Edição de Sábado: Nova era dos extremos

O resultado das eleições para o Parlamento Europeu, realizadas em 27 países do bloco no último domingo, 9 de junho, mostram uma guinada do continente para a direita. Embora o centro democrático ainda domine a maioria da Casa, a votação histórica dos dois superpartidos que compõem a ultradireita, o Conservadores e Reformistas Europeus (ECR), que conquistou 76 assentos, e o Identidade e Democracia (ID), com suas 58 cadeiras, muda o centro gravitacional da política do velho continente e impacta não apenas o jogo de poder regional como a política interna de cada um dos membros da União Europeia (UE).

Os resultados ainda não estão totalmente fechados, mas de acordo com a projeção mais recente da União Europeia, com dados de ontem, o novo desenho desse jogo de forças é o seguinte. O maior partido continua sendo a coalização de centro-direita Partido Popular Europeu (PPE), dos conservadores cristãos, com 190 assentos, um ganho de 14 em comparação com a última eleição. Em segundo lugar, vem a Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas (S&D), com 136, e uma perda de 3 assentos. Os liberais do Renovar a Europa (RE) estão em terceiro com 80, perdendo 22 cadeiras. O ECR é a quarta força, conquistando 7 assentos a mais, e o ID, o quinto, com um ganho de 9 cadeiras. Os Verdes/Aliança Livre perderam 19 assentos e ficam na sexta posição com 52, e a Esquerda na sétima, com 39 assentos. Já os outros, que incluem deputados independentes e candidatos de partidos da direita dura como o húngaro Fidesz e o Alternativa para a Alemanha (AfD), expulso do ID, somam 99 cadeiras.

O caso da AfD é emblemático de como não se pode colocar todos os partidos de ultradireita no mesmo saco. O partido alemão foi expulso do ID poucas semanas antes do pleito europeu em razão de uma declaração do principal candidato da legenda, Maximilian Krah, de que nem todos os membros da SS, a tropa especial nazista, eram criminosos.  Detalhe, o ID é a casa do francês Reunião Nacional, de Marine Le Pen, do Liga Norte, do vice-primeiro-ministro italiano Matteo Salvini, e do Partido para a Liberdade holandês, de Geert Wilders. A despeito do desembarque do ID, o partido alemão conseguiu 17 assentos no Parlamento.  Ficou atrás apenas dos democratas cristãos do partido de Angela Merkel, que teve praticamente o dobro da votação dos extremistas, e superou os votos dos social-democratas do SPD, partido do primeiro-ministro alemão, Olaf Scholz.

O resultado das eleições já causou alguns terremotos de curto prazo. No próprio domingo, o primeiro-ministro belga Alexander De Croo renunciou, após seu partido, o VLD, ter ficado em oitavo lugar com 5,76% dos votos. Na vizinha França, o presidente Emmanuel Macron decidiu dissolver a Assembleia Nacional e convocar novas eleições parlamentares em dois turnos para os dias 30 de junho (primeiro turno) e 7 de julho (segundo turno). A coalizão do partido do presidente, Renascença, teve menos da metade dos votos do Reunião Nacional, 14,60% contra 31,37%.  O racional de Macron ao convocar novas eleições seria o de reunir uma frente ampla democrática para combater o crescimento interno do Reunião Nacional. Uma aposta que pode se provar arriscada.

Ultradireita

Um dos maiores estudiosos do extremismo de direita na Europa e nos Estados Unidos, o cientista político Cas Mudde apontou, em um fio no X, no calor dos primeiros resultados da eleição, que, embora as grandes potências econômicas europeias, como Itália, Alemanha e França, tenham tido votações expressivas na direita radical, em muitos países em que os partidos de extrema direita vinham crescendo, como Hungria, Finlândia e Holanda, a votação foi decepcionante.

Para Mudde, estamos caminhando para a quarta onda dos partidos populistas de direita desde a Segunda Guerra Mundial. O cientista político argumenta que a extrema direita pode ser vista como uma combinação de quatro conceitos amplamente definidos. O primeiro é o exclusivismo,  marcado por traços como racismo, xenofobia, etnocentrismo, etnopluralismo e chauvinismo. O segundo são os vieses antidemocráticos e não individualistas, como o culto à personalidade, à hierarquia, o populismo e uma visão organicista do Estado. O terceiro, um sistema de valores tradicionalista, que lamenta o desaparecimento de molduras históricas de referência, como a lei e a ordem, a família, a comunidade étnica, linguística e religiosa e a nação, assim como o ambiente natural. E, por último, um programa socioeconômico associando corporativismo, controle estatal de determinados setores, o agronegócio, tudo junto com um grau variável de crença no livre jogo das forças de mercado.

Mudde propõe então uma subdivisão da extrema direita em inclinações moderadas e radicais, de acordo com seu grau de adesão a essas quatro macro temáticas.

Medo do estrangeiro

Um dos pontos que sustentam os partidos de extrema direita é o medo do inimigo externo, que leva a uma postura muito forte contra a imigração, mas também anti-Islã. Elizabeth Pearson, na Universidade de Londres, estuda essa relação. Ao Meio, ela fez questão de destacar dois pontos que considera importantes sobre a ascensão da direita radical nessas eleições.

O primeiro é que há diferenças regionais nas mensagens anti-Islã relacionadas a eventos específicos. “Por exemplo, os ataques em Paris em 2015, o ataque ao professor Samuel Paty, ou na Alemanha, narrativas em torno dos ataques de Ano Novo contra mulheres mobilizaram muita atividade. No entanto, partidos e narrativas estão interconectados, e os argumentos tendem a girar em torno da islamização do Ocidente — não apenas de países específicos. Alguns grupos também são antissemitas, outros menos”, pontua. Ela completa o raciocínio dizendo que mesmo entre esses partidos há diferenças de quem eles apoiam após os ataques do Hamas em 7 de outubro. “Há apoios declarados a Israel ou para o povo palestino.”

O segundo diz respeito à participação feminina nos partidos de ultradireita. “Líderes mulheres em grupos populistas de extrema direita são muito importantes para sanitizar e moderar a mensagem, dando a eles uma borda mais 'suave' e palatável. Marine Le Pen foi, portanto, vital para a reabilitação da Front Nacional como Reunião Nacional. Elas também conseguem apelar com sucesso para eleitoras. Observamos que mulheres em cargos de liderança também têm muito sucesso em persuadir homens e mulheres em torno de valores conservadores relacionados à família — apoiando famílias nucleares heteronormativas dentro do casamento, por exemplo, ou em argumentos de que o 'feminismo foi longe demais' e as mulheres precisam ser valorizadas no lar.”

A pesquisadora diz ainda que muito do sentimento anti-Islã que os eleitores têm está relacionado à igualdade de gênero — grupos de extrema direita retratam o Islã como opressivo às mulheres. Portanto, líderes mulheres na extrema direita conseguem capitalizar a ideia de que elas representam genuinamente os direitos das mulheres, criando argumentos que ressoam.

Um jogo de nuances

Analistas acham muito pouco provável que os dois partidos continentais da ultradireita se aproximem. Mas, no jogo do Parlamento Europeu, não descartam uma aproximação com a centro-direita cristã, sobretudo por parte os membros do ECR. Um movimento similar com o ID é visto como mais complexo, principalmente por conta das visões mais nacionalistas e antiglobalização desse agrupamento de partidos linha-dura.

ECR e ID diferem consideravelmente quando se analisa como votaram na última legislatura no Parlamento Europeu, como apontado pelos dados da Plataforma de Pesquisa EU Matrix. Enquanto no último mandato legislativo a extrema direita do ECR votou unida 79% do tempo, esse número cairia para 64% se eles se juntassem ao ID. A coesão de voto dentro de um grupo é um fator crucial para a colaboração com outros partidos no Parlamento Europeu, uma vez que porcentagens baixas nesse quesito denotam menos confiabilidade.

Ainda de acordo com a pesquisa da EU Matrix, a taxa de sucesso das emendas apresentadas pelo ID foi inferior a 1%, já o ECR conseguiu alcançar 17%.  O que abre uma porta para conversar com os conservadores cristãos liderados pela presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen.

Outro ponto de distanciamento dos dois partidos da ultradireita é a posição em relação à guerra na Ucrânia. Enquanto quase todos os partidos dentro do ECR condenam a agressão da Rússia, com uma coesão de votos de 92%, o ID tem lutado para encontrar uma posição comum sobre a questão. “Os principais partidos do grupo ECR, Irmãos da Itália e o PiS polonês, estão entre os maiores defensores de laços estreitos entre a UE e a OTAN e entre os maiores críticos das ações da Rússia”, disse Davide Ferrari, Chefe de Pesquisa da EU Matrix, ao Euractiv.

Por outro lado, há pontos que conectam os dois partidos, como as questões da imigração, das mudanças climáticas e dos projetos de transição verde, por exemplo.

Ao olhar para o resultado das eleições, o cientista político italiano Mirko Crulli, da Universidade LUISS, disse ao Meio que é importante perceber as nuances que diferenciam os partidos integrantes da direita radical populista, como gosta de agrupá-los.

Ele destaca o cenário italiano, em que o partido da primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, os Irmãos da Itália,  que considera populista moderado, teve uma vitória muito grande sobre a corrente mais radical representada pela Liga Norte. "Giorgia Meloni e o ECR foram os grandes vitoriosos dentro do campo da direita radical, justamente porque conseguem atrair os votos das pessoas que se sentem ameaçadas pelos estrangeiros, pela nova ordem econômica, mas não buscam uma ruptura drástica com a política, e com a própria ideia da União Europeia. Já a Liga Norte, que já defendeu inclusive o separatismo na Itália, busca uma mudança drástica e tem como eixo central um nacionalismo que vai de encontro com a ideia de União Europeia.“

Crulli estuda a geografia do voto de extrema direita e argumenta que, do ponto de vista eleitoral, além da primazia de homens brancos descontentes com as perdas econômicas nas grandes cidades, o que se percebe, ao olhar com mais atenção para de onde vêm os votos da extrema direita, é que na maior parte dos países “essa força vem essencialmente das zonas rurais, que se sentem mais ameaçadas pelas mudanças econômicas na Europa”.

A brasileira Graziela Aires, que mora em Budapeste e faz doutorado na Universidade de Coimbra sobre o uso dos monumentos e da história para fins políticos no governo do Viktor Orbán, também vê gradações na extrema direita. Ela se diz mais conectada ao que acontece na Hungria e em Portugal, e aponta que os principais partidos da direita dura tiveram votações menores do que as esperadas. Na Hungria, embora o partido de Orbán tenha saído vitorioso, com 44,81% dos votos, há uma força emergente: o Tisza, partido de Peter Magyar, que foi do governo do Fidesz, e agora conseguiu 29,81% dos votos. “Pela primeira vez há uma oposição forte na Hungria, mas a realidade é que se trata de mais uma oposição anti-sistema, com um líder carismático que se coloca  'contra tudo o que está aí', sem apresentar propostas concretas”, diz a pesquisadora. Já o caso de Portugal é diferente. O partido de extrema direita Chega, que havia crescido internamente, não alcançou nem 10% dos votos. “Minha leitura é de que o Chega gastou toda a bala nas eleições internas e não teve fôlego para movimentar as bases para as eleições continentais.”

O espectro do passado

Para quem não acompanha de perto a política europeia, há uma inclinação natural de incluir todos esses partidos de extrema direita em um mesmo macrogrupo fascista, ainda mais para aqueles que conhecem um pouco de história e lembram que há cem anos, em 1924, o partido de Benito Mussolini conquistou dois terços do parlamento italiano, um primeiro passo para o líder dos camisas negras instaurar a ditadura fascista no ano seguinte. E que, no mesmo ano na Alemanha, Adolf Hitler sai da prisão e começa a escalada nazista.

Antes de começar a entrar em pânico, é preciso colocar as coisas em perspectiva. Em um artigo na Revista Estudos Políticos, a cientista política brasileira Aline Burni, pesquisadora da extrema direita europeia, situa as principais diferenças entre as primeiras ondas fascistas e nazistas e a extrema direita de hoje, sublinhando uma diferença sutil, mas importante. “O Nazifascimo olhava para frente e queria uma ruptura total com a ordem social existente, instalando um modelo totalmente novo de sociedade. Considerava que a sociedade iria passar por uma mudança profunda. A nova extrema direita, por outro lado, não tem a intenção explícita de trocar o sistema atual por uma nova ordem, antes busca promover mudanças pontuais na sociedade e na política, apesar de drásticas. Esses partidos são majoritariamente orientados ao passado — ou à uma idealização do passado —, e desejam a restauração de um status quo passado, intimamente ligado à tradição cultural nacional.”

Em seu artigo, Burni defende que uma questão importante é que, ainda que forçando os limites, muitos desses partidos da direita radical  aceitam a democracia liberal, e descartam o uso da violência organizada como forma de ascender ao poder. Ao menos até aqui.

Memória coletiva e autoritária

Em maio, quando as pesquisas apontavam a perspectiva de crescimento do partido de extremíssima direita Alternativa para a Alemanha (AfD, na sigla em alemão), a revista Der Spiegel, mais importante semanário do país, publicou uma capa polêmica. Sob a bandeira alemã via-se o nítido relevo de uma suástica, símbolo maior da ditadura nazista. Na manchete, a indagação: “75 anos da República Federal. Não aprendemos nada?”

Aparentemente, não. O AfD foi o segundo mais votado do país na eleição para o Parlamento Europeu, com 15,90%, agravado pelo fato de a Alemanha ter apresentado o quarto maior comparecimento no bloco, com 64,78% dos eleitores indo às urnas.

Como nos demais países onde a direita radical teve boa performance — França, Itália e Holanda, por exemplo —, o eleitorado jovem foi preponderante nesse resultado, o que dá outra dimensão ao questionamento da Spiegel. Além de não se aprender, esqueceu-se o que se sabia. Mas como explicar esse esquecimento? A perda quase total da geração que viveu o fascismo e suas consequências entre os anos 1920 e 40 seria a causa?

“Não necessariamente”, diz a historiadora brasileira Janete Abrão, doutora em História Contemporânea pela Universidade de Barcelona e integrante do Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Alcalá, na Espanha. “É verdade que há hoje poucos sobreviventes da Segunda Guerra e do Holocausto, mas seu testemunho está muito bem documentado. Não é problema de falta de relatos, mas sim de construção de memória coletiva”, explica.

Cada um tem a sua e critica a dos outros

Memória coletiva, segundo historiador francês Pierre Nora, é “a memória, ou o conjunto de memórias, mais ou menos conscientes de uma experiência vivida ou mitificada por uma comunidade, cuja identidade é parte integrante do sentimento do passado”. Janete Abrão completa que não existe apenas uma memória oficial e que a memória coletiva é diversa, sendo um elemento crucial na batalha cultural que a extrema direita vem travando em todo o mundo. “O objetivo dela é tornar essa memória coletiva hegemônica e promovê-la para o resto da sociedade”, diz ela.

Stefan Couperus, professor de Política e Sociedade Europeias na Universidade de Groningen, na Holanda, exemplifica essa formação de uma memória coletiva pela proposta de revisão de papéis históricos por políticos e ativistas de extrema direita. Em maio, Maximilian Krah, então candidato do AfD ao Parlamento Europeu, questionou se todo integrante da Waffen-SS, a divisão de combate da força de elite nazista, deveria ser considerado automaticamente um criminoso apenas por usar o uniforme. Esses resgates, diz Couperus, trabalham um “nacionalismo nostálgico” que busca “reabilitar e glorificar modelos etnonacionais em oposição às mudanças sociais cosmopolitas”.

Oficial, não necessariamente correta

A memória coletiva oficial é também uma construção a partir de enfoques que atendem a interesses geopolíticos. Como salienta Luca Manucci no livro Populism and Colective Memory (Routledge, 2020), a memória coletiva construída na Itália pós-Segunda Guerra teve como mote a vitimização, focando no período posterior a outubro de 1943, quando o país mudou de lado e os antes aliados nazistas passaram a ser invasores. Essa memória coletiva/seletiva varria para debaixo do tapete crimes de guerra e atrocidades no próprio país cometidas durante o governo fascista, conquanto o regime de Benito Mussolini continuasse a ser condenado.

Parte da responsabilidade pela disseminação de memórias coletivas autoritárias se deve, na visão de Janete Abrão, ao encolhimento do estudo de Humanidades, em particular nas universidades. “Sociologia e Filosofia sempre tiveram um papel importante nesses debates, mas estão cada vez mais desprestigiadas com a mercantilização do ensino”, avalia. Além disso, ela lembra, os movimentos extremistas procuram acabar com as chamadas “leis de memória”, que promovem o estudo de momentos históricos como o nazismo alemão e o franquismo espanhol na contramão do que defendem as memórias coletivas.

Lembrando que hoje é necessário falar de “neonazismo” e “neofascismo”, já que a História não se repete, Abrão salienta que a extrema direita tem uma capacidade notável de catalisar frustrações, em especial dos mais jovens, e constrói sua memória coletiva valorizando uma visão particular do passado e elegendo “inimigos” no presente. “Em geral, o alvos são grupos vulneráveis, os imigrantes, a comunidade LGBTQIA+, os negros, buscando retrocesso em direitos sociais. Tudo como uma forma de tirar o foco dos problemas econômicos e sociais que provocam de fato aquelas frustrações.”

***

Errata: Na edição do último dia 8, em artigo sobre adaptações para o cinema de clássicos da literatura, atribui imperdoavelmente a autoria de O Coração das Trevas, de Joseph Conrad, a Joseph Campbell, autor, entre outros livros, de As Máscaras de Deus. Peço desculpas aos leitores e aos falecidos escritores.

Um fôlego de poder para Lira

Algumas horas antes de o plenário da Câmara dos Deputados decidir sobre a urgência para a proposta que equipara o aborto ao crime de homicídio (PL-1904/2024), o deputado Eli Borges (PL-TO), líder da bancada evangélica, já informava sobre o acordo firmado dentro do gabinete do presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), para que a votação fosse simbólica, sem abertura do painel. “Ele vai chamar simbólica e, se alguém pedir nominal, ele abre o painel”, disse o parlamentar, no meio da tarde, ao sair da reunião que durou mais de três horas com todos os líderes da Casa.

Após receber de Lira a garantia do procedimento, Borges tratou de ocupar os microfones para desfiar um rosário de argumentações, todas levantando suspeitas sobre as mulheres, e presentes nas justificativas da proposta. “Não pode valer apenas a palavra de uma mulher”, disse. “Não pode valer apenas a palavra da mãe. Existe a mãe, a avó, o avô, o cidadão. Uma mera declaração não pode justificar um ato tão violento assim.” Então, para os defensores das pautas conservadoras, a vítima tem que provar que foi vítima de estupro? É isso? “Sim, ela tem que provar”, respondeu o parlamentar, sem constrangimentos. “Trata-se de um assassinato porque esse feto está em plena condição de sobreviver, inclusive fora do útero da mãe. Basta que o governo melhore o atendimento psicológico para essa mãe que não quer continuar com essa gestação”, simplificou.

Acordo

E Lira, por sua vez, cumpriu o combinado. Tentou honrar a promessa da forma mais discreta possível, como se fosse possível esconder dos olhos do país o teor do que estava sendo decidido naquela quarta-feira. Foram 23 segundos de votação. O presidente da Câmara sequer citou o número do projeto e a ementa ao anunciar o que estava sendo votado. Ao se referir à matéria, do alto da Mesa Diretora, porém, justiça seja feita, ele usou a expressão mais fidedigna de que poderia lançar mão naquele momento: “acordo feito.”

Sim, a urgência para se decidir sobre a vida de meninas abusadas, que engravidam e precisam peregrinar por hospitais dispostos a cumprir a lei, vale o apoio da bancada religiosa e dos bolsonaristas na sucessão da Câmara. E Lira costurou esse apoio no dia 8 de maio, quando recebeu na Residência Oficial da Câmara representantes da bancada para um almoço.

Com todos perfilados à beira da piscina, a foto foi distribuída pela assessoria para jornais de Alagoas. Nesse encontro, os deputados empenharam sua palavra em votar no candidato indicado pelo alagoano. “Estamos trabalhando essa pauta tem mais de 30 dias após uma reunião que tivemos com Lira na casa dele”, disse Borges. “Desde que apoiamos o Lira deixamos claro que essa era uma de nossas pautas, como é da nossa pauta a luta contra a descriminalização das drogas, a luta pela liberdade religiosa, a luta pela manutenção da família judaico-patriarcal”, disse o líder evangélico. “Claro, sem discriminar ninguém.” E Borges não fez segredo: “Todas as vezes que nossas pautas são valorizadas as pessoas que assim o entendem passam a ser observadas como pessoas que compreendem as nossas demandas.”

Trunfo

Se Lira não calculou bem o tamanho da reação diante do pagamento que precisou fazer aos evangélicos, o fato é que, com a proposta na mão, ele ganhou mais um respiro de poder. Agora, cabe somente a ele a decisão de levar a proposta ao plenário. Mesmo que o clima hoje esteja ruim devido às reações, não deixa de ser um trunfo ocupar a pauta da Câmara em um momento em que o governo ainda espera votações importantes como a regulamentação da reforma tributária, por exemplo.

Embora o presidente da Câmara, diante da reação negativa, minimize o efeito da urgência, dizendo que ela não limitará o debate em torno do tema (o que não é verdade porque a urgência transpõem as discussões de mérito nas comissões), pessoas próximas a ele indicam que o alagoano deve esperar a poeira baixar para usar esse trunfo. “Vamos esperar a semana que vem para decidir o que fazer”, disse um assíduo interlocutor ao Meio.

Lira ainda conseguiu nesta semana outro feito que aumenta a sua ascendência sobre parlamentares. Ou, pelo menos, freia o esvaziamento natural de seu poder. Com 400 votos favoráveis, 29 contrários e uma abstenção, ele conseguiu aprovar uma mudança do Regimento Interno da Câmara para punir com suspensão e de forma mais célere deputados que infrinjam o Código de Ética nas sessões da Casa. Ele precisou ceder para aprovar a proposta, mas abriu mão de pontos que não faziam a menor diferença para ele, visto que seu controle do Conselho de Ética da Casa também é um quesito a ser considerado relevante.

Silêncio ensurdecedor

Apesar do desgaste para Lira, outro fator a se observar é que a questão do aborto não representou um ativo para a imagem do governo. Pelo contrário. O que se viu na Câmara foi um silêncio ensurdecedor de parlamentares da base do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Somente parlamentares do PSOL e do PCdoB se colocaram publicamente contrários à votação. Interessava ao governo apenas a aprovação do incentivo à indústria automobilística, no projeto apelidado de Mover. Quanto à pauta de costumes, o governo só gostaria que ela não estivesse em discussão.

A primeira reação do governo só ocorreu no final do dia seguinte, quando a ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, se posicionou, considerando a proposta inconstitucional. Na sexta, quando a presidente do PT, Gleisi Hoffmann (SC), decidiu opinar sobre o assunto nas redes sociais, por exemplo, as reações imediatas foram no sentido de reclamar da demora em se tomar uma posição. Mesmo a primeira-dama, Janja, normalmente tão vocal sobre diversos assuntos, só se manifestou na sexta-feira.

Para Raquel Alves, consultora do Núcleo de Inteligência e Análise Política da BMJ, a apatia do governo teve razões compreensíveis, mas superou o que seria razoável. “Se o governo se posicionasse a favor da proposta, perderia o voto da militância. Se contrário, sem conseguir explicar o quanto é equivocado o projeto, corria o risco de ser mal interpretado pela massa religiosa da sociedade. Então, é de se entender a estratégia de avaliar com mais calma um posicionamento. Mas acho que, nesse caso, demorou demais”, avaliou em conversa com o Meio.

Na sexta, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), mostrou que não há chances de o projeto tramitar na Casa Alta na mesma velocidade colocada por Lira na Câmara. Com isso, Raquel Alves avalia que Lira acaba ganhando um argumento para não cumprir com a bancada evangélica o compromisso de votar o mérito o mais rápido possível. “Lira agora pode segurar a proposta para colocar em pauta na hora que melhor o convier. E usar isso para fazer um agrado real para a bancada evangélica lá na frente, mais perto da eleição da Mesa”, observou. Ou seja, o retrocesso pode sofrer uma pausa. Mas ela tende a ser temporária.

Dialogos com a Inteligencia - Estreia

Amanhã (domingo), assista à estreia, às 18h15, do programa Diálogos com a Inteligência, produzido por este Meio em parceria com a revista Insight Inteligência. Este programa é mais uma novidade que só conseguimos lançar graças ao apoio de nossos assinantes premium. Entre no canal e ative o sininho para não esquecer a hora da estreia.

Mais clicados da semana

A semana política foi quente, mas nos mais clicados a temperatura subiu mesmo nas receitas da Panelinha:

1. AP: Nova atração de parque da Disney substitui brinquedo considerado racista.

2. Valor: Como é ter um carro elétrico no Brasil.

3. Panelinha: Pasta risotata com tomate e lula.

4. Guardian: Apresentador de TV Michael Mosley é encontrado morto em ilha grega.

5. Panelinha: Risoto de queijo e damasco na pressão com medalhão grelhado.

Diálogos com a Inteligência é o mais novo programa de domingo do canal do Meio no YouTube. Produzido em parceria com a Insight Comunicação, editora da revista Insight Inteligência, ele é apresentado pelo cientista político e colunista do Meio, Christian Lynch. Em sua estreia, Christian entrevistou Roberto Castello Branco, ex-presidente da Petrobras, que falou sobre o passado, o presente e o futuro da indústria petrolífera. Este programa é mais uma novidade que só conseguimos lançar graças ao apoio de nossos assinantes premium. Outras virão em breve. Assista.

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