O parlamentarismo bastardo em xeque

Fórmula criada por Eduardo Cunha e aperfeiçoada por Arthur Lira está ameaçada por Lula III, que busca diálogo direto com parlamentares e se alia ao Judiciário para retomar primazia do Executivo

O projeto de afirmação da independência de um Congresso dominado pelo Centrão, que assumisse a primazia sobre os demais poderes, foi originalmente formulado por Eduardo Cunha em 2015. Era uma reação da classe política centrônica contra a operação Lava Jato, que avançava com o beneplácito do Supremo Tribunal Federal. O Executivo, que a cooptava desde o governo FHC para sua agenda de governo em troca de benefícios de cargos e verbas (o famoso “presidencialismo de coalizão”), revelava-se incapaz de protegê-la de Sergio Moro. Urgia mudar um modelo de governança que deixava o Legislativo refém do Executivo e sujeito aos ímpetos de um Judiciário poderoso. Surgiu assim, nas ruínas do presidencialismo de coalizão, o “parlamentarismo bastardo” do Centrão, desculpado com a promessa de um dia se converter formalmente em semipresencialismo.

Dois eram os objetivos desse “parlamentarismo bastardo”, implantado assim que o impeachment de Dilma Rousseff alçou Michel Temer ao poder. Primeiro, a ascendência sobre o Executivo, de modo a não mais dele depender unilateralmente como cliente para a obtenção das verbas necessárias à reeleição de seus membros. Processo que, reforçado pela tomada pelo Centrão de todos os ministérios estratégicos para seu plano de perpetuação no poder pela irrigação de dinheiro público, se consolidou com a progressiva conquista do orçamento por meio de emendas de execução obrigatória. O segundo objetivo do parlamentarismo bastardo, por sua vez, é o de converter o instituto da imunidade parlamentar em verdadeira impunidade, pressionando o Executivo a indicar procuradores-gerais da República e ministros do STF comprometidos com essa particular interpretação do chamado “garantismo”, sob pena de rejeitar as indicações do presidente da República no Senado.

O céu de brigadeiro do parlamentarismo bastardo, embora implantado sob Michel Temer, foi a segunda metade do governo Bolsonaro, quando este último enfim desistiu de seu projeto de governar emparedando o Congresso via WhatsApp e generais de cara feia.

Arthur Lira assume a presidência da Câmara não só com o propósito de restaurar e ampliar o parlamentarismo bastardo do governo Temer, como o coloca a serviço de seu projeto pessoal de destituir Renan Calheiros de seu posto de chefe da política das Alagoas, alçar depois ao Senado e dominar o governo do Estado, por si ou por interposta pessoa. O modelo de governança do parlamentarismo bastardo chegou ao apogeu com Lira presidindo a Câmara enquanto seu compadre Ciro Nogueira funcionava como primeiro-ministro dentro do Planalto. A luta encarniçada de Bolsonaro contra o Supremo lhe permitia então comer pelas duas bandas, na medida em que ambos os contendores necessitavam de seu apoio um contra o outro.

A derrota de Bolsonaro foi um baque para o projeto de perpetuação do parlamentarismo bastardo. O Centrão não pôde apoiar o golpe de Bolsonaro, menos por amor à democracia do que pelo fato de que a eventual ditadura reduziria o agrupamento à condição de uma nova Arena, partido que se limitava a dizer amém aos generais do regime militar. Alternativa menos gravosa à ditadura Bolsonaro, um governo de Lula tinha previsivelmente tudo, entretanto, para ser menos favorável a Lira do que o governo de seu antecessor.

Em primeiro lugar, Lula tem pessoal qualificado e com experiência do PT e partidos associados para ocupar os cargos administrativos mais rendosos e estratégicos, como Educação e Saúde. Em segundo lugar, porque o núcleo do novo governo seria de esquerda e centro-esquerda, quando o Centrão é de direita. Terceiro, a esquerda brasileira, em geral, é presidencialista convicta, o que prenunciava também a pretensão de recuperar as prerrogativas presidenciais e o consequente fim das veleidades parlamentaristas do Centrão. Sua orientação como chefe de governo bem-sucedido nos mandatos anteriores não poderia ser outra, senão o “espírito de restauração” das antigas fórmulas — entre elas, a do presidencialismo de coalizão, cooptando maiorias parlamentares mediante concessão de verbas e cargos. Em quarto, último e mais dramático lugar para Lira, Lula é aliado histórico de Renan Calheiros.

Na presidência da República, Lula não aceita a intermediação de Lira nas relações do governo com os deputados, que é o elemento pivotal de seu poder, na medida em que assegura sua capacidade de extração de benesses para os parlamentares. Conforme o antigo presidencialismo de coalizão, que recupera as conversas com as lideranças partidárias formais, Lula tenta driblá-lo por meio de seu ministro das Relações Institucionais para restabelecer uma relação direta de clientela. É ao que se refere em sua mensagem ao Congresso, quando sublinha a necessidade e os benefícios da colaboração entre governo e congresso para a agenda do país — retórica que na verdade é aquela do presidencialismo de coalizão. Apresenta de forma bonachona seu governo em uma verdadeira arca de Noé, onde cabem todos os bichos, sem a intermediação de Lira. Deixa a porta aberta para todos os que quiserem entrar, com promessas de benefícios — exceto, naturalmente, a família Bolsonaro e seus acólitos.

Daí a fúria do presidente da Câmara. Vendo-se reiteradamente desautorizado pelo governo em suas pretensões de continuar a intermediar as relações clientelistas entre os poderes. Lira não só ruge furibundo e ameaça o governo como quer obrigar Lula a escolher o futuro presidente da câmara de sua preferência, Elmar Nascimento. Na falta de suporte constitucional para suas pretensões, Lira cria teses bizarras para defender seu suposto direito de sequestrar o orçamento, como aquela segundo a qual a execução orçamentária cabe aos congressistas e não aos servidores dos ministérios. Tese que, ao liquefazer a separação entre política e administração, de um lado, e governo e Congresso, de outro, é digna da doutrina bolsonarista das Forças Armadas como poder moderador da República.

Sabendo que o tempo corre a seu favor, Lula cozinha o adversário em banho-maria com uma paciência chinesa. Não reage verbalmente à truculência de Lira, mas também não lhe cede em nada.

Não se desfaz de seu ministro das Relações Institucionais, cuja cabeça foi pedida por Lira; não se compromete em apoiar o candidato deste último, Elmar, às expensas das outras candidaturas à presidência da Câmara (ao contrário, prestigia Marcos Pereira, alternativa dentro do próprio Centrão); põe panos quentes às imprecações de Lira por meio de Rui Costa, ministro na Casa Civil, para quem a “relação entre governo e Congresso está melhor do que nunca”. Enfim, faz questão de amistosamente sinalizar aos congressistas que não reconhece Lira como intermediário e que para todos os efeitos é melhor para eles procurarem, diretamente, o balcão do governo.

Ao mesmo tempo, Lula também põe reage ao “parlamentarismo bastardo” por meio do “judiciarismo de coalizão” com o Supremo Tribunal, que pode em última análise barrar todas as medidas de retaliação do Centrão. Não custa lembrar que o tribunal também é digno dos arreganhos de Lira e seus aliados, sempre secos para assegurar a impunidade parlamentar. Por isso vêm patrocinando reformas que acabem com o foro privilegiado, por meio do qual os congressistas são julgados exclusivamente naquela corte; que suprimam a vitaliciedade dos ministros, substituindo-a por mandatos fixos; que proíbam decisões monocráticas dos ministros daquela corte contra atos do Congresso etc.

Como se percebe, a correlação de forças entre os poderes que dominou o governo Bolsonaro inverteu-se. É o parlamentarismo bastardo de Lira que agora está em xeque.


*Cientista político, editor da revista Insight Inteligência e professor do IESP-UERJ

Encontrou algum problema no site? Entre em contato.

Se você já é assinante faça o login aqui.

Fake news são um problema

O Meio é a solução.

R$15

Mensal

R$150

Anual(economize dois meses)

Mas espere, tem mais!

Edições exclusivas para assinantes

Todo sábado você recebe uma newsletter com artigos apurados cuidadosamente durante a semana. Política, tecnologia, cultura, comportamento, entre outros temas importantes do momento.


R$15

Mensal

R$150

Anual
(economize 2 meses)
Edição de Sábado: A primeira vítima
Edição de Sábado: Depois da tempestade
Edição de Sábado: Nossa Senhora de Copacabana
Edição de Sábado: O jogo duplo de Pacheco
Edição de Sábado: A política da vingança

Meio Político

Toda quarta, um artigo que tenta explicar o inexplicável: a política brasileira e mundial.


R$15

Mensal

R$150

Anual
(economize 2 meses)

O liberalismo ausente

15/05/24 • 11:09

Nas primeiras semanas de 2009, o cientista político inglês Timothy Garton Ash publicou no New York Times um artigo sobre o discurso de posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. “Faltava apenas”, ele escreveu, “o nome adequado para a filosofia política que ele descrevia: liberalismo.” A palavra liberalismo, sob pesado ataque do governo Ronald Reagan duas décadas antes, passou a representar para boa parte dos americanos uma ideia de governo inchado e incapaz de operar. Na Europa continental e América Latina, segue Ash, a palavra tomou o caminho contrário, representando a ideia de um mercado desregulado em que o poder do dinheiro se impõe a um Estado fraco. Não basta, sequer, chamar a coisa só de liberal. É preciso chamá-la neoliberal. Desde final dos anos 1970, já são quarenta anos de um trabalho de redefinição forçada do que é liberalismo, uma filosofia política de três séculos e meio pela qual transitaram algumas dezenas de filósofos e economistas de primeiro time. O sentido do termo se perdeu de tal forma no debate público, que mesmo muitos dos que se dizem liberais não parecem entender que conjunto de ideias representam.

Sala secreta do #MesaDoMeio

Participe via chat dos nossos debates ao vivo.


R$15

Mensal

R$150

Anual
(economize 2 meses)

Outras vantagens!

  • Entrega prioritária – sua newsletter chega nos primeiros minutos da manhã.
  • Descontos nos cursos e na Loja do Meio

R$15

Mensal

R$150

Anual
(economize 2 meses)