Ressaca da globalização alimenta crise na democracia

Nos primeiros dias do ano, os analistas tiram do armário suas empoeiradas bolas de cristal, metem um turbante na cabeça e descrevem as cenas que veem. Quem sou eu para contrariar esse saudável hábito da profissão.

A globalização pode ser definida como um processo de progressiva unificação do mundo, experimentada desde pelo menos o século 15. Ele alterna períodos de expansão, marcados pela hegemonia ideológica do cosmopolitismo, e com outros, que se lhe seguem, de crise e retração (nunca completa), marcados pela hegemonia do nacionalismo. Este segundo ciclo é resultado das crises causadas pelas transformações do primeiro, ou seja, pela expansão algo anárquica ou desregulamentada das forças globalizadoras, na forma de capitais, empresas, imigração, mercadorias, mão-de-obra etc. A novidade se converte em problema, e surge o desejo de dar marcha-a-ré.

Assim, o ciclo de expansão renascentista, marcado pela descoberta da América (1492), aprofundou a crise do catolicismo que organizava a ordem dos diversos reinos, feudos, principados e repúblicas europeus. A reforma protestante que se lhe seguiu desencadeou um mortífero caudal de guerras religiosas, que dizimou um terço da população da Europa central. Seguiu-se um período autoritário de retração a partir da Paz de Vestfália (1648), que, entretanto, criaria os Estados absolutos como meio de restauração da ordem interna, restringindo a guerra aos exércitos dos príncipes e poupando civis.

O progresso comercial deu origem a um segundo ciclo de expansão, que coincidiu com o processo intelectual do Iluminismo, secular e racionalista, proclamando os princípios de liberdade e igualdade como fundamento de toda organização política legítima. Seu ponto alto foi a Revolução Francesa (1789). Mas a desordem, a insegurança e a crise por ele desencadeadas e espalhadas pelas guerras napoleônicas logo detonaram a reação que desembocou no Congresso de Viena e no sistema de contenção criado pela Santa Aliança, que limitou na Europa a generalização dos governos constitucionais representativos.

Meio século depois, chegou a vez da chamada Belle Époque ou a “Era do Capital”, novo período de expansão otimista, marcado pela segunda revolução industrial e pelo liberalismo científico, que anunciava a democracia pelo telégrafo, pelas ferrovias, pelos vapores. A crise da expansão capitalista liberal, que trouxe consigo a emergência das massas e do socialismo, degenerou na “Era dos impérios”, cujas ideologias autoritárias e xenofóbicas desenvolvidas pelo desafio da emergência alemã levou à Primeira Guerra Mundial. A intercorrência da Revolução comunista na Rússia levou à conformação simétrica do fascismo na extrema-direita, que por sua vez provocaria a Segunda Guerra Mundial. Só a organização da democracia social em bases nacionais depois de 1945 trouxe equilíbrio ao século no Ocidente, tanto na Europa ocidental quanto nos Estados Unidos.

Na década de 1980, com a queda do Muro de Berlim, iniciou-se mais um período de expansão otimista, baseado em um cosmopolitismo liberal como “fim da história”, queda de barreiras alfandegárias, na unificação da Europa, na emergência de uma sociedade global, na afirmação das identidades LGBTQIA+ (o “neoliberalismo progressista”), internet, redes sociais etc. Depois dos atentados às Torres Gêmeas e da crise dos subprime (2008), somadas à mudança do eixo geopolítico para o Oriente e para o Sul e à questão climática, a sensação de decadência e insegurança proporcionou o retorno de movimentos extremistas de direita, pregando no Ocidente o retrocesso democrático como solução.

Este é o pé em que estamos na década de 2020. A crer no movimento histórico, podemos imaginar em grossas linhas o que vem pela frente.

No contexto mundial, Europa e Estados Unidos se sentem decadentes e ameaçados. Na ordem externa, sua tradicional hegemonia mundial se vê questionada pela ascensão da China e outras potências. Na ordem interna, é a identidade cultural nacional – cristã, patriarcal e heteronormativa – que é desafiada pela emancipação feminina, de minorias de gênero e raça ou etnia, agravadas pela imigração africana, asiática e latina. Na América Latina, o coquetel de ameaça interna recebe o ingrediente não desprezível da resistência das elites à ascensão de setores sociais subalternizados desde o período colonial, mas também a resistência de problemas antigos de estagnação econômica e elevados índices de criminalidade.

Em suma, uma parcela considerável da sociedade no Ocidente passou a desacreditar dos meios democráticos para resolver seus problemas, que passaram a atribuir às mudanças operadas durante o último ciclo de expansão da globalização. Daí a crise do sistema representativo e a correlata ascensão eleitoral de lideranças populistas de extrema-direita de tendência nacionalista e xenofóbica, vendendo a ilusão de se poder fazer girar para trás a roda do tempo. Ascensão embalada pelo sistema de desconfiança e descrédito difundidos pelas redes sociais, carentes de regulamentação. O acirramento dos ânimos e o cansaço das fórmulas tradicionais de resolução de conflitos consagrados em Constituições, que leva ao populismo autoritário, se reflete também no descrédito da autoridade das Nações Unidas e ao recurso que parece cada vez mais frequente às guerras, como a da Palestina (com Israel) e a da Ucrânia (com a Rússia), aquela que quase estalou na Guiana (e Venezuela), e aquela que há de estalar em breve em Taiwan (com a China).

Parece inevitável que cada país acabe experimentando pelo menos uma vez um governo de extrema direita. Daí a incerteza sobre a capacidade de sobrevivência da democracia.

Países a ela habituados dificilmente se tornam ou se tornarão ditaduras semelhantes às de meio século atrás. É o que se vê das experiências populistas reacionárias na Grã-Bretanha de Johnson, na Itália de Meloni, no Brasil de Bolsonaro, e que possivelmente veremos na França de Le Pen e no Portugal de Ventura, como já a vemos na Argentina de Milei. Mas nada impede que tais governos de orientação nacionalista reacionária restrinjam ou tentem restringir a democracia aos “bons cidadãos” ou “cidadãos originários”, reprimindo minorias. É o que se percebe na Hungria, na Polônia, na Rússia, em Israel.

O caso norte-americano é, claro, o mais grave de todos para a democracia mundial. Os Estados Unidos se veem mergulhados na maior crise interna desde a Guerra Civil, provocado pela sensação de declínio de seu poder mundial no exterior e da do fim da identidade cultural cristã, heteronormativa e branca herdada do período colonial. A isso se ajunta a obsolescência de suas instituições, capturadas pela minoria republicana radicalizada que deforma as regras democráticas para impedir sua derrota, à maneira da elite escravagista da primeira metade do século 19. O eventual retorno de Trump ao poder poderá vibrar um golpe de morte no sistema democrático, animando uma segunda onda global de autocratização.

Como fica o Brasil? Tivemos mais sorte. O Congresso moderou em parte Bolsonaro, que foi contido de forma mais clara pelo Supremo Tribunal Federal, derrotado nas urnas e julgado inelegível depois da tentativa de golpe de Estado. Cortou-se a cabeça da Medusa, deixando por ora acéfalas a direita e a extrema-direita, do ponto de vista eleitoral. Outro ponto positivo foi a eleição de um líder como Lula, cuja extensa popularidade conjuga adesão à democracia com pragmatismo e habilidade. Ao apostar na melhoria dos indicadores socioeconômicos para desarmar a bomba da polarização radical promovida pela extrema direita, ao invés de recorrer a um populismo autoritário de esquerda, Lula se tornou a melhor barreira de contenção às pretensões autocráticas que o Brasil poderia ter.

Por outro lado, Lula não é eterno. Um terço do eleitorado brasileiro continua refratário à democracia – e, com ele, militares, polícias, religiosos fundamentalistas, agro negociantes. A maioria do Congresso Nacional tornou-se assumidamente conservadora e, pior, parasitária em seu desejo de reproduzir-se e apropriar-se do governo às custas de fundos públicos e do Orçamento. Lula já tem reagido a essa tendência, fazendo um governo à direita do próprio PT, buscando neutralizar a resistência do centro liberal, mas também de militares, policiais, evangélicos. Não há nada que nos faça crer que esse movimento se reduza. Uma reeleição de Trump, a multiplicação de guerras e a repetição de incidentes nas fronteiras provavelmente obrigarão Lula a aprofundá-lo.

Nesse momento as brumas se multiplicam e turvam as cenas de minha bola de cristal. Prometo um esfregão reforçado de flanela na superfície dela, quando escrever minha próxima coluna.

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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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