Sou republicano. Cristão. Pró-vida. Acredito em Deus. Acredito na igualdade, na ciência e no senso comum. Ao contrário do que alguns dizem, essas crenças podem andar lado a lado. Isso não é uma desculpa ou promessa de mudar, é como sempre foi”.

O filme é, no mínimo, peculiar. Trata-se de um terror que se passa numa espécie de Chuck E. Cheese (aquela rede de restaurantes americana com um misto de fliperama e shows de bonecos gigantes de pelúcia precursores da Carreta Furacão, os “animatronics”) abandonado. O novo segurança noturno, interpretado por Josh Hutcherson (de Jogos Vorazes), acredita ser uma boa ideia levar a irmã caçula para lhe fazer companhia na ronda. Só que os animatronics se tornam bonecos assassinos ao anoitecer. Uma sinopse que talvez não chamasse tanta atenção, não fossem os anos de delírio da internet em torno do jogo e da aura de mistério de seu criador, que admite ter sofrido mentalmente por ter criado uma história recheada de assassinatos e horror.

Scott diz que, quando deprimido, pensou em renunciar a Deus. Cristão devoto, antes de criar o FNaF, desenvolvia animações independentes com narrativas que alguns bilhões de pessoas diriam ser mais críveis: as bíblicas. Juntou-se a outros três artistas na Hope Animation para disseminar a palavra. Publicou Arca de Noé e A Jornada do Peregrino em 2005, e O Clube de Crianças de Jesus, em 2010. Como seus filmes religiosos não fizeram tanto sucesso — “ou Deus não existia ou Deus me odiava”, ele dizia —, Scott desistiu de sua fé. Investiu em algo mais mundano: jogos de cassino. Não foi o suficiente para sua sorte mudar e nem para pagar as contas. Quando em 2013 ele lançou um jogo sobre um castor madeireiro que foi amplamente criticado por sua animação medonha, veio a ideia:  “Aposto que posso fazer algo bem mais medonho do que isso”. Com seu talento em criar animações apavorantes e distorcidas, Scott lançou o primeiro Five Nights at Freddy’s em 2014.

A premissa é a mesma do filme. Um segurança noturno num local abandonado deve sobreviver às suas noites evitando encontros com bonecos assassinos — mas no game não tem a menininha inocente. Mecânica simples, um mínimo de gerenciamento de recursos e sensação de terror toda vez que acende a luz porque, óbvio, jumpscares. Rapidamente, os maiores youtubers começaram a jogar e Scott, finalmente, pôde ter um gosto de sucesso. Para manter o interesse da base dos fãs, lançou FNaF 2 apenas três meses depois.

Foram nove jogos em quatro anos. A cada jogo, os fãs comentavam e criavam teorias sobre o assustador mundo de Scott. Seria baseado numa história real de uma tragédia num Chuck E. Cheese? Um dos bonecos assassinos teria duas almas? O protagonista seria um robô?

Com a glória, Scott se reaproximou de Deus e sua fé. Mas “tentou manter o jogo o mais limpo e sem sangue ou tripas o possível”. Desde os primeiros jogos, o artista manifestou seu dilema ao criar tragédias, dizendo que “se você se sente atraído a fazer ou jogar muitos jogos com ódio e imagens horríveis, você precisa acertar seu coração com Deus”. E, em 2018, repetiu que há um limite para aguentar o sofrimento humano e para a mente humana se concentrar em assassinatos e tragédias. Scott estava havia dois anos totalmente comprometido com a criação da franquia FNaF.

O filme segue outra linha, com sangue, facada, tiros, morte explícita numa serra e cadáveres. Após o lançamento do terceiro jogo FNaF em 2015, a Warner Bros. adquiriu os direitos cinematográficos da franquia, mas a produção só começou em 2018, com o envolvimento direto de Scott Cawthon e a produção da Blumhouse Pictures, a mesma de Megan e Corra!.

Scott queria oferecer algo de qualidade aos fãs com um orçamento de US$ 20 milhões, ciente de que um fracasso poderia ocorrer mesmo com seguidores tão leais quanto os dele. Mas por algum milagre o filme teve um desempenho excepcional nas bilheteiras dos Estados Unidos, arrecadando US$ 80 milhões na primeira semana de lançamento, e se tornou o filme de terror com maior bilheteria do ano — mesmo indo simultaneamente para o canal de streaming americano Peacock.

O longa, um sucesso comercial, teve nota nota 5,5/10 no IMDb e 30% pela crítica no Rotten Tomatoes. Mas Scott deve ter feito algo certo, porque sua base leal de fãs ficou feliz. Não que eles merecessem. Scott abandonou seu público numa carta de despedida em 2021, após sofrer um ataque de doxxing deles. O criador enfrentou controvérsias por doações para campanhas de Donald Trump e outros candidatos republicanos e cristãos. Teve seu endereço pessoal divulgado e foi alvo de acusações e críticas. Ele defendeu sua abordagem de tratar todos com igualdade, dignidade e respeito, independentemente de raça, religião, gênero ou orientação. Desde então, Scott optou por se manter afastado do público e da imprensa, concentrando-se em seu trabalho nos filmes de Five Nights at Freddy’s. Por outro lado, os mais fervorosos religiosos reprovavam sua dedicação a filmes de terror. O ciclo talvez se feche no fato de que algumas de suas animações cristãs estão esgotadas. E foi assim que a Hope Animation lidou com as críticas: “Entendemos que alguns cristãos possam se opor à ideia da história de Five Nights at Freddy’s. Os jogos, entretanto, são muito inofensivos em comparação com o que geralmente é jogado pela maioria. Além disso, o sucesso de seus novos jogos fez com que muitos não-cristãos também conhecessem suas outras produções (como A Jornada do Peregrino) e ouvissem falar do Evangelho dessa forma”. Amém.

Enem e esquerda estiveram em alta no interesse dos leitores na semana que passou, dá uma olhada:

1. UOL: Como votaram os senadores na reforma tributária.

2. Terra: Os memes do Enem.

3. Meio: Ponto de Partida — O Enem é de esquerda?

4. Meio: A esquerda que nasceu na internet.

5. Cursos do Meio: Israel e Palestina — Uma tragédia evitável?

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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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