Na CPI do padre Júlio Lancellotti, conservadores testam limites

Por que afinal a proposta de uma CPI da Câmara de Vereadores de São Paulo, que, de acordo com declarações repetidas do seu proponente, visa o padre Júlio Lancellotti, pode ter parecido uma boa ideia aos seus signatários?

A resposta óbvia é que o proponente e os demais vereadores que assinaram o requerimento da CPI calculam faturar eleitoralmente com o bolsonarismo paulistano, recurso ainda abundante e uma potência eleitoral considerável. Dessa perspectiva, mexer em ONGs, atacar os “defensores da bandidagem” ou constranger o “padre comunista” não seria um gasto de capital, mas um investimento. Devem estar contando com a rentabilidade dessa estratégia para garantir mais um mandato em uma eleição que ocorrerá em apenas alguns meses.

Naturalmente, aquele que propõe uma medida dessa envergadura acredita que se garante na contagem de votos na casa legislativa. Afinal, não é algo trivial sugerir uma CPI para atacar uma pastoral católica que atende moradores de rua e menores abandonados, ou para ir para cima de Padre Júlio. É uma manobra de quem acha que está por cima da carne seca.

No entanto, há ainda uma terceira consideração que merece uma análise mais aprofundada. Aquele que propõe uma iniciativa política de tal magnitude precisa partir do pressuposto de que a Igreja Católica não representa uma força política e eleitoral significativa, calculam que não há um risco substancial em bater de frente contra os católicos.

E olha que, nesse caso ao menos, a aposta foi bem alta. Há registros conhecidos do apreço do Papa Francisco pelo Padre Júlio e sua dedicação a essa população. O Cardeal de São Paulo, Dom Odilo Scherer, prontamente assumiu a defesa pública de seu sacerdote e da sua pastoral, fundada por ninguém menos que por Dom Paulo Evaristo Arns. Tanto a Cúria Romana quanto a Arquidiocese de São Paulo estão ao lado do Padre Júlio, e a CNBB certamente se unirá, se necessário, num movimento coeso e unificado como há muito tempo não se vê. No entanto, mesmo esse confronto parece não ter intimidado o vereador Rubinho Nunes (União) e os outros signatários que mantêm seus nomes no requerimento da CPI.

Os proponentes do requerimento parecem ignorar quase tudo sobre os católicos. Antes de tudo, ignoram o significado de uma “pastoral”, que consiste em um conjunto de atividades de prestação de assistência espiritual e material organizadas pela diocese para atender às necessidades específicas de grupos ou situações. Uma pastoral é uma forma de atividade missionária, buscando “trazer almas para Cristo”, mas com foco no acolhimento, no cuidado do próximo, na congregação em um ambiente de convivência e caridade fraterna. Existem pastorais da juventude, da saúde, carcerária, dos migrantes, das pessoas em situação de rua, dos nômades, entre outras, nas quais sacerdotes e leigos oferecem serviços espirituais, orientação moral e assistência prática aos membros da comunidade. Padre Júlio coordena voluntários em uma pastoral que inclui, entre outros grupos, pessoas em desesperadora situação de rua devido ao consumo de crack.

Não é concebível que a Igreja abandone pessoas que se encontram entre os mais vulneráveis, aqueles pelos quais ninguém se preocupa, os que parecem estar além da esperança.

Seria equiparável a imaginar o abandono de leprosos, mutilados de guerra, órfãos e viúvas em outras épocas. Não se pode sequer sugerir que o cuidado daqueles de que a sociedade desistiu e dos quais o poder público demonstrou não ser capaz de atender, implique qualquer incentivo a determinados estilos ou condições de vida. Considere-se se tal afirmação poderia ser feita em relação a uma pastoral dedicada a pessoas afetadas pela hanseníase, asilados políticos, fugitivos da miséria ou perseguições religiosas, ou adolescentes pobres grávidas. A mera sugestão de que a atitude samaritana dos cristãos fortalece positivamente situações desumanas seria considerada uma ofensa desumana. Por que cuidar de pessoas envolvidas com crack seria diferente?

No entanto, ambas as suposições frequentam as declarações de alguns membros da Câmara Municipal de São Paulo cuja base eleitoral têm raízes no bolsonarismo. O autor do pedido de CPI declarou abertamente que Padre Júlio é um “cafetão da miséria”, implicando que o sacerdote explora em benefício próprios os zumbis da Cracolândia, cuja desgraça a sua pastoral cuida de aliviar. Há quem tenha prometido “desmascarar” o padre, porque precisa acreditar que o sacerdote e a pastoral que coordena tenham uma agenda oculta e desfrutam de benefícios inconfessáveis, e não que servem à ética religiosa da abnegação, misericórdia e compaixão.

Aqui está um paradoxo evidente nesta CPI. Seus proponentes, sem exceção, são provenientes do campo conservador, da turma do “Deus acima de todos”, nenhum deles ousaria contestar as reivindicações fundamentais de seus eleitores evangélicos. No entanto, contradizem o que poderia ser considerada a prática mais cristã, isto é, a piedade manifestada na assistência aos marginalizados.

Ocorre que são duas matrizes religiosas distintas. Uma é caracterizada por uma abordagem pastoral centrada na misericórdia, piedade e compaixão, com a caridade cristã como elemento central. A outra se destaca pelo rigor moral, enfatizando a necessidade de conversão de uma vida pecaminosa para uma vida de retidão. Mas se tratam sobretudo de dois modelos de influência política. Podemos preferir um modelo moral ao outro, mas o fato é que os neopentecostais é que são o modelo religioso vencedor do ponto de vista eleitoral.

A história do declínio da influência política dos católicos está intrinsecamente ligada à ascensão eleitoral dos neopentecostais. Ao contrário da tese dos anos 1980, que atribuía o crescimento das “seitas” pentecostais, como se dizia, ao suposto desvio da Igreja Católica nos anos 1970 e 1980 de sua missão religiosa para questões sociais e políticas, o sucesso político dos evangélicos populares ocorreu ao ocupar o espaço abandonado pelos católicos. A nova evangelização, inspirada no Concílio Vaticano II e nos sínodos de Medellín e Puebla, representou possivelmente o mais autêntico esforço da Igreja para alcançar o “povo”. A Teologia da Libertação, aniquilada nos anos 1980 por um papa conservador, marcou o último suspiro de uma Igreja popular e com relevância política e eleitoral junto à massa de pobres e miseráveis.

Pode-se criticar hoje a sociologia marxista pouco sofisticada por trás da Teologia da Libertação, mas não se pode negar sua capacidade de estimular ideologicamente a atuação eclesial na base da sociedade, nem a força motriz da “opção preferencial pelos pobres” para uma presença política dos católicos na “conscientização social”, como se dizia, nos grotões e nas periferias. Naqueles anos e contexto, os católicos formaram inúmeros “quadros” na base social, que posteriormente emergiram para o terceiro setor, o sindicalismo e, por fim, para a política partidária. A presença visível e orgânica de agentes comunitários católicos na base dava-lhes competência para organizar eleitoralmente as comunidades, recrutar nomes e apontar a direção dos votos populares.

Desativado o movimento da Teologia da Libertação, o espaço foi gradualmente preenchido, a partir da metade dos anos 1980, pelos evangélicos populares das novas igrejas neopentecostais.

Eles conseguiram progressivamente desempenhar as funções essenciais de uma política de base: organizar redes sociais de natureza territorial nas periferias e nos grotões onde estavam presentes, articular-se para recrutar candidatos a cargos eletivos e direcionar os votos de maneira a obter representação nas casas legislativas. Além disso, a perda gradual do acesso do Estado a periferias dominadas pelo tráfico ou por milícias, onde nada entra sem a autorização dessas “instituições”, exceto as igrejas neopentecostais já presentes, ofereceu frequentemente a única alternativa de vida comunitária ou de educação dos filhos fora do alcance das facções criminosas. Em qualquer periferia, em qualquer vilarejo remoto e isolado, no lugar mais distante do Brasil, pode faltar tudo, mas certamente haverá uma ou duas igrejas evangélicas populares onde “os crentes” se congregam. À medida que as invasões aumentaram nas periferias, a Igreja Católica perdeu a capacidade de acompanhar as novas expansões urbanas com novos templos, enquanto os evangélicos populares não.

Começou ali a ocupação constante e sistemática das casas legislativas municipais com candidaturas listadas no TSE com nomes como Irmão, Apóstolo, Missionário, Pastor e Bispo. Posteriormente, expandiram-se para as Assembleias Legislativas e o Congresso Nacional, formando bancadas cada vez maiores, ativas e conscientes de que a sua base eleitoral usa a religião e as pautas morais cada vez mais como a principal razão para o voto

A capacidade eleitoral dos neopentecostais e de outras igrejas evangélicas com penetração popular cresceu pari passu com a institucionalização e o crescimento exponencial dessas Igrejas nos anos 1990 e 2000, o aumento da sua base de fiéis, o vultuoso crescimento dos seus templos e do seu patrimônio, o seu acesso aos meios de comunicação, a constituição de uma hierarquia religiosa organizada, verticalizada e poderosa. Com a crise política iniciada em 2015, e a ascensão do bolsonarismo, que tem o conservadorismo moral e religioso como uma de suas faces mais apelativas, os evangélicos perceberam a magnitude de sua força eleitoral e a importância de sua presença nas casas legislativas. Isso os consolidou como uma força política significativa, não mais um apêndice secundário do jogo político tradicional que se baseava em outras clivagens.

Hoje, nem a Igreja Católica, nem o sindicalismo, e muito menos a esquerda identitária têm a capacidade de direcionar votos populares ou formar listas eleitorais comparáveis às igrejas neopentecostais.

Nem manobram bancadas em casas legislativas com uma fração do tamanho das bancadas sob influência direta das igrejas evangélicas populares. Nem têm uma fração das bases eleitorais com que os líderes hierárquicos dessas igrejas sabem que podem contar e que usam como cacife para que os vereadores e deputados das suas bancadas não temam perder eleições por contrariar outros interesses. Inclusive os interesses dos progressistas, dos identitários e, enfim, da própria outrora poderosa Igreja Católica.

Isso dá aos conservadores a sensação de segurança eleitoral, lhes permitindo até mesmo atacar figuras proeminentes como Padre Júlio Lancellotti, protegido pela Igreja, pelo establishment político e pela opinião pública. Fazem isso porque não dependem eleitoralmente nem de uns nem de outros, têm as suas próprias fontes de votos e prestam contas a outros constituintes.

Se este cálculo corresponde aos fatos ou se, neste caso, eles foram longe demais, saberemos nas próximas eleições municipais. Mas onde você vê uma tentativa absurda de CPI com uma pauta que é um desastre de relações pública e de imagem, eu vejo os conservadores brasileiros testando os próprios limites.


*Wilson Gomes é doutor em filosofia, professor titular da Universidade Federal da Bahia e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada".

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O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

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