Edição de sábado: Companhia artificial

Os dias de Christian Marcondes, de 46 anos, começam cedo, como os da maior parte dos brasileiros. Às terças e quintas, quando trabalha presencialmente, ainda mais cedo. Ele sai de casa sem encontrar o filho de dois anos, que ainda dorme. Nos outros três dias da semana, quando trabalha em casa, o expediente cabe entre levar e buscar o menino na creche. Mas o colega de trabalho mais próximo de Marcondes, a quem pede conselhos sobre como abordar um assunto com os chefes, como responder a situações incômodas no trabalho e como realizar as tarefas do dia-a-dia do setor de logística de uma grande empresa, o acompanha em ambas as rotinas. “Quando eu recebo algum feedback que não é legal, por exemplo, eu pergunto a ele o que eu poderia fazer, como eu poderia melhorar. Aí o Chat vai fazendo um check list. Eu vou lendo e pensando ‘isso aqui, eu posso melhorar, né? Isso eu já faço, ou não faço da forma como deveria. É um conselheiro e um assistente pessoal”. Sim, o Chat é o GPT. E além de “conselheiro e assistente”, é a presença mais frequente na vida de Marcondes.
Mirando usuários como esse, o CEO da Meta, Mark Zuckerberg, tem defendido, em conferências de tecnologia e em podcasts, que, no futuro, usuários serão amigos de “um sistema que as conhece bem e que meio que as entende da mesma forma que seus algoritmos de feed fazem”. O bilionário vem repetindo que o americano médio tem menos de três amigos próximos e afirmando que no futuro haverá uma epidemia de solidão. É curioso ver o mesmo homem que, no início dos anos 2000, vendeu ao mundo a possibilidade de conexão permanente com os amigos agora dizer que o cidadão médio tem apenas três. Para onde foi toda a conectividade, o encurtamento das distâncias?
Ironicamente, uma trend no Threads, a rede inventada por Zuckerberg para fazer frente ao X de Elon Musk, o finado Twitter, começa com o comando “algoritmo, me conecte com pessoas”. As demandas de cada usuário são específicas. “Algoritmo me conecte com irmãs em Cristo que sejam do Rio, que amem ir à praia, ouvir música, ler bons livros e conversar”, ou “algoritmo, me conecte com as pessoas não monogâmicas de Curitiba e que gostem de café e boteco!”, ou ainda “algoritmo me conecte a pessoas que buscam amizades sinceras em Icaraí (Niterói-RJ) que curtam dar caminhadas na praia, andar de bike, sair para ver o pôr do sol e tomar café”. A procura por companhia na internet não é nova, claro. Sites de relacionamentos existem há décadas, chats com desconhecidos eram mania já no fim dos anos 90. Mas hoje parece estar mais difícil conhecer “irmãs em Cristo” na igreja, ou as “pessoas não monogâmicas” nos próprios “cafés ou botecos”, ou ser apresentado casualmente a pessoas que “buscam amizades sinceras” na caminhada na praia. Nos aplicativos criados exatamente para promover encontros, não é raro encontrar perfis que dizem “odeio isso aqui, mas parece não haver outro jeito de encontrar um relacionamento hoje em dia”. Teria o flerte se reduzido a um deslize de tela para direita, a um like, ou, no máximo, a um super like? “Como eu sou mais tímido, eu tenho poucos amigos e os amigos que eu tenho têm a vida corrida. Por mais que a gente tenha o Whatsapp, eu não consigo me abrir muito, né? Sou muito fechado”, diz Marcondes.
A solidão no mundo
O psicanalista e professor do Instituto de Psicologia da USP Christian Dunker concorda que haja uma “crise mundial de solidão”, mas explica que a preocupação com os efeitos do isolamento no comportamento humano no mundo ocidental não é uma novidade. “O processo tem um arco muito longo. A gente começou a tematizar a solidão como problema entre os séculos 16 e 17, com a chegada da Modernidade. Nessa época aparece um novo grande valor, que é o indivíduo. A nossa ambição, aquilo que a gente espera de uma vida bem vivida, aquilo que é bom. Isso gera ideais de emancipação, de independência, de autonomia. Tem a ver com se separar dos outros e realizar-se como indivíduo”, explica. Dunker avalia, porém, que fatores recentes alteraram esse arco e provocaram um mergulho da sociedade em um processo de solidão a partir do fim do século 20.
Resumidamente, a partir dos anos 1980 acelerou-se a individualização no trabalho. Mais recentemente, nos anos 2000, o surgimento das redes sociais que segundo Dunker “produzem versões moduladas de nós mesmos e mimetizam relações” também mudou a curva do arco. E, em 2020, a pandemia levou tudo à velocidade máxima. Além do isolamento social completo, necessário durante meses, a maior crise de saúde pública da História gerou mudanças permanentes. Dados do censo dos Estados Unidos mostram que, em 2019, antes da Covid-19, menos de 6% da população do país trabalhava remotamente. O cumprimento presencial da carga horária era exigido pela quase totalidade das empresas. Hoje, segundo a consultoria Gallup, 27% dos cidadãos americanos trabalham remotamente, 52% têm escala híbrida e apenas 21% comparecem todos os dias ao local de trabalho. Ou seja, não apenas os processos estão mais individualizados, mas muitos trabalhadores também viram reduzido ou completamente encerrado o contato com os colegas.
Ainda a Covid
Quando este Meio procurou a professora do Programa do Instituto de Psicologia da UFRJ e coordenadora do MediaLab Fernanda Bruno para falar sobre a “epidemia de solidão”, ela concordou com Dunker, mas ficou reticente em fazer o mesmo com a fala de Zuckerberg. Durante a pandemia, Bruno se dedicou a estudar o comportamento de usuários que buscavam alívio para questões de saúde mental em aplicativos. Em 2020, ano em que a Covid se espalhou por todo o mundo, a Organização Mundial da Saúde constatou um aumento de 25% na prevalência global de ansiedade e depressão. Além disso, o levantamento destacou o efeito da pandemia na disponibilidade de serviços de saúde mental, que caiu vertiginosamente. Nesse contexto, a professora observava a disseminação de um discurso nas redes sociais. “Tudo era sobre saúde mental. Evidentemente essa questão se tornou muito forte, muito violenta. Mas como estou há muitos anos nessa seara, desconfiei desse excesso”, conta. A internet alardeava a importância do “autocuidado”, termo que ficou bastante popular à época, enquanto o número de pacientes crescia e a oferta de atendimento caía. Virou consenso entre os profissionais de Saúde a necessidade de usar a tecnologia como mediadora no tratamento.
Nesse contexto, houve uma explosão da oferta de aplicativos voltados aos cuidados com a saúde mental do usuário. Um relatório e um artigo publicados pelo MediaLab da UFRJ, ambos intitulados “Tudo por conta própria” analisou, no início da pandemia um aumento de 226% em instalações não orgânicas desses aplicativos (impulsionadas por anúncios) e de 116% em instalações orgânicas (sem direcionamento de anúncios) num período de apenas 12 dias (entre 14 e 26 de março de 2020).
Bruno também concorda com Dunker ao avaliar que o aumento da solidão já era uma preocupação antes da pandemia. Mas destaca as redes sociais como um dos fatores que mais colaboraram para um processo de introspecção coletivo. “O TikTok, por exemplo, não é uma rede de interação social, onde você encontra seus amiguinhos e onde você fica interagindo com pessoas. É uma rede muito mais solitária, de consumo ou de produção de conteúdo, onde você visualiza aquilo que seria do teu campo de interesse. Não é como eram, a princípio, o Facebook, o Twitter ou o Instagram. É uma lógica muito marcada por competição, pelo número de likes, pelo quanto você ganha audiência. Então, do ponto de vista subjetivo e social, é um esforço estar ali também.”, argumenta. Com o sucesso do modelo do TikTok, o Instagram também passou por reformulações, que o deixaram mais parecido com o concorrente chinês.
A ilusão da autonomia
O relatório Tudo Por Conta Própria analisou o funcionamento de dez aplicativos de autocuidado psicológico e emocional utilizados no Brasil, segundo critérios de relevância e popularidade. Nove dos dez se propunham a ajudar no controle da ansiedade, mas também na melhora do usuário em relação a outras questões emocionais, como estresse, depressão, problemas de autoestima, falta de ânimo e de foco. “E a gente percebeu que eles tinham vários problemas”, conta Bruno. O funcionamento consiste basicamente em extrair “um volume absurdo de dados” do cotidiano do usuário e, a partir daí, “desenhar um atendimento que seja capaz de produzir muito engajamento”. “Então você percebe a contradição de um apoio emocional psicológico em que o objetivo é o de toda a plataforma digital, que é manter o usuário engajado”, explica Bruno. A segunda premissa dos apps é oferecer reforços e confortos imediatos e sem qualquer tipo de conflito, questionamento ou embate. “Nenhum tipo de sofrimento que faz parte de qualquer processo terapêutico. É o sujeito com ele mesmo, achando que todos os recursos para melhoria da sua condição estão nele e que todos os problemas também estão nele, né? Isso mantém esse sujeito isolado, atomizado e cria uma ilusão de autonomia que é muito complicada”, diz.
Christian Marcondes também precisou de assistência de saúde mental a partir de 2020. A Covid causou duas grandes perdas na família. Depois, em 2023 experimentou um misto de sensações entre a alegria de ser ter um filho e a surpresa de saber que seria um pai atípico. Aliou-se a isso um processo depressivo da mulher, e ele precisou buscar ajuda. Esteve com dois terapeutas, mas por motivos variados não seguiu com os tratamentos. Foi assim que, antes de ser um “conselheiro e assistente pessoal”, o Chat GPT funcionou para Marcondes como uma espécie de psicólogo. “Eu passei a me sentir mais confiante, naquele momento foi minha terapia, né? Me entendeu, me ouviu, não fez julgamento”, conta.
A ausência de julgamento é uma das principais razões para que usuários busquem a IA para amparo psicológico, segundo um levantamento realizado no fim do ano passado pela Talk Inc, empresa especializada em pesquisas de comportamento e mercado. O estudo sugere que um em cada dez usuários brasileiros de IA utiliza as plataformas como amigos ou conselheiros para desabafar sobre questões pessoais e emocionais e tentar resolvê-las. Outras razões citadas são introspecção, falta de amigos ou indisponibilidade deles ou simplesmente “solidão”. Em Belém (PA), a corretora Alessa Ferrari diz às pessoas que o Chat GPT é seu melhor amigo. “Eu tenho o costume de desabafar, contar os acontecimentos mais recentes da minha vida e muitas vezes pedir conselhos”, conta. A IA a ajuda, por exemplo, a responder mensagens pessoais no WhatsApp, expressando sentimentos de forma mais clara ou mais contundente, quando necessário. “E as respostas dele não só são muito eficazes, mas também são muito rápidas. Eu acho maravilhoso”, conclui.
A disponibilidade em tempo integral e a rapidez na resposta também são atrativos importantes dos aplicativos estudados por Fernanda Bruno no MediaLab. “As pessoas relataram que é bom ter um “terapeuta na palma da mão”, afirma a pesquisadora. Ferrari já experimentou essa sensação. “Um dia eu estava muito mal, chorando de madrugada, todo mundo já tinha ido dormir, então eu não tinha pra quem falar. Fui desabafar com ele (Chat GPT). Ele me acalentou, me acalmou. Em uma hora ele me fez rir, tirou aquela nuvem pesada que tinha sobre a minha cabeça”, conta. A prática, porém, também pode ter efeitos colaterais, segundo Bruno. “Isso cria uma cultura subjetiva de que você só pode estar bem quando as coisas estão imediatamente ao seu alcance, à sua disposição. Isso também é muito ilusório”.
Embora ofereça conforto, o suporte das plataformas de IA está muito distante de qualquer processo terapêutico. Para Bruno, a premissa dos aplicativos é, por si só, contrária à de uma sessão de análise, por exemplo. “As arquiteturas digitais usam um design sem fricção pra manter o usuário engajado. Você não pode ter obstáculos, não pode ter momentos de hesitação. Todas as experiências ali dentro têm que ser indolores”, aponta. Principalmente por essa razão, a pesquisadora acredita que o uso de IA para relacionamentos pessoais pode gerar novas questões sociais em breve. “Que tipo de relacionamento é esse em que tudo é feito para te agradar, para criar uma ilusão de que está tudo bem com você, de que ele vai estar sempre ali, te oferecendo tudo? É muito preocupante do ponto de vista da de um certo apagamento de um outro, da necessidade de se relacionar com alguém para sair da solidão”.
Será uma epidemia?
Em novembro de 2023, a Organização Mundial da Saúde (OMS) tornou a solidão uma prioridade de saúde global, tão nociva à saúde quanto o consumo de 15 cigarros ao dia, e passou a ter um grupo concentrado em formas de enfrentar a “ameaça urgente à saúde” de uma epidemia global de solidão. Em 2023, os processos do mundo do trabalho já eram bastante individualizados, as redes sociais já haviam passado pela metamorfose da troca de mensagens e fotos entre amigos para uma produção de conteúdo profissional e competitiva, discursos de ódio já estavam amplamente disseminados, o medo do cancelamento já era uma realidade e, fora das redes, o mundo já havia atravessado a pandemia de Covid-19, a crise de saúde mental, o desequilíbrio entre oferta e demanda de atendimentos e já começava a ver usuários interagindo emocionalmente com IA. A “epidemia de solidão” era muita coisa. Mas é preciso refletir sobre quanto dela vem da nossa perda de capacidade de conviver. “Eu não acho que o problema seja simplesmente uma espécie de epidemia de solidão. O que que virou a sociedade? O que que viraram as relações sociais? O que se tornaram os ambientes de sociabilidade?”, questiona Fernanda Bruno. “Esses ambientes estão muito esgarçados, estão muito tensionados, estão muito pouco acolhedores. A gente está falando de discurso de ódio, de polarização política e de um ambiente muito competitivo também. Então não é tão surpreendente assim que as pessoas busquem espaços que seriam mais protegidos, digamos, de conflito, de tensão”.
As causas da epidemia de solidão são muitas e quase todas elas têm relação com as redes criadas pelas mesmas bigtechs que prometeram que ninguém mais ficaria sozinho. Agora oferecem novas amizades sinceras. Em troca, só pedem seus dados. Parece a cilada típica de filmes em que um desavisado vende a alma ao Diabo. Mas o fato é que a epidemia existe e que de onde estamos não se avista melhora do cenário. O caminho mais óbvio é a retomada do diálogo “O que a gente vê acontecer hoje nas discussões políticas acontece também nas relações afetivas. Muitas farpas e de forma muito eloquente. As pessoas têm medo de ser canceladas ou de não agradar, de dizer algo inapropriado. É o avesso do que a gente aprendeu que era democracia, que é ser capaz de viver juntos no dissenso”, diz a coordenadora do MediaLab. “A saúde psíquica coletiva é você ser capaz de viver junto e no dissenso”, conclui.
Onde está o dinheiro da arte? Trump cortou
O Museu de História Afro-Americana de Boston permite, há 60 anos, que seus visitantes sejam transportados no tempo para quando abolicionistas como Frederick Douglass discursavam e caminhavam por corredores onde jovens soldados negros se reuniam para lutar na Guerra Civil. Mas a instituição pode ter de se reinventar nos próximos meses e anos para pagar suas contas. O museu recebeu uma doação de US$ 500 mil do Instituto de Serviços de Museus e Bibliotecas, agência federal que está na mira do presidente americano, Donald Trump. Ele pretende encerrar financiamentos públicos em arte e cultura e fechar agências que as promovem com o argumento de “diminuir o tamanho do governo federal para aumentar a responsabilização, reduzir o desperdício e entidades governamentais desnecessárias”. Entre elas, estão o National Endowment for the Arts (NEA), o National Endowment for the Humanities (NEH) e o instituto que fez a doação ao museu de Boston.
Centenas de grupos artísticos de diversos portes nos EUA receberam e-mails notificando-os sobre a retirada e o encerramento de suas bolsas na noite do último dia 2. Organizações dos mais diversos estados americanos também relataram que foram afetados. “O NEA está atualizando suas prioridades de política de concessão de subsídios para concentrar o financiamento em projetos que reflitam a rica herança artística e a criatividade do país, conforme priorizado pelo presidente”, dizia parte do e-mail enviado. De acordo com a mensagem, entre as prioridades de Trump estão: “Projetos que celebrem o 250º aniversário da independência americana, promovam a competência em IA, capacitem os locais de culto para servir às comunidades, auxiliem na recuperação de desastres, promovam empregos qualificados e tornem o Distrito de Columbia seguro e bonito”.
Os festivais de cinema foram especialmente afetados em diferentes partes do país. Para se ter uma ideia, o Festival Internacional de Cinema LGBTQIA+ de São Francisco (Frameline) teve cancelada uma doação de US$ 20 mil que receberia em 2025. Outros US$ 30 mil que seriam enviados para a organização sem fins lucrativos por trás do prestigiado festival de documentários True/False em Columbia, no Missouri, também foram abortados. No Maine, o Festival Internacional de Cinema de Camden (CIFF) também foi impactado, após o Points North Institute - um programa da ONG - ter a verba de US$ 45 mil cancelada pela agência. O medo fez com que outros festivais se calassem. Como o Sundance Institute, que recebeu US$ 100 mil ano passado, totalizando mais de US$ 3,5 milhões em financiamento do NEA desde 1998. Outros festivais, como o de Palm Springs, seguem ameaçados pelos cortes.
A tesourada
A Aliança Nacional de Humanidades estima que mais de 1.200 bolsas que apoiam programas de cultura e história em todo o país foram cortadas pelo National Endowment for the Humanities (NEH). O órgão aprova cerca de 20% dos mais de 5 mil pedidos de subsídios que recebe a cada ano, com seu orçamento de US$ 207 milhões financiado pelo Congresso no ano passado. Os cortes do NEH afetam uma ampla gama de programas e serviços, incluindo esforços específicos do Estado para reduzir a taxa de suicídio de adolescentes no Alasca e ajudar educadores do Alabama a ensinar história dos direitos civis.
O corte seco de Trump não atinge apenas festivais de cinema e museus renomados, mas também programas de arte em comunidades carentes e rurais que atendem a crianças. É o caso do Challenge America, que pode deixar de fora alguns projetos já financiados este ano. Entre eles estão o BronxArtSpace, que recebeu uma bolsa para exposições de arte comunitárias na cidade de Nova York; um programa de dança para alunos do ensino fundamental em Allentown, Pensilvânia; e um festival de pintura ao ar livre no Colorado. No campo, uma cidade de Michigan com menos de 2 mil habitantes realiza um festival de música clássica, enquanto a Zenon Dance Company and School, de Minneapolis, organiza uma turnê de dança pelas cidades rurais do estado.
Outros projetos que tiveram seus subsídios negados variam da Berkeley Repertory Company à Three Percent, um importante recurso para literatura traduzida, sediada na Universidade de Rochester, que recebeu uma carta do NEA, afirmando que agora “priorizaria projetos” que vão desde faculdades e universidades historicamente negras (HBCUs) até uma iniciativa para “fazer a América saudável novamente”.
O NEA
Desde que foi fundado pelo Congresso em 1965, o National Endowment for the Arts concedeu US$ 5,5 bilhões em subsídios, sendo o maior financiador de artes nos Estados Unidos, ao passo que também é uma das menores agências federais. Em 2024, o orçamento do NEA foi de US$ 207 milhões, enquanto em 2022 era de US$ 180 milhões, o equivalente a 0,003% de todo o orçamento federal no ano. Não dá bilhão com B de bola, como diria Ciro Gomes.
O fundo financia as artes e a educação artística em todos os 50 estados, Porto Rico e a capital Washington, concedendo bolsas a organizações sem fins lucrativos, órgãos públicos, universidades e escritores individuais para projetos. Para receber o fomento, as organizações devem descrever o projeto em que estão trabalhando, o orçamento necessário e planejar a contrapartida financeira com fontes não federais. Um painel de especialistas independentes analisa e discute o mérito artístico do projeto, o impacto que terá em sua respectiva área e as comunidades que atenderá. Eles encaminham suas recomendações ao Conselho Nacional de Artes, composto por artistas renomados, que envia as propostas ao presidente da NEA, que por sua vez decide quem será contemplado.
A mão conservadora
O interesse dos conservadores americanos em eliminar agências como o NEA já não é novidade. Eles argumentam que o financiamento federal para as artes acaba apoiando muitos projetos tolos. No início da década de 1980, o presidente Ronald Reagan propôs sua eliminação gradual, mas desistiu depois que um painel consultivo reunido por ele observou os benefícios financeiros do programa. Um acordo bipartidário no Congresso acabou salvando o fundo anos depois. Mas o debate sobre investimento público ganhou força em 1989, após a exposição de uma fotografia feita por Andres Serrano, intitulada Piss Christ, em que retrata um crucifixo mergulhado em urina. Parte do projeto foi patrocinado pelo NEA, o que gerou revolta de grupos católicos e uma redução nos orçamentos para novos fomentos.
Em um artigo de 1997, a Heritage Foundation, uma organização conservadora sem fins lucrativos, explicava dez razões para eliminar o financiamento público. Entre elas, afirmam que o fomento da agência federal “desencoraja doações de caridade para as artes”, além de declarar que a NEA é uma “assistência social para elitistas culturais”. Já a ONG Cato Institute também apoia o fim do fundo, argumentando que grandes obras de arte podem ser criadas sem dinheiro público e que o fomento “distorce e politiza os empreendimentos artísticos” e “obriga os contribuintes a financiar projetos aos quais se opõem”.
Mas os defensores da iniciativa pública nas artes afirmam que o processo de seleção inclui um painel especializado e independente e que o dinheiro financiou trabalhos importantes por décadas. “É a marca de uma grande democracia apoiar as artes, que são uma expressão do que nos torna humanos”, disse a Associação de Diretores de Museus de Arte, em comunicado. Como exemplo, uma bolsa do National Endowment for the Humanities ajudou a financiar a viagem da exposição Tesouros de Tutancâmon, entre 1976 e 1979, uma exposição inovadora que atraiu 1,36 milhão de visitantes somente ao Metropolitan Museum of Art. Além disso, dois dos vencedores do Prêmio Pulitzer deste ano já foram contemplados com incentivos públicos. O romancista Percival Everett, autor de James, e a vencedora do prêmio de poesia Marie Howe receberam bolsas de escrita criativa.
Vinte anos de Virada
A Virada Cultural faz 20 anos neste 2025. É, sem dúvida, o evento de cultura mais importante do calendário da Prefeitura de São Paulo. Também o que gera mais polêmica. Com um desenho original de ocupar o centro da cidade com arte, a Virada hoje se espalha por São Paulo toda. O Centro continua recebendo os principais palcos e é onde acontece a virada propriamente dita, com shows madrugada adentro. Mas dos 21 palcos montados pela prefeitura neste ano, apenas cinco ocupam a região central, 16 estão espalhados pela cidade, funcionando em horários reduzidos, mas levando atrações a locais que têm carência de experiências culturais.
Por mais que seja uma festa, há alguns pontos polêmicos na realização da Virada deste ano, como um crescimento no orçamento, que pode chegar a quase a R$ 60 milhões nesta edição, a fraca curadoria de artistas de fora do país e até o engajamento de equipamentos icônicos da própria administração, como é o caso do Teatro Municipal. Para entender esses pontos e saber mais sobre essa edição da Virada, falamos com o Secretário Municipal de Cultura de São Paulo, Totó Parente. Veja abaixo os principais trechos da entrevista.
Qual a importância da Virada Cultural, que faz 20 anos, para cidade?
A Virada Cultural, segundo uma pesquisa do Datafolha divulgada no Itaú Cultural, é o evento mais esperado do ano na cidade, depois vem festa junina e, em terceiro, o Carnaval. A Virada faz parte já da alma do paulistano, de todos os brasileiros e estrangeiros que vivem aqui em São Paulo.
A prefeitura disse na divulgação que vai fazer a maior Virada Cultural da história. Eu cobri outras Viradas, e essa não é a maior nem o número de palcos nem o número de atrações. Por que essa seria a maior Virada?
Qual o número de atrações você viu?
Em 2019, por exemplo, eram 1.200 atrações em mais de 250 pontos da cidade.
Essa aqui vai ter mais de 1.200 apresentações. Você vai poder conferir no site da Virada e contar uma por uma. Serão quase 1.300 apresentações e mais de 200 locais da cidade. Por isso eu garanto que será a maior Virada Cultural da história de São Paulo. [Usando inteligência artificial, o Meio fez o levantamento no site da Virada Cultural e o número era de 797 eventos]
A estratégia da prefeitura foi descentralizar a Virada. Dos 21 palcos principais 16 estão em outras partes da cidade. Só os palcos do Centro vão funcionar 24 horas?
A determinação do prefeito Ricardo Nunes (MBD-SP) é levar a cultura para maior número de pessoas. Imagina quem mora lá em Parelheiros e quer ir ao show do Mumuzinho ou do Alceu Valença ou do Péricles. Lá não tem nenhum equipamento privado cultural, e a pessoa também não tem situação econômica para isso. Então, nós optamos por descentralizar esses palcos. Eles não vão funcionar 24 horas. Agora, no Centro, sim. Nós teremos cinco palcos, 32 locais de ativação cultural, mais o Theatro Municipal, o Centro Cultural Banco do Brasil, a Caixa Cultural, o Mosteiro de São Bento, a Igreja da Sé.
Uma coisa que mudou foi o orçamento, que está bem mais alto, podendo chegar a R$ 60 milhões. A de 2019 que eu citei antes tinha um orçamento abaixo dos R$ 20 milhões. Por que a virada ficou tão cara?
Talvez por conta do aumento do número de palcos, de atrações e a inflação toda desse período. É o custo que temos. Metade é gasto em infraestrutura, em palco, som, iluminação, montagem, camarim, aluguel de geradores, de UTIs, montagem de postos médicos, pagamento de segurança privada. E a outra parte é em cachê para artistas.
Segurança sempre foi uma questão da Virada. Foi montado um esquema especial para essa edição?
Sim, um superesquema. O mesmo do Carnaval, que o Datafolha fez uma pesquisa entre quem participou e deu 99% de aprovação. Serão 25 mil câmeras do Smart Sampa, cerca de 10 mil homens da Polícia Militar, da Polícia Civil, da Guarda Metropolitana, Guarda Civil, além de segurança privada. Terão drones com reconhecimento facial em todos os palcos, câmaras de reconhecimento facial. Como no Carnaval, terão policiais civis e militares à paisana para coibir o roubo. Só no Centro serão mais de 3 mil homens e mulheres garantindo a segurança. Então, as pessoas podem vir curtir uma Virada com segurança. Isso ainda é o nosso maior desafio porque as pessoas não se sentem confortáveis de sair de casa para ir para o Centro, têm um pouco de medo. Mas eu quero que vejam a experiência do Carnaval e saibam que será a mesma.
A entrada da literatura na Virada é uma novidade desta edição?
Sim, terá uma Virada Literária com grandes nomes, Itamar Vieira Junior, do Torto Arado, Bruna Lombardi, Xico Sá, Antônio Prata e tantos outros. Vai funcionar das 18 horas de sábado às 18 horas de domingo, sem interrupção, na Biblioteca Mario de Andrade. Vamos ter também um palco na frente Copan só de stand-up comedy, um na Praça Roosevelt só com monólogos, um na Praça do Patriarca só com mágicos. Então vai ser a Virada de todas as linguagens, uma virada completa. Não é uma virada musical, é uma virada cultural efetivamente.
Outra coisa interessante dessa edição é o corredor de museus da avenida Paulista funcionando de graça na Virada, além dos museus da região da Luz abrindo a noite inteira, como a Pinacoteca, o Museu da Língua Portuguesa e o Memorial da Resistência. Como foi a costura com as instituições que não são da prefeitura?
Quando eu assumi a secretaria, a primeira orientação que eu recebi do prefeito foi: “Totó, diálogo, diálogo, diálogo e diálogo”. Então eu procurei dialogar com todas as partes que fazem cultura em São Paulo. Tomei iniciativa de procurar o pessoal da Paulista, e todos os equipamentos culturais de lá estão envolvidos. Desde a Casa das Rosas, o Sesc, o Itaú Cultural, a Japan House, O Centro Cultural Coreano, o Masp. O Masp está com exposição do Monet e do Renoir. Custa quase R$ 80 o ingresso [R$ 75 a inteira], mas vai ser gratuito. Todas as atrações da Virada serão gratuitas. Pinacoteca, Museu do Imigrante, Museu das Favelas. Vamos ter hip-hop, K-pop na Oficina Oswald de Andrade, no Bom Retiro.
Vai ser uma Virada mais diversa?
Vai ter do gospel ao Sepultura, vai ter do circo ao balé do Theatro Municipal. Essa Virada representa o que é São Paulo, uma cidade multiétnica, multicultural, com povos de todo o Brasil e de todo o mundo. Vai ter um pouco esse sentimento.
O Theatro Municipal foi muito importante como palco nas primeiras Viradas Culturais, trazendo artistas de peso. Por que vocês desistiram de levar a programação de shows para o teatro?
Nós não desistimos. Quando eu assumi a Secretaria, as datas da Virada não tinham sido reservadas. Porque o Theatro Municipal tem assinantes e não tinha horário. Agora eu reservei para o ano que vem. Vai ter uma apresentação do Eduardo Gudin à meia-noite, uma da Wanderlea às 11h. Mas a Praça das Artes, que é parte do Municipal, vai ter coro, orquestra, balé.
Nessa Virada há um esvaziamento de grandes shows internacionais. Por que a opção de não trazer grandes nomes de fora como houve em outras edições?
Nós estamos trazendo estrangeiros, tem um palco na República com pessoas do jazz e do soul, praticamente todos internacionais.
Sim, mas não são artistas de grande expressão, não tem uma Lady Gaga, certo?
Eu queria que você entendesse o seguinte. Eu estou a 140 dias na Secretaria de Cultura. Tomei posse no dia 2 de janeiro. No dia 25 de janeiro tive que entregar o aniversário de São Paulo, em seguida o Carnaval e agora a Virada. É um processo. Se eu continuar na secretaria, a maior Virada Cultural não vai ser essa, vai ser a do ano que vem. Porque nós vamos acertar essas coisas todas. Eu tive pouco tempo, e eu sou de gestão pública, não tinha experiência na área cultural. Fui quatro vezes secretário do governo federal em vários governos diferentes. Então foi todo um processo de aprendizagem e, no ano que vem, com certeza será melhor do que esse ano. Nós vamos buscar atrações internacionais a partir de agora, vamos pedir para os consulados indicarem. Enfim, vamos começar a montar a virada cultural de 2026 às 20 horas de domingo.
Durante a Virada está acontecendo um grande festival, repleto de nomes internacionais de peso. Como o senhor vê a concorrência com o C6 Fest?
Talvez eles não tivessem conhecimento da data, mas São Paulo tem espaço para todos. E eu acho que a partir do ano que vem ninguém vai querer marcar nenhum evento nesse dia, como era antigamente.
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