Edição de Sábado: ‘Viver é se desfazer no tempo’, diz Rosa Montero

Rosa Montero é uma investigadora. A espanhola de 72 anos já fez mais de 2 mil interrogatórios em busca de respostas sobre a vida, a morte e tudo que acontece no meio. Escritora e jornalista, a arte de entrevistar e ouvir orienta sua produção literária e sacia a inquietude acerca do que é de fato ser “normal” ou o que é ser considerado “louco”. Afinal, não é normal sermos um pouco raros?

Em sua obra, Rosa nos lembra que somos animais sociais, iguais e diferentes ao mesmo tempo. Devemos nos deixar vulneráveis aos outros, à vida e também, claro, às perdas que a existência nos proporciona.

Tanto escrutínio do gênero humano a levou a querer estudar psicologia, até para entender sua própria cabeça. Desistiu. Depois de ter trabalhado no El País entre os anos 1970 e 1990, onde hoje é colunista, atualmente escreve romances. Mas não os coloca numa caixinha literária. Alguns deles, os que mais se aproximam de suas próprias experiências, são, em suas palavras, “artefatos literários” — uma mescla de ensaios, ficção, autobiografia, biografias de pensadores.

Rosa é autora de livros como A Louca da Casa, Nós, Mulheres — Grandes Vidas Femininas, A Ridícula Ideia de Nunca Mais te Ver, A Boa Sorte e O Perigo de Estar Lúcida, lançado este mês no Brasil. A escritora conversou com o Meio sobre suas obsessões narrativas, os avanços das lutas feministas e a sua relação com os leitores. Confira os principais trechos da entrevista.

Como escrever um livro sobre a relação entre criatividade e transtornos mentais sem romantizar os distúrbios?
Não diria que a maioria das pessoas que trabalham com criatividade sofrem de transtornos mentais. O que realmente acredito é que as mentes que se dedicam à criatividade têm um cabeamento neurológico um pouco anômalo em comparação ao cabeamento neurológico da maioria das pessoas. Essas anomalias que existem em nosso cabeamento neurológico são de alguma forma semelhantes às que as pessoas com transtornos mentais têm. A diferença entre as mentes criativas e as mentes das pessoas com transtornos mentais é mais quantitativa do que qualitativa. Possivelmente, as anomalias em nosso cabeamento são menores, enquanto pessoas com transtornos graves têm uma anomalia maior e mais intensa. Em O Perigo de Estar Lúcida, explico que os transtornos mentais abrangem uma amplíssima gama, partindo dos mais leves, mas que ainda assim podem ser muito difíceis. Tive ataques de pânico dos 16 aos 30 anos e é terrível vivenciar isso, podem ser episódios incapacitantes. E há aqueles muito graves, como a psicose, dos quais, por outro lado, é possível se recuperar. Então, no meu livro, não romantizo. Ao contrário, o que está claro, e absolutamente todos os especialistas dizem, é que ser “louco”, ou seja, ter um transtorno mental grave, que é o que entendemos por ser louco, não te faz um artista, te desfaz. A história da arte nos mostra que artistas que, infelizmente, caem em uma crise psicótica param de criar. Por exemplo, [Robert] Schumann parou de compor, [Friedrich] Hölderlin parou de escrever poemas. Embora [nós, criativos] sejamos primos-irmãos e nossas mentes tenham um cabeamento diferente da maioria da população e haja certa semelhança nesse cabeamento, a diferença é grande.

Há uma contradição na sua declarada resistência em escrever narrativas autobiográficas e o fato de que você acaba revelando seu processo de luto e seus ataques de pânico em suas obras?
Detesto a narrativa autobiográfica, não gosto de fazê-la. Meus romances partem de personagens opostos a mim, nem mesmo os conheci ou vi na rua. São pessoas que surgem como de um tipo de sonho de olhos abertos, que é o que é um romance. Os livros A Louca da Casa, O Perigo de Estar Lúcida e A Ridícula Ideia de Nunca Mais te Ver são uma produção diferente e especial na minha literatura. Eu os chamo de artefatos literários. Não se sabe muito bem o que são, se são um ensaio, mas um ensaio muito heterodoxo. São uma espécie de autobiografia, mas uma autobiografia pouco confiável. São biografias de outros autores e têm ficção também, tudo ao mesmo tempo, misturado. Então, não considero que nenhum desses livros seja muito íntimo, tampouco de testemunhos. Não os escrevo para dizer às pessoas “isso aconteceu comigo”, mas para tentar investigar o que acontece com todos nós. Para investigar o gênero humano há várias vias. Por exemplo, em O Perigo de Estar Lúcida uso a via dos especialistas, leio cientistas, neurocientistas, médicos, psiquiatras, etc. Outra via é olhar a biografia e a opinião de outros artistas. E outra via de conhecimento muito boa para investigar o gênero humano é a introspecção, a autoanálise. Mas, para que essa via seja boa, você tem que ser absolutamente implacável, tem de se autoanalisar da mesma forma que um entomologista analisa um besouro. Nesses livros, eu fui meu próprio inseto, objeto de estudo, e meu próprio entomologista. Penso que todos os livros são autobiográficos se entendermos essa palavra no sentido de que os romances são como sonhos que se sonham de olhos abertos. E, nesse sentido, traem, denunciam e deixam escapar o seu inconsciente, mas não porque seja uma autobiografia — talvez os fatos biográficos não tenham absolutamente nada a ver. O que importa é que emerge o fundo, digamos, dos seus conflitos, medos, desejos, coisas que nem mesmo sabes que estão lá.

Você fala sobre os fantasmas dos escritores, temas e detalhes que se repetem nos livros e, muitas vezes, eles não têm ciência. A morte, o medo e o desgosto pela narrativa autobiográfica são seus fantasmas?
Não, a morte, o medo e a aversão à prática da narrativa autobiográfica não são meus fantasmas. Os fantasmas são aqueles símbolos, temas e imagens que se repetem uma e outra vez sem que tu estejas consciente disso. A morte, o medo e a aversão à narrativa autobiográfica são coisas das quais sou plenamente consciente. Ou seja, são obsessões minhas sobre as quais escrevo, ou a partir das quais escrevo com plena consciência. Os fantasmas são os anões, por exemplo, que nem sequer sei por que aparecem. Podes dizer a um autor: “reparaste que todos os teus livros estão cheios de barcos?” e o romancista pode responder “Uau, não, não tinha percebido”, e talvez seu último romance se chame “O Veleiro Azul”. Ou seja, és cega para os fantasmas. Para mim, foi difícil perceber que os meus romances estavam cheios de anões, de fato, e foi difícil tentar entender o significado dos anões. Os outros temas que mencionas são simplesmente temas essenciais, cruciais na minha narrativa: o medo e, claro, a morte. Os meus romances estão cheios de uma investigação sobre a morte e sobre o passar do tempo, e o que o tempo nos faz e nos desfaz, porque viver é desfazer-se no tempo.

Você já escreveu histórias e biografias de mulheres de diferentes gerações. É possível identificar um processo de evolução na vida das mulheres que se dá a partir da luta feminista?
Evidentemente, a revolução feminista é uma mudança social gigantesca que vem ocorrendo há séculos. Começou no Renascimento, ou talvez até antes, no século 12 já houve algumas tentativas tímidas de mudar a realidade da mulher. A revolução antissexista está mudando a maneira como mulheres e homens vivem, pois eles também se relacionam com o estereótipo machista, que nos escravizam a todos. Entretanto, o que acontece é que com as mulheres é uma escravidão dupla. Mas, para nós, essa revolução está removendo também problemas legais. Lembremos que até o início do século 20 as mulheres não podiam ingressar na universidade, não podiam votar. Na Suíça, as mulheres conquistaram o direito ao voto em 1970. Que tremendo, não? Tudo isso nos torna mais livres, às mulheres e também aos homens, permitindo-nos ser muito melhores em absolutamente todas as direções. Não há nenhum problema com isso. Com a desconstrução do sexismo, tudo é ganho, com certeza.

No seu livro, você conta a história de Sylvia Plath, que escrevia sobre a tragédia de ser mulher, principalmente no que diz respeito ao cuidado dos filhos. Como você vê o enfrentamento à invisibilidade do trabalho do cuidado da mulher?
Se olharmos globalmente, há áreas no mundo aterradoras para as mulheres, como no Irã, Arábia Saudita e na Índia. Mas, como um todo, avançamos tanto, tão rapidamente, embora seja desesperador porque o sexismo ainda existe. Ainda se vê em muitos lugares o papel de cuidadora atribuído às mulheres. Muitas vezes sendo esperado delas que cuidem de seus pais e mães idosos, o que não é exigindo dos homens nem dos filhos. O desejo da mulher não é levado em consideração, mas sempre o dos pais, dos irmãos, dos maridos, dos filhos. Tudo isso ainda é uma prisão para mulheres, mas cada vez menos. Isso não significa que devemos baixar a guarda, porque as conquistas sociais, tanto no campo do feminismo quanto nos direitos humanos, podem ser revertidas a qualquer momento. Os retrógrados, e agora há uma onda retrógrada no mundo, podem nos privar, como seres humanos, das conquistas alcançadas, dos avanços democráticos obtidos nos últimos séculos. Então, é preciso estar sempre alerta.

As pessoas se sentem à vontade para compartilhar suas histórias de luto, suas manias e estranhezas. Há um paralelo entre o seu trabalho como escritora e uma espécie de psicologia social? 
Essa pergunta me alegra muito. De fato, recebo cartas, e-mails, e leitores, quando vêm às sessões de autógrafos, me contam suas vidas. Em A Ridícula Ideia de Nunca Mais te Ver, me contavam sobre seus lutos — mas eram histórias alegres, não de tristeza. Me contavam sobre momentos bonitos que viveram no luto. Por exemplo, me diziam “numa tarde, estive conversando com meu marido, minha esposa, meu irmão, com alguém que depois morreu, e foi a tarde mais linda da minha vida”. Agora, em O Perigo de Estar Lúcida estou tendo uma resposta absolutamente maravilhosa. Está sendo uma espécie de aventura, porque ri e chorei muito com as histórias que os leitores me contam. Me sinto tocada por poder ter essa relação tão íntima com os leitores. A leitura é algo ativo e, ao ler, os leitores escrevem o livro com o autor, coescrevem o livro. É um caminho maravilhoso para todos poder compartilhar o que é a substância da vida com suas luzes e sombras.

Como você vê a influência das redes sociais e a tecnologia na questão da criatividade, dos distúrbios e da saúde mental?
Por um lado, elas podem ajudar a conectar pessoas que compartilham os mesmos problemas, aproximar alguém que vive isolado em uma cidade pequena de outras pessoas que pensam e sentem da mesma forma. Nesse sentido, pode ser verdadeiramente positivo e benéfico. No entanto, as redes podem ter um efeito tão nefasto, tão prejudicial. Por exemplo, nos casos de bullying escolar. Antes, a criança que era maltratada na escola ia para casa, tinha amigos no bairro e, no verão, ia para o interior e lá tinha outros amiguinhos, sendo feliz e livre desse maltrato. Agora, o maltrato a persegue aonde quer que vá. Está colado a sua pele com esse amplificador que são as redes sociais, e que são tão perversas. Sem dúvida, as redes sociais têm matado pessoas. Então, verdadeiramente, é muito preocupante.

Lula, as crianças e o monstro

Por Luciana Lima e Pedro Doria

A imagem de bebês prematuros mortos, enrolados em panos e papel alumínio e perfilados sobre uma mesa, no hospital Al-Shifa, no Norte de Gaza, perturbava o presidente Luiz Inácio Lula da Silva desde o domingo, dia 12. Diante dos operadores da diplomacia brasileira, Lula mostrou indignação com a notícia. Nas redes sociais, expôs sua revolta dois dias depois. Era, mais uma vez, uma condenação ao que considera uma desproporção da reposta de Israel ao ataque feito pelo grupo terrorista Hamas no dia 7 de outubro. “O ataque a crianças e mulheres inocentes se assemelha ao terrorismo”, dizia o post. “Se eu sei que está cheio de criança em um lugar, pode ter um monstro lá dentro, não se pode matar as crianças para matar o monstro.”

A comunidade judaica, por meio da Confederação Israelita Brasileira, vem buscando contato com o Palácio do Planalto — queria pedir ao presidente uma palavra pelos reféns israelenses detidos pelo Hamas. Não teve resposta. A presidente do PT, deputada federal Gleisi Hoffmann, foi convidada pela Embaixada de Israel para assistir ao filme que mostrava em detalhes os horrores do atentado do Hamas cometido em 7 de outubro — que teve também bebês e mulheres grávidas por vítimas. Não respondeu ao convite.

Em Gaza, o hospital é alvo de Israel devido às suspeitas de que o Hamas mantém uma base militar sob o complexo. Durante o cerco israelense, com a luz cortada, os recém-nascidos tiveram de ser retirados das incubadoras. Ao menos seis deles não resistiram, de acordo com o Ministério de Saúde local — que é controlado pelo Hamas.

O que levou Lula a se manifestar, nesta última semana, foi o impacto das imagens de bebês palestinos mortos. Some-se a isso o transtorno que o cerco ao hospital provocou na fronteira de Gaza com o Egito e fez com que a saída dos brasileiros tivesse de ser adiada. Os nomes dos brasileiros estavam na lista dos que teriam permissão de sair na sexta-feira, dia 10. O grupo, no entanto, só conseguiu passar no domingo. Isso porque, pelas regras do Egito, ambulâncias com feridos têm prioridade para deixar Gaza. Mas, com os ataques a hospitais, elas estavam com dificuldades para se locomover e chegar à fronteira, que fica aberta poucas horas por dia. Depois de uma negociação para que estrangeiros fossem liberados mesmo sem a passagem de ambulâncias, os brasileiros deixaram a Faixa. A interlocutores, o presidente questionou como podia o Ocidente, tão rigoroso com os direitos humanos, fazer “vista grossa” com o que está acontecendo em Gaza. “É preciso ter uma reação à altura.”

Com esse espírito Lula foi, na segunda-feira, receber os brasileiros retirados do território conflagrado. A comparação das histórias de terror pareceu natural ao presidente. Foi refutado por judeus brasileiros, que classificaram a equiparação de “equivocada e perigosa”. “Nunca vi uma violência tão brutal, tão desumana contra inocentes. Se o Hamas cometeu um ato de terrorismo, o Estado de Israel também está cometendo um ato de terrorismo”, disse Lula, ao se pronunciar no final da noite na Base Aérea de Brasília, ao lado de seis de seus ministros, da primeira-dama, Janja, e de integrantes do grupo de 32 brasileiros resgatados.

De acordo com a convenção de Genebra, é ilegal, em quase todas as circunstâncias, atacar hospitais, ambulâncias ou outras instalações médicas, ou interferir na sua capacidade de prestar cuidados aos feridos e doentes, mesmo que seus pacientes sejam combatentes feridos. Trata-se de um crime de guerra, que pode ser processado no Tribunal Penal Internacional. Usar civis como escudos humanos é igualmente proibido pela mesma convenção. E, se um hospital for utilizado para fins militares, ele perde a proteção legal. O Direito Internacional Humanitário estabelece que antes de atacar um alvo militar dentro de um hospital, é preciso avisar os médicos e pacientes em um tempo razoável para escapar. Israel justifica as mortes causadas pelo cerco e pela tomada do Al-Shifa divulgando imagens de armas encontradas no hospital e túneis escavados na proximidade. As Forças de Defesa Israelenses também afirmam ter achado os corpos de duas reféns nas adjacências. Mas ainda não apresentaram provas de que havia um centro de comando e controle do grupo radical ali.

Palavras e imagens

Lula sabe que a guerra entre Israel e o Hamas deixou de ser uma questão externa e é um dos fatores de polarização na política interna no Brasil. Judeus brasileiros esperaram do presidente, desde o primeiro ataque do Hamas, uma declaração chamando o grupo de terrorista, por exemplo. A decisão do presidente de pender para um lado ajudou a mobilizar novamente o bolsonarismo, que infla as críticas nas redes sociais e em encontros e discursos no Congresso.

No caso da classificação do Hamas como grupo terrorista, o governo optou por recorrer a um critério “técnico”. Se o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) não considera o grupo como tal, argumenta, o Brasil também não. Lula, por sua vez, acrescentou que o grupo chegou ao poder em Gaza vencendo eleições. (Desde a vitória, em 2006, o grupo nunca mais convocou outro pleito.) Seguindo este argumento, Lula e o governo brasileiro escolheram condenar o ato do Hamas, mas não o Hamas. Ou seja, as declarações são no sentido de classificar o ataque do Hamas de 7 de outubro como “um ato terrorista”. Nos bastidores do Planalto, auxiliares de Lula apontam que a estratégia para vencer a crítica é a inferência. “Quem comete atos de terrorismo é o quê?”, disse ao Meio um auxiliar próximo do presidente. Mas o presidente não dá o passo além para afirmar com clareza.

O ministro de Relações Exteriores, Mauro Vieira, endossa essa tática. “O Hamas é um partido político também, tem um lado administrativo, e tem duas brigadas, que são o braço armado. Nem a organização como um todo nem as brigadas foram consideradas organizações terroristas pelo Conselho de Segurança da ONU até agora. Portanto, o Brasil segue essa orientação”, disse Vieira.

O problema é quando o uso de palavras por parte do presidente foge da “tecnicalidade”. Lula chamou os ataques de Israel a civis em Gaza de “genocídio”, termo rejeitado por pesquisadores do tema, que admitem que podem ter havido “crimes de guerra” ou mesmo “crimes contra a humanidade” — mas não “genocídio”. Relatores de direitos humanos da ONU falam em “genocídio em formação”, um argumento sem significado legal. Ao apelar por um rigor na classificação do Hamas, mas flexibilizar ao se referir a Israel, o presidente novamente causou frustração e indignação na comunidade judaica.

O Itamaraty busca se dissociar do limite técnico da palavra “genocídio”, que indica extermínio deliberado, parcial ou total, de uma comunidade, grupo étnico, racial ou religioso, como ocorreu com os judeus na Segunda Guerra. Aposta mais, nesse caso, na virulência das imagens que chegam de Gaza, tanto pela TV quanto pelas redes sociais, como capazes de justificar a retórica de Lula. De novo — escolhe quando se abraçar ao critério técnico. “Se a discussão for ficar na tecnicidade, não se vê a matança que está ocorrendo, a desproporção da resposta de Israel. É preciso ter sempre em mente que as declarações do presidente estão ancoradas na realidade de terror com civis, principalmente crianças e mulheres, mortas em Gaza. É disso que ele está falando”, disse um membro da diplomacia brasileira, em reservado, ao Meio.

O delicado equilíbrio

Lula e seu entorno não consideram justas as críticas de parte da comunidade judaica no Brasil e de representantes do governo de Israel, como seu embaixador no país, Daniel Zonshine. Primeiro, porque, para esses assessores, Lula estaria ecoando protestos de uma parcela de israelenses contrários a como a resposta militar vem sendo conduzida. (Há um problema neste argumento — as pesquisas mostram que a maioria dos cidadãos de Israel apoiam a guerra, com quase 60% considerando que o país deveria usar ainda mais força.) Em segundo lugar, porque, na avaliação de auxiliares próximos, nada difere o posicionamento do presidente brasileiro de outros grandes líderes mundiais, como o presidente da França, Emmanuel Macron, e o primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau. É fato que ambos condenaram ataques que resultam nas mortes de mulheres e crianças. Mas Macron visitou Israel ainda em outubro e Trudeau apoiou o direito de Israel se defender reiteradamente, coisas que Lula não fez.

Além disso, argumentam os palacianos, o governo brasileiro fez esforços para repatriar os cidadãos tanto de origem judaica como palestina, Lula condenou o terrorismo do Hamas, o Brasil chegou perto de uma resolução na ONU para tentar amenizar o sofrimento de civis. Esse conjunto de ações, ainda de acordo com auxiliares do presidente, cacifaria Lula a seguir se colocando como um agente mediador entre os dois lados. Foi assim enquanto o Brasil presidiu o Conselho de Segurança da ONU, no mês de outubro, e será assim até o final deste ano, quando o Brasil deixará de fazer parte do colegiado dominado pelas grandes potências. A ordem para a diplomacia é continuar propondo no Conselho um cessar-fogo e a abertura de um corredor humanitário. Depois, a partir de 1º de dezembro, quando o Brasil assumirá efetivamente a presidência do G20, a ideia é também pautar esse assunto no grupo das maiores economias.

Na quinta-feira, o telefonema de Lula com o presidente de Israel, Isaac Herzog, reforçou a ideia, no Planalto, de que o brasileiro é capaz de estar entre os líderes dispostos a promover a paz. Mas, segundo fontes brasileiras próximas ao presidente israelense, a percepção em Tel Aviv não foi essa. Herzog, que como Lula é do mais tradicional partido da esquerda local, saiu de suas conversas com o brasileiro com a percepção de pouca empatia com as vítimas israelenses e parcialidade perante o conflito. Auxiliares de Lula frisaram que a ligação foi solicitada pelo israelense, que pediu a Lula que mantivesse a pressão para a libertação dos reféns que estão em poder do Hamas. Lula, por sua vez, conservou perante Herzog a postura que o Planalto considera neutra, segundo a nota divulgada pelo próprio Planalto, lembrando a ele que já fez apelos pela libertação de todos os reféns ao conversar com líderes de países como Irã, Emirados Árabes, Turquia, Catar, Egito, Autoridade Palestina, além de França, Rússia e Índia. Para tentar desfazer a ideia de que tem lado, informou ao presidente israelense que fez videoconferência com familiares dos reféns e expressou preocupação com o aumento do antissemitismo no Brasil, o que foi saudado pela Confederação Israelita do Brasil, a Conib.

A favela no centro

Enormes espelhos envoltos por molduras e arabescos tomam suas paredes. O chão, parte de mármore, outra parte de madeira maciça. Por meio do pé direito altíssimo, o luxo se estende ao teto e é pendurado em lustres de cristal. Dourado por todo canto. Ao lado de uma das entradas da construção clássica, a caixa de som estala Donos da Capital, de MC Kevin (part. MC GP, MC IG, MC Lele JP & MC Ryan SP). “De fato, igual rico os maloqueiro tá vivendo. A conta deu aquela engordada. Lançou a goma na praia e a Audi corta o vento. De Nike da cabeça aos pés, dentro da Q7 eu passei de teto aberto. No meu time só camisa dez”, ecoa a letra que embala os quatro mil metros quadrados do Palácio dos Campos Elíseos. Fruto do baronato cafeeiro, o casarão símbolo da elite paulistana abriga há um ano o Museu das Favelas.

Para comemorar o aniversário, neste mês a casa será palco de exposição, lançamento de livro, apresentação de pesquisa e batalha de rima. Além disso, coloca no mundo o Festival Museu das Favelas, homenageando a resistência cultural das periferias por meio do hip hop. Tudo gratuito. “A ideia de criar o nosso espaço vem, na verdade, da demanda popular de entender o que são, o que eram e o que serão as favelas do Brasil”, conta a porta-voz Carla Zulu. O termo favela remonta à Guerra de Canudos, quando os soldados em batalha se fixaram em um morro cheio de faveleiras, árvore abundante na região da Caatinga. “O nascimento do Morro da Favela, atual Morro da Previdência, marca o início da história da periferia no Brasil. A partir daí, quem está guardando o patrimônio da quebrada? Quem é que está registrando a evolução das favelas? Para atender essa necessidade, surge o Museu das Favelas.” Até sua inauguração, no entanto, o caminho foi longo.

Projetado em 1896 pelo arquiteto alemão Matheus Haüssler, o palacete foi encomenda do rico fazendeiro Elias Antonio Pacheco e Chaves. Além de fazer a fortuna do rapaz, o café mudava profundamente São Paulo. Até então uma vila formada por casas de taipa, a região tornou-se rapidamente o centro político e econômico do país. Para receber tantos outros homens de negócios, as primeiras rodovias foram instaladas. O Viaduto do Chá, inaugurado. Expandiu-se a cidade para além do Vale do Anhangabaú e, em 1899, cercado por outras mansões luxuosas, finalmente Elias Chaves viu sua casa pronta, inspirada no francês Castelo de Écouen. No número 1.289 da Avenida Rio Branco, ele morou até o fim da vida com a mulher, Adélia da Silva Prado, e os onze filhos. O endereço atualmente é compartilhado por dependentes químicos e pessoas em situação de rua que se amontoam entre as vielas da Cracolândia — o museu conta com segurança reforçada.

Após sua morte, no entanto, a família, abalada por problemas financeiros, vendeu a propriedade ao Estado, que a transformou na sede e residência oficial do governo paulista. Rodrigues Alves, Washington Luís e Jânio Quadros são alguns dos que por ali passaram. O centro de poder da terra da garoa só foi transferido para o Palácio dos Bandeirantes em 1967, após um incêndio engolir o sonho de Elias Chaves. Dez anos se passaram e, já restaurado, o palácio foi tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (CONDEPHAAT). Sob tutela, o local serviu de base para secretarias estaduais, Sebrae, entre outras burocracias, até… Celso Athayde, fundador da Central Única das Favelas (Cufa), apresentar ao então governador João Doria um projeto voltado à preservação da cultura periférica. Em 8 de novembro de 2021, o tucano assinou o decreto que criava o museu. Cerca de um ano depois, em 25 do mesmo mês em 2022, suas portas foram abertas definitivamente. O museu é gerido pela Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas do Estado de São Paulo.

“Ter a casa instalada em uma mansão que foi destinada à elite aristocrática no comecinho do século 20 nos traz a sensação de reparação histórica. Ainda que seja pelo viés cultural. Até porque a ocupação simbólica evidencia que quem o levantou com suas próprias mãos não conseguiria acessar esse pequeno palácio de outra forma a não ser pelo espaço cultural”, reflete Zulu. Seu colega, o bibliotecário Sidnei Rodrigues de Andrade, corrobora. “Muita gente vem aqui e questiona: por que o Museu das Favelas não está na periferia? Sempre rebato com outra pergunta: e se eu te disser que o centro de São Paulo já foi favela? Portanto, é legítimo ocupar esse espaço. Trabalhamos exatamente para recuperar nossa história apagada e ressignificar o sentido de quebrada”, analisa, segurando nas mãos o livro O Perigo da História Única, de Chimamanda Ngozi Adichie.

Para cumprir seu papel, o museu aposta no trabalho de base. No site, disponibiliza um formulário para que jovens talentos inscrevam seus projetos. Também concede oficinas voltadas à economia criativa nas periferias. “O Museu das Favelas foi o primeiro do Estado de São Paulo a fomentar um centro de empreendedorismo. O que é extremamente necessário, já que somos potência criativa e econômica”, continua Andrade. De acordo com o Data Favela, em 2022 foram movimentados R$ 202 bilhões nas periferias do país. Por isso, Zulu aponta que “ressignificar a história é conservar a memória do que nosso povo produziu desde meados de 1900 até hoje. É dizer para as pessoas: tenham orgulho de viver na favela, tenham o entendimento de que vocês são cidadãos e de que sua mão de obra, sobretudo a ancestral, construiu todo o nosso Brasil”.

Semana que tem feriado não falha: nossas receitas sempre ficam entre os links mais clicados. Ainda mais porque as gostosuras vêm dela, a indefectível Rita Lobo:

1. Panelinha: Que tal uma torta madalena de cogumelos?

2. Meio: Ponto de Partida — O PDT periga derreter.

3. Folha: Morre o ator Paulo Hesse, aos 81 anos.

4. Meio: Ponto de Partida — A melhor república é a de hoje.

5. Panelinha: O injustiçado rabanete brilha nessa salada com castanha-de-caju.

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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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