A cor dessa cidade

Uma conversa com o urbanista Washington Fajardo sobre como os cidadãos podem se apropriar do chão do Brasil, enxergar as cidades politicamente e retomar os centros urbanos

Há dois momentos cruciais em que os moradores das grandes cidades olham para elas realmente com olhos de enxergar: no Carnaval e nas eleições municipais. No primeiro, aquela ocupação festiva de espaços normalmente hostis aos cidadãos projeta a sensação de que é possível ser feliz ali, apesar de tudo. No segundo, a frustração com o que gestores públicos são capazes de entregar para melhorar a experiência de quem vive nesses conglomerados urbanos faz sonhar com uma existência bucólica mais tranquila, que sequer existe mais. Para pular do desencanto à retomada das cidades, é preciso mudar o jeito de entendê-las. Elas são processos, não projetos. É assim que o arquiteto e urbanista Washington Fajardo as compreende. “Essa ideia de que a cidade é um projeto com início, meio e fim é a base do pensamento urbano modernista. A noção de que a cidade fica pronta. A cidade é um processo constante de transformação, de reciclagem, de renovação.”

O urbanista falou com o Meio em dezembro de 2023, antecipando tanto a euforia dos foliões nos centros históricos das cidades, que acontece anualmente no Carnaval, quanto o ano de eleições para prefeito em todo o país. Ex-secretário de planejamento urbano do Rio, responsável pelo programa Reviver Centro, Fajardo é um entusiasta do potencial cultural e urbanístico dos centros das cidades brasileiras. E da possibilidade de vislumbrar na reforma urbana mais riqueza que na construção de novos prédios, bairros, espaços. Só que essa reciclagem passa, necessariamente, por ter dados mais precisos e instrumentos de responsabilização dos gestores públicos no quesito planejamento urbano. Ele propõe a criação de uma lei nos moldes daquela que cobra fiscalmente esses gestores. O ex-presidente do Instituto Pereira Passos e do Instituto do Rio Patrimônio da Humanidade defende ainda que se priorizem famílias de renda média na reocupação habitacional dos centros. A chave para isso está nas crianças. “As cidades brasileiras são muito brutas com o corpo infantil. Apresentar as áreas centrais como afetuosas com esse corpo infantil, para que as famílias que podem porventura ter interesse em morar mais próximas do trabalho se sintam atraídas, é estratégico.” Confira os principais trechos da entrevista.

Por que o brasileiro tem tanta dificuldade de se apropriar da cidade politicamente, de discutir a cidade como um ambiente tanto para viver quanto para ser um cidadão político?
É algo sobre o qual reflito muito. Na gênese do Brasil, há um princípio de não compromisso com o chão do país. Historicamente, nas sociedades, esse é um compromisso das elites, de estabelecer um pacto com aquele território, com o desenvolvimento daquele chão e, por consequência, daquela cidade, daquela nação. É isso que vai acabar definindo como a cidade se organiza. Somos um dos países mais urbanizados do mundo, com cerca de 90% de urbanização. Do ponto de vista cultural, somos uma sociedade interessada no fenômeno das cidades. Nossa capacidade de fazer festas no espaço público é muito bem representada no Carnaval. Mostra uma potência de interesse na vida coletiva. E há ainda a antropofagia brasileira: a gente tem curiosidade pelo outro, quer consumir o outro. Esses são os princípios da origem de qualquer cidade. Entretanto, quando se fala sobre planejamento urbano, falhamos muito. Temos um arcabouço institucional invejado no mundo. Criamos o Estatuto das Cidades, a Constituição fala do direito à moradia seis vezes. Mas não existe uma responsabilização pela não-organização do território. Os prefeitos trabalham preocupados somente com responsabilidade fiscal. Eu defendo a criação da lei de responsabilidade urbana.

Como ela funcionaria?
Um prefeito tem esse temor da responsabilidade fiscal, fica atento com folha de pagamento, quer ter as suas contas aprovadas. Precisamos de algo similar para a gestão urbana. Primeiro, é preciso aprender a fazer planos diretores um pouco mais baseados em informações, evidências, com uma capacidade de estabelecer metas. Um concorrente ao cargo de prefeito deveria ter condição de dizer se vai produzir cinco mil unidades habitacionais no centro de São Paulo em quatro anos, por exemplo. Se houvesse uma lei de responsabilidade urbana, esse gestor público ficaria muito atento a monitorar isso e eu não tenho dúvida de que isso criaria uma burocracia institucional competente, dedicada ao planejamento urbano como temos, por exemplo, na área de finanças e econômica dos municípios.

O fato é que não existe hoje um planejamento urbano, que ainda é muito entendido como alguém que vai dar uma licença para prédios serem construídos. E as cidades vão simplesmente acontecendo.

E crescendo.
O Censo 2022 começou a revelar como a população é muito urbanizada, mas está concentrada em 25, 26 grandes metrópoles ou regiões metropolitanas. Vivemos em conurbações urbanas, que não são sujeitas a nenhuma instância de governança. Não conseguimos sequer organizar o transporte público nessa escala metropolitana. Em 2024, vai se falar muito disso. A organização urbana é um assunto que cobra de cada cidadão, não importa sua renda. Há uma taxa em cima da experiência de vida de cada cidadão, rico ou pobre, pela ineficiência do uso do solo. É claro que ela é mais prejudicial aos pobres, mas também tem um custo alto para os mais ricos. Mas nossa elite, historicamente, nunca clamou por melhor organização das cidades.

A população do interior e das cidades centro do agronegócio se apropria melhor do chão do Brasil?
Eles estão mais prósperos. A renda per capita acaba permitindo uma experiência urbana um pouco mais atenuada. Mas quando se fala sobre acesso a moradia qualquer pessoa que viaja de carro pelo país já reparou que a paisagem brasileira é favelizada, seja em cidades do Sul ou do Centro-Oeste. Escrevi um artigo, “Pequeno Tratado da Feiura Urbana”, sobre como as cidades pequenas estão perdendo qualidade. Fizemos uma transição intensa do campo para a cidade, e o campo conseguiu uma altíssima capacidade de produção. Só que na economia agrícola há baixa empregabilidade, são grandes propriedades com uma intensa mecanização. Criamos tecnologia, a Embrapa é a Nasa brasileira. Mas isso não teve impacto numa urbanização mais justa. O Brasil fez cidades vinculadas a essas grandes atividades extrativistas: cidades para a mineração, para a indústria, hidrelétricas e para o desenvolvimento agrícola, como Sinop e outras. Elas são mais prósperas, mas até nesses casos ainda há desorganização. Uma camada da sociedade não consegue ter acesso a moradia, que é um bem patrimonial de alto custo.

A habitação deve ser o vetor principal de organização de uma cidade?
Claro. É o modo de as famílias se estabelecerem. Esse bem, provavelmente o mais caro que qualquer família adquire, também tem valores simbólicos. Isso ficou muito claro na pandemia. Percebemos como ficar em casa tem significados radicalmente distintos no Brasil. Desde aqueles que podem ou não ficar em casa até a qualidade da habitação. Ela é fundamental para que a educação se desenvolva bem, por exemplo. A qualidade ambiental da moradia tem impacto direto no processo cognitivo na primeira infância, na proteção da capacidade de empregabilidade. É um esteio. Novamente, o Brasil inova em termos regulatórios: a lei federal de assistência técnica para melhoria habitacional , de 2008, é invejada em outros países. Só que até hoje ela tem baixíssima implementação, só foi usada em Salvador, em 30 mil domicílios, e no Rio, em 20 mil. Imaginando uma política de escala, ela poderia ter resultados equivalentes ao que se deseja do Minha Casa, Minha Vida, que é mais sobre criação de empregos. A Lei de Assistência Técnica iria consolidar essas casas informais e reduzir a precariedade habitacional, que é um dos componentes do déficit habitacional.

Como assim um dos componentes?
Apesar de a palavra déficit dar uma ideia de que faltam casas no Brasil, o déficit habitacional tem quatro dimensões: a precariedade habitacional; se mais de 30% da renda familiar são comprometidos com aluguel; o nível de coabitação por domicílio; e a ausência da moradia. É um problema simplificar o conceito de déficit habitacional, porque isso sempre leva os políticos a só fazerem mais casas. E a indústria da construção civil insiste muito nesse aspecto, claro. Mas dessas quatro dimensões as que têm piorado mais são o comprometimento de mais de 30% da renda familiar com aluguel, a precariedade e a coabitação. Ou seja, já existe uma moradia e ela precisa ser melhorada. A lei brasileira é avançadíssima, prevê essa ideia radical de colocar dinheiro público numa casa privada para melhorá-la. Um programa de melhoria habitacional que tivesse escala nacional melhoraria, por exemplo, a saúde pública. As favelas têm, além das dificuldades de segregação, problemas de saúde, especialmente respiratórios. A Rocinha, no Rio, é o epicentro de tuberculose na América Latina há mais de dez anos. Isso tem a ver diretamente com falta de ventilação e sol nas casas. Somente a melhoria habitacional pode equacionar isso, porque a ideia de que se consiga tirar famílias desses lugares não funciona. A melhoria habitacional também ajudaria no desenvolvimento educacional, na atividade econômica e traria como resultado a melhoria da paisagem urbana.

As cidades ficariam mais “bonitas”? Como definir isso?
Quero deixar claro que não há uma linearidade entre informal e feio. Precisamos entender a feiura como espaços de exclusão, de segregação. E, no fim das contas, isso passa por perda de potencial de vida.

Um outro efeito da pandemia foi o esvaziamento de regiões que eram muito pulsantes conforme relações de trabalho mudaram. Como reocupar esses espaços?
Retomando a ideia da necessidade de se apropriar do solo. No Brasil, as pessoas têm uma noção de que “esse solo não é meu de verdade, estou aqui para ganhar meu dinheiro, depois vou embora”. É parte do nosso modelo colonial, que permeia algumas ideias de modernidade e que o Brasil assumiu como nenhuma outra sociedade. O pensamento urbanístico modernista é essa ideia de fazer uma cidade completamente nova, muito representada em Brasília, mas também na Barra da Tijuca e no Centro Administrativo de Belo Horizonte. Havia 12 mil funcionários públicos na área central de Belo Horizonte e decidiram realocá-los. Daí, chamam Oscar Niemeyer para projetar, porque tem uma estética nisso. Essa ideia expansionista, ainda tão latente no Brasil, define muitas lógicas do pensamento urbanístico. E uma dessas lógicas é que a solução para os problemas de habitação é jogar um caminhão de dinheiro para construir bairros novos, só de casinhas, nas periferias das cidades brasileiras. É com base nesse modelo modernista que ainda se fazem planos diretores. E não se coloca em perspectiva a manutenção da vitalidade das áreas centrais.

E elas estão cada vez mais abandonadas.
Esse é um modelo sobre o qual se reflete pouco, porque entra em contato com alguns ufanismos. Nas eleições municipais, certamente alguém vai falar que vai resolver algo muito complexo com a velha ideia de fazer 50 anos em cinco. Sendo que o que se tem na gestão política, na prática, são dois intervalos de um ano e meio. Isso faz com que tudo seja para ontem, e aí não se consegue planejar direito. Existem dois modelos de urbanismo em competição nas cidades brasileiras, no que eu chamo de urbanismo concorrente. Tem esse urbanismo que quer levar tudo para fora, que precisa fazer a cidade crescer para gerar prosperidade. É uma ideia de que, fazendo prédios novos, criam-se empregos. Essa é uma lógica pública e privada, que independe da matriz ideológica — políticos de esquerda e direita pensam absolutamente igual. E tem um urbanismo esquecido no tempo, que contém o aspecto cultural. Onde se celebra o Carnaval, onde estão os bares e butiques tradicionais, onde está o patrimônio cultural? Nas áreas centrais das cidades brasileiras. Elas são muito singulares, porque nossa urbanização portuguesa foi econômica em recursos, mas muito sensível aos aspectos geográficos locais. Com isso, cada cidade brasileira tem características únicas. Salvador, Rio, Fortaleza, Belém, Porto Alegre, não existe cidade igual. E há uma concentração de potência cultural nas áreas centrais, mas não tem mais ninguém morando nessas áreas.

Por que?
Hoje temos nove capitais lidando com isso de uma maneira mais intensa. Mas reformar não produz lucro. Não mobiliza ninguém. No Rio, fiz o Reviver Centro a partir dessa constatação. Era preciso criar um mecanismo, uma base regulatória que transformasse a reforma em algo lucrativo. Veja que a reforma é 60% do mercado da construção civil na Europa. As cidades estão sempre se revisitando. Dados recentes dos Estados Unidos mostram que pela primeira vez os contratos de projetos de arquitetura de reforma, renovação e reuso de edifícios superaram os de novos prédios. Nós temos de saber reciclar a cidade. Agora, com a mudança demográfica que começamos a experimentar, parece que há interesse em recuperar áreas centrais.

Você diz que as cidades são processos e não projetos. A dificuldade de políticos encamparem um urbanismo de reforma passa por essa demora de resultado?
O pensamento urbano modernista é resultado da industrialização, que foi definindo o modo de vida. Essa ideia de gastar um tempo indo para o trabalho e outro tempo em casa ditou o urbanismo moderno, muito representado por Le Corbusier. E ficou essa ideia de que a cidade é um projeto com início, meio e fim. A cidade nunca fica pronta, ela é um processo constante de transformação, reciclagem, renovação. Essa noção de cidade completa só é possível dentro dessa lógica do pensamento modernista em que todo o mundo embarcou. Só que a Europa desembarca dela. O maio de 1968, que se pode categorizar como um choque de gerações, é também um fenômeno urbanístico. Nesse momento, vai pipocando um desconforto com esse desenho modernista com que as cidades europeias estavam sendo reconstruídas depois da Segunda Guerra. Na Holanda, houve manifestações contra a demolição de prédios para fazer estacionamentos. A Índia contratou Le Corbusier para fazer a sua capital, mas acabaram deixando isso de lado. A gente, não. No Brasil, a gente firmou compromisso com o urbanismo modernista, porque esse ideário era muito libertador para uma sociedade que tinha vergonha da relação com o campo, do seu passado escravista. Poder ser, finalmente, industrial e moderno era o crème de la crème. Mas veja a contradição: a maior favela do Brasil hoje fica no Distrito Federal, a Sol Nascente, superando a Rocinha.

A noção de completude, de que uma cidade vai ficar pronta, acaba criando uma ilusão muito conveniente para o universo político. É uma lógica de entregas em série, industriais.

Qual a consequência disso?
Isso tem impacto direto na capacidade de estabelecer processos. Apesar de a nossa Constituição e do Estatuto das Cidades falarem em processo participativo e continuado, não nos dedicamos a monitorar fenômenos urbanos. Um grande desafio no Brasil é que não se consegue ter acesso a quem é dono do quê, especialmente nas áreas centrais. Não se consegue produzir um mapa fundiário das cidades brasileiras. Há uma ideia de que oferecer publicamente essa informação sobre a propriedade é avançar sobre o sigilo fiscal. É um equívoco. Toda vez que se vai fazer um projeto urbanístico você acaba tendo acesso a essas informações, porque, na verdade, a informação sobre o mapa dos proprietários é, sim, pública. Entretanto, ela é controlada pelos cartórios. Para descobrir quem é o dono você vai no cartório, paga a taxa e tem o registro geral do imóvel. Isso cria uma lentidão nos processos de transformação e uma ignorância sobre como a cidade está organizada. Se conseguíssemos ver o mapa fundiário dos centros urbanos das cidades brasileiras, veríamos instituições centenárias, como a Igreja Católica, famílias do período colonial. Há muitas propriedades sem dono reconhecido. Estamos falando de dificuldade de mapear inclusive o que está vazio e ocioso. Nesse sentido, o processo é gerir a cidade. Mas ele implica uma governança dedicada, um tempo um pouquinho mais largo do que quatro anos. Não está todo mundo interessado nisso.

Só quando existe oportunidade de exploração imobiliária, na revisão de planos diretores.
A revisão de plano diretor é uma guerra campal, principalmente em São Paulo, porque é um momento onde essas ignorâncias, invisibilidades ou até omissões finalmente afloram. Mas o tempo é exíguo. No final das contas, é uma grande frustração para quem está imaginando uma cidade mais justa. É uma frustração para o setor privado, que imagina poder ser mais próspero. É uma frustração para o Legislativo e o Executivo, que queriam poder fazer mais inovações. Os planos diretores viraram um pacto de frustração. E isso tem a ver com a lógica de fazer o plano diretor para resolver tudo, a ideia de um plano diretor como projeto. Precisamos é de processos mais continuados. A regra do jogo da produção da cidade é completamente opaca para a sociedade e até para o planejador urbano brasileiro. Ele acaba tomando muitas decisões críticas do ponto de vista de planejamento urbano baseadas mais em ideologia do que em evidências.

Como você equacionou isso no Rio?
Eu pensei fora da caixa, usamos o consumo de energia elétrica para ver os imóveis e as áreas que estavam esvaziando. Do ponto de vista urbanístico, um prédio pode ser uma fake news: uma fachada sem gente dentro.

Os centros das grandes cidades, por conta desse abandono, acabaram se tornando lugar de pessoas socialmente “indesejáveis”, numa lógica perversa de que as pessoas viraram um entrave para a cidade. É possível conciliar a solução do problema social com o urbanístico?
É preciso atuar nas duas frentes. Um desafio das áreas centrais é justamente o da demanda e da oferta. Isso tem a ver com essa falta das informações necessárias para formular políticas. Se eu não consigo ver quem é dono do que está vazio, como vou tomar uma decisão? Então, preciso fazer uma intervenção nessa propriedade privada ociosa. A cidade de São Paulo, na administração Haddad, foi a que mais se dedicou a implementar o IPTU progressivo, uma ideia super avançada do nosso marco regulatório. Mas você não consegue provar a vacância em termos jurídicos, em termos legais. É simplesmente por uma observação de rua. É preciso ter dados mais finos, quase incontestáveis, sobre esvaziamento — inclusive de imóveis do Estado. Os dados do Rio eu sei de cabeça: a Secretaria de Patrimônio da União tem 800 imóveis, o INSS tem 2,5 mil, que vão desde salinhas comerciais até grandes glebas urbanas. Esse estoque que pode virar habitação exige um tipo de política para proprietários privados, outro para o Estado e outro para proprietários institucionais, como a Igreja. Você precisa ter soluções muito customizadas para aumentar essa oferta para as famílias que precisem e queiram morar no centro.

Essa demanda existe?
Existem demandas distintas. Tem muita gente que trabalha nos centros. Hoje, a literatura também traz evidências de que a oferta de habitação temporária é fundamental para a população em situação de rua. Claro que ela é muito heterogênea, há pessoas com necessidades de aspecto econômico, outras com algum desequilíbrio psicológico, há a questão das adições químicas. Mas o que todas as experiências do mundo de enfrentamento da situação de população de rua mostram é que a oferta de uma moradia temporária de médio prazo é fundamental para que essa pessoa que tenha condição de fazer a transição de saída da rua consiga estabelecer o seu self, se organizar psiquicamente, reconstruir redes sociais e afetivas. A moradia é esse espaço de constituição, biológico, onde eu tenho pertencimento, me identifico. Agora, enquanto tiver uma grande concentração de pessoas em situação de rua em um lugar único, ninguém vai querer se aproximar desse local. O lado da demanda precisa estar representado nesse espaço público, nas calçadas.

É possível reocupar os centros sem promover uma gentrificação?
Não vou te dizer que não existe esse risco, mas estamos falando de tamanho grau de esvaziamento que eu colocaria isso mais lá embaixo numa lista de preocupações. O tipo de política que precisamos para os nossos centros é universalista, entendendo que algumas pessoas têm mais condições de aceitar esse desafio de morar nas áreas centrais. Infelizmente, pessoas com filhos ainda não consideram as áreas centrais uma opção. Isso é um problema, porque uma política imaginando só pessoas sem filhos acaba comprando algo importado, algumas teses que funcionam no mundo desenvolvido, como esses microapartamentos, coisas que são o caminho mais acelerado da gentrificação. Temos de olhar para essa base de rendas médias. O centro deveria ter os professores, os policiais, os bombeiros, os motoristas de ônibus, os enfermeiros — na pandemia vimos como todos se beneficiariam enormemente se eles estivessem nas áreas centrais. O enobrecimento de uma área faz com que aumente o interesse por ela e os preços acabam aumentando, claro. Agora, eu digo com muita tranquilidade que é muito melhor lidar com os problemas da vitalidade urbana do que com os problemas da morte urbana. Mas é por isso que vale priorizar desenhos mais universalistas, fazer com que essas pessoas de renda média ocupem o centro. Elas estabilizam a demanda dos serviços locais e ajudam a estimular a chegada de pessoas de renda mais vulnerável, da pessoa que vai fazer a unha, cortar o cabelo, produzir o pãozinho. E uma estratégia central para isso é olhar para as crianças.

Como assim?
Trazer a dimensão do corpo infantil para o espaço público. As cidades brasileiras são muito brutas com o corpo infantil. Há uma inexistência de espaços infantis nas cidades brasileiras. Onde é que as crianças brincam? Nas áreas centrais, isso seria estratégico. Apresentá-las como afetuosas com esse corpo infantil, para que as famílias que porventura tenham interesse em morar mais próximas do trabalho se sintam atraídas. Entendam que seus filhos estarão protegidos no centro. Morar no centro é oferecer qualidade de vida para o seu filho, porque, do ponto de vista de desenvolvimento educacional, o centro vai ter a História materializada na frente desse jovem. É ali que estão as melhores bibliotecas, os melhores teatros. O centro da cidade não é só passado. Ele contém passado, mas o centro das cidades brasileiras é sobre o futuro.


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